Tráfico de drogas, associação tráfico e uma pena pesada
Apresento, a seguir, as razões do agravo interno que interpus perante o STF, no RHC 173322.
Os agravantes, inicialmente, foram condenados pelo tráfico de 23,2g de cocaína. Em sede de apelação ministerial, a condenação passou para tráfico e associação para o tráfico, o que fez com que a pena de um, que era de 1 ano e 8 meses, chegasse a 8 anos. O STJ manteve a condenação imposta pelo TJSC.
A Ministra Cármen Lúcia negou seguimento ao RHC, pelo que apresentei o agravo que segue abaixo.
Brasília, 28 de agosto de 2019
(os agravantes serão identificados por LF e M)
BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS
O Juízo da 4° Vara Criminal da Comarca de Joinville/SC julgou parcialmente procedente a denúncia para condenar o acusado LF como incurso no delito tipificado no artigo 33, §4°, da Lei 11.343/2006, à pena de 1 ano e 8 meses de reclusão a ser cumprida em regime inicial fechado, bem como ao pagamento de 112 dias-multa, e M pelo delito tipificado no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006, à pena de 6 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 600 dias-multa.
Inconformado, o Ministério Público interpôs apelação por discordar da absolvição dos acusados quanto ao crime de associação para o tráfico de drogas e da aplicação do redutor previsto no art. 33, §4°, da Lei 11.343/06.
Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reformou a sentença para condená-los como incursos no delito do art. 35 da Lei de Drogas, redimensionando suas penas para 8 anos de reclusão e pagamento de 1.200 dias-multa (LF) e 10 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, e pagamento de 1552 dias multa (M), bem como afastou o redutor do tráfico privilegiado concedido ao agravante LF.
Ante tal acórdão, a Defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, não conhecido em decisão monocrática do Ministro relator.
Em seguida, os acusados apresentaram agravo regimental ao qual foi negado provimento pela Quinta Turma do STJ.
A defesa então interpôs recurso ordinário em habeas corpus destinado ao Supremo Tribunal Federal, pugnando fosse reconhecida a ilegalidade do referido acórdão recorrido.
Todavia, a Eminente Ministra Relatora negou seguimento ao recurso ordinário por entender que seria necessário o reexame fático-probatório do processo, inviável na via do remédio constitucional.
Com a devida vênia, tal entendimento não merece prosperar, conforme será demonstrado a seguir.
DAS RAZÕES RECURSAIS
O recurso ordinário foi interposto em face de decisão que não conheceu de habeas corpus impetrado perante o STJ, mantida em sede colegiada pela Quinta Turma daquela Corte. Segundo o Tribunal Superior, seria necessária a incursão no caderno probatório para a concessão da ordem.
Questiona-se a condenação dos recorrentes pela prática de associação para o tráfico, imposta pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que resultou, ainda, no afastamento, quanto ao acusado LF, da causa de diminuição de pena prevista no §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, em relação à sua condenação pelo tráfico.
Importa dizer que, segundo a denúncia, os dois agravantes, se somadas as porções de droga encontradas, foram flagrados com 23,2g de cocaína, o que está longe de ser grande quantidade.
Em razão das condenações por tráfico e associação, impostas pelo TJSC, os recorrentes receberam penas elevadas, no total de 8 anos, para LF e 10 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, para M.
O Tribunal Estadual, ao prover o recurso ministerial, buscou esteio em elementos tênues e, às vezes, sequer submetidos ao crivo do contraditório, conforme será demonstrado a seguir.
Assim, com a devida licença, não há necessidade de incursão em aspectos fáticos ou probatórios para o provimento do presente agravo e do recurso ordinário.
Como já mencionado, o Juízo de primeiro grau afastou a condenação dos agravantes pela associação para o tráfico por entender não haver prova suficiente da estabilidade associativa entre os acusados: “Não há filmagens, escutas telefônicas ou troca de mensagens, que pudessem demonstrar que os réus estariam efetivamente associados.” (sentença – fls. 282 e-STJ)
Para prover o apelo do Ministério Público, o Tribunal invocou a confissão extrajudicial de um dos agravantes, bem como o depoimento de policiais que disseram já ter prendido o acusado M em data anterior.
O fundamento invocado pela Eminente Desembargadora em seu voto, transcrito na r. decisão agravada, em momento algum indica estabilidade entre os agravantes. A associação para o tráfico deve ser estável, duradoura, carecendo, para sua comprovação, de suporte mínimo que vá além da palavra de policiais que efetuaram a prisão ou da oitiva do acusado em sede policial.
Aqui, frisa-se, não se trata de desabonar a manifestação dos policiais, mas de questionar qual seu conhecimento dos fatos para afirmar que havia colaboração estável entre os dois agravantes capaz de fundamentar a condenação pela associação. Esse tipo de prova deve ser feito com investigação mais aprofundada que mera afirmação de quem efetuou a prisão, que pode até retratar um momento, mas está longe de indicar conhecimento prolongado do que ocorria na casa em questão.
Aliás, o entendimento trazido pela Lei 11.343/06 é justamente no sentido de que a associação deve ser estável, não mais sendo punida a associação momentânea, como ocorria sob a égide da Lei 6368/76. Nesse sentido, cabe transcrever decisões do STJ e do STF:
“AGRAVO REGIMENTAL MINISTERIAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. AUSÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DA ASSOCIAÇÃO. LOCALIDADE DOMINADA POR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PRESUNÇÃO DE ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO CONCRETA DO VÍNCULO E ESTABILIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.
