Devolutividade e reformatio in pejus

Devolutividade e reformatio in pejus

Foi publicado, em 8 de maio de 2015, o acórdão do HC 103310, impetrado pela Defensoria Pública da União, versando sobre tema interessante e capaz de gerar divergência.

A discussão veiculada no habeas corpus dizia respeito ao que se entende por reformatio in pejus em recurso exclusivo da defesa, divergindo a Defensoria da decisão que prevalecera até a Corte Superior.

A ordem foi concedida, após empate na votação, pela 2ª Turma do STF (pela concessão: Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello X pela denegação: Ministros Teori Zavascki e Cármen Lúcia).

O precedente é interessante, pois os Tribunais insistem no entendimento de que sendo a pena final menor que a imposta em primeiro grau, não há reformatio in pejus, mesmo que em determinada fase da dosimetria o Tribunal de apelação piore, em recurso exclusivo da defesa, a situação do acusado/apelante.

Esses casos têm sido recorrentes na atuação da DPU, estando um deles atualmente com vista ao Ministro Gilmar Mendes, já com voto contrário do relator, Ministro Dias Toffoli (RHC 126763).

São várias as situações em que tal efeito pode acontecer. Por exemplo, a apelação da defesa discute a fração da majoração da pena pela internacionalidade no tráfico de drogas, sem nada falar sobre a pena-base, ou, pior ainda, pedindo sua redução. O Tribunal dá provimento ao recurso e diminui a fração de aumento de pena pela internacionalidade, mas, de ofício, aumenta a pena-base fixada, literalmente provendo ao contrário o recurso, sob o fundamento da devolutividade.

Entende-se com frequência que se a pena final for menor que a da primeira instância, não há que se falar em reformatio in pejus. Ora, o prejuízo é óbvio: o Tribunal assume o papel do Ministério Público e, com isso, torna mais pesada a pena em relação ao que ela deveria ser. Se a Corte discorda de alguma fase da dosimetria penal não impugnada pelo Parquet, ela nada pode fazer.

A devolutividade não vai ao ponto de permitir que o Tribunal de apelação aprecie aspecto da sentença não impugnado ou impugnado apenas pela defesa com o escopo de se reduzir a pena, chegando à conclusão pela piora da situação do recorrente naquela fase da dosimetria penal.

A questão é tão sensível e relevante que, há mais de 20 (vinte) anos, ao julgar o HC 71822, relatado pelo E. Ministro Celso de Mello, a 1ª Turma do STF concedeu a ordem por entender que: “O princípio tantum devolutum quantum appellatum condiciona a atividade processual dos Tribunais em sede recursal. Sendo assim, não e licito ao Tribunal, quando do julgamento de recurso interposto pelo Ministério Público, ultrapassar os limites tematicos fixados na petição recursal subscrita pelo órgão da acusação penal. A reforma da sentença, em ponto que não havia sido impugnado pelo Ministério Público, e da qual resulte o agravamento do status poenalis do condenado, por constituir pronunciamento ultra petita não admitido pelo sistema processual, configura situação tipificadora de injusto constrangimento ao status libertatis do paciente.” – trecho extraído da ementa do acórdão, publicado em 4 de novembro de 1994. Ora, se o Tribunal não pode ultrapassar os limites impostos em apelo interposto pelo Ministério Público para agravar a situação do acusado, mais inadmissível ainda é fazê-lo em recurso defensivo, seja porque a matéria não foi tratada ou porque se foi invocada teve como objetivo reduzir a pena, nunca majorá-la.

Calha, por fim, fazer uma observação importante. Em certas circunstâncias, o próprio apelo defensivo pode requerer, por ser mais benéfico, que determinada causa de majoração de pena seja retirada de uma fase da dosimetria e passada para outra. Essa situação não configura reformatio in pejus, mas uma readequação na dosimetria favorável à defesa. Um exemplo ajuda a entender melhor o afirmado. O concurso de pessoas qualifica o furto (CP, artigo 155, §4º, IV), dobrando a pena mínima de 1 (um) para 2 (dois) anos. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inúmeras vezes, provia recurso defensivo para afastar a qualificadora e considerar o concurso no furto como causa de aumento de pena, tal como ocorre no crime de roubo (CP, artigo 157, §2º, II), sendo que neste a fração de majoração varia de um terço até a metade. Ou seja, o furto deixava de ser qualificado, passando a ser simples, com a qualificadora transformada em causa de aumento de pena, gerando resultado mais favorável ao recorrente, portanto. Tal situação em nada se confunde com a mudança para pior em qualquer fase da dosagem da pena, feita de ofício pelo Tribunal, quando tal alteração vai de encontro ao interesse da defesa em recurso exclusivo seu – vide o exemplo acima em que um apelo defensivo pedindo a redução da fração de aumento de pena pela internacionalidade do tráfico de drogas foi utilizado para majorar a pena-base, sob o fundamento da amplitude da devolutividade.

Como anteriormente afirmado, a questão ainda não está consolidada, mas parece inaceitável que o Tribunal de apelação possa piorar a situação do acusado em determinada fase da dosimetria sem que tenha sido provocado pelo Ministério Público, mesmo que a pena final seja, em termos matemáticos, inferior àquela imposta na sentença recorrida.

Brasília, 9 de junho de 2015

Gustavo de Almeida Ribeiro

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