AGRAVO IMPROVIDO.
- Firmou-se neste Superior Tribunal de Justiça entendimento no sentido de que indispensável para a configuração do crime de associação para o tráfico a evidência do vínculo estável e permanente do acusado com outros indivíduos.
- Ainda que seja de conhecimento o domínio da localidade por facção criminosa e a quantidade de drogas denotem envolvimento com atividades criminosas, não há na sentença ou no acórdão qualquer apontamento de fato concreto a caracterizar, de forma efetiva, o vínculo associativo estável e permanente entre o paciente e a organização criminosa, requisito necessário para a configuração do delito de associação para o tráfico, imperiosa é a absolvição.
- Agravo regimental improvido.”
(AgRg no HC 471.155/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019) grifo nosso
“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. NULIDADES DAS ESCUTAS TELEFÔNICAS. NÃO OCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. DOSIMETRIA DA PENA. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. CARACTERIZADOS OS ELEMENTOS TIPIFICANTES. APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA (ART. 33, § 4º, DA LEI DE DROGAS). INVIABILIDADE. 1. À luz da norma inscrita no art. 563 do Código de Processo Penal, a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que o reconhecimento de nulidade dos atos processuais demanda, em regra, a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte. Vale dizer, o pedido deve expor, claramente, como o novo ato beneficiaria o réu. Sem isso, estar-se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional. 2. Não se vislumbra nenhuma irregularidade ou nulidade das transcrições realizadas nos autos do inquérito policial, capazes de comprometer o acervo probatório e a condenação do paciente. Consta que todos os diálogos captados por meio das escutas telefônicas autorizadas judicialmente foram disponibilizados nos autos da ação penal, mesmo antes do oferecimento da denúncia, de modo que a defesa poderia ter solicitado a transcrição de tudo ou da parte que entendesse necessário, o que não foi providenciado por nenhum dos causídicos. 3. Os arts. 33, § 1º, I, e 34 da Lei de Drogas – que visam proteger a saúde pública, com a ameaça de produção de drogas – tipificam condutas que podem ser consideradas mero ato preparatório. Assim, evidenciado, no mesmo contexto fático, o intento de traficância do agente (cocaína), utilizando aparelhos e insumos somente para esse fim, todo e qualquer ato relacionado a sua produção deve ser considerado ato preparatório do delito de tráfico previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/06. Aplica-se, pois, o princípio da consunção, que se consubstancia na absorção do delito meio (objetos ligados à fabricação) pelo delito fim (comercialização de drogas). Doutrina e precedentes. 4. Não há nenhum vício apto a justificar o redimensionamento da pena-base fixada pelo juízo sentenciante, que tomou como circunstâncias preponderantes a grande quantidade de droga apreendida, bem como a quantidade de instrumentos e utensílios encontrados no laboratório do grupo criminoso, reprimenda, ademais, que se mostra proporcional à luz das circunstâncias declinadas nos autos. Precedentes. 5. Encontra-se suficientemente demonstrada nos autos a prévia combinação de vontades entre, pelo menos, o paciente e uma corré, de caráter duradouro e estável, necessária e suficiente para configuração do crime de associação para o tráfico descrito no art. 35 da Lei 11.343/2006. Precedentes. 6. A questão relativa à incidência da agravante do art. 62, I, do Código Penal não foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça e, portanto, qualquer juízo desta Corte sobre ela implicaria supressão de instância e contrariedade à repartição constitucional de competências. 7. As instâncias ordinárias concluíram que o paciente se dedicava a atividades ilícitas, aderindo à organização criminosa dedicada à fabricação e à comercialização de droga. Nesse contexto, revela-se inviável a utilização do habeas corpus para reexaminar fatos e provas com vistas a aplicar a minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, que tem a clara finalidade de apenar com menor grau de intensidade quem pratica de modo eventual as condutas descritas no art. 33, caput e § 1º, em contraponto ao agente que faz do crime o seu modo de vida, o qual, evidentemente, não goza do referido benefício (cf. justificativa ao Projeto de Lei 115/2002 apresentada à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação). Precedentes. 8. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, concedido, em parte.” (HC 109708, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 23/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 31-07-2015 PUBLIC 03-08-2015) grifo nosso
Além de demonstrar a exigência da estabilidade para o delito de associação, o julgado da Segunda Turma do STF acima transcrito assentou que é preciso prova robusta para a condenação por tal delito. No caso a que se refere o julgado, foram feitas investigações com base, inclusive, em escutas telefônicas, conforme se lê na ementa.
A situação ora em exame é bem distinta. A condenação sobreveio com base em afirmações dos policiais que efetuaram a prisão, que sequer poderiam saber de eventual estabilidade do grupo, sem investigações prévias ou sem se basear em ilações vagas, tais como as transcritas no acórdão do TJSC.
Não se exige para se chegar a tal conclusão, qualquer análise aprofundada do caderno probatório, bastando a leitura do acórdão que condenou os agravantes pela associação.
A prevalecer o entendimento esposado pela Corte Estadual, todas as vezes em que flagradas mais de uma pessoa com droga, a condenação pela associação será quase consequência inevitável.
Assim, deve ser provido o presente agravo, bem como o recurso ordinário em habeas corpus, afastando-se a condenação pela associação para o tráfico e restabelecendo-se, quanto ao acusado L, a minorante do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06.