Fio da navalha

Fio da navalha

Gustavo de Almeida Ribeiro

Cada carreira jurídica tem seus desafios e dificuldades e só quem as vivencia pode mensurá-las.

Ontem passei por essa situação no Plenário do Supremo Tribunal Federal.

A Defensoria Pública da União, que tem militância intensa perante a Justiça Militar da União, passou a alegar, valendo-se da alteração ocorrida em 2008 no Código de Processo Penal, que a mudança do interrogatório para o final da instrução processual, implementada pela Lei 11.719/08, deveria ser também aplicada aos feitos em trâmite perante a Justiça Castrense.

Os processos versando sobre o tema que aportaram no Superior Tribunal Militar obtiveram resposta negativa, pelo que a DPU passou a recorrer ao STF para reverter tal entendimento.

Como por vezes acontece, as duas Turmas da Suprema Corte trilharam caminhos diferentes, a Primeira concedendo os pedidos, em regra veiculados em habeas corpus, a Segunda denegando-os.

Após sustentar no RHC 123473, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, na sessão da 2ª Turma de 2 de setembro de 2014, com resultado desfavorável, percebi que apenas 10 dias depois a Ministra Cármen Lúcia tinha concedido liminar no HC 123228, versando exatamente sobre o mesmo tema.

Naquela oportunidade, já conhecia a divergência entre as Turmas, sabendo que a Primeira era favorável à tese esgrimida pela DPU, ao contrário da Segunda.

Em 11 de novembro de 2014, a Ministra Cármen Lúcia levou o HC 123228 para julgamento perante a Segunda Turma. Já tinha acontecido em outro feito sobre a mesma matéria de ela conceder a liminar e depois denegar a ordem, pelo que fiz questão de chamar a atenção para a frontal divergência entre as Turmas.

Assim, sustentei muito mais para destacar os entendimentos divergentes do que preocupado em repetir o que já havia dito – matéria exclusivamente de direito – há pouco mais de dois meses, para evitar deixar os Ministros enfadados.

A Turma resolveu então afetar o processo ao Plenário do STF para pacificar a questão.

O habeas corpus foi pautado para a sessão do Plenário do STF de 10 de dezembro de 2014, juntamente com diversos outros da DPU. Pouco antes de começar a sessão, me dei conta de que o habeas corpus tinha um problema sério: os interrogatórios tinham acontecido em 2007, antes mesmo da mudança ocorrida no Código de Processo Penal. Em suma, como as normas processuais não retroagem, ainda que os pacientes do citado HC 123228 tivessem sido interrogados na Justiça comum, não seria aplicável a regra do novo procedimento.

Pensei: se eles tiverem notado essa situação vou ser execrado em praça pública, embora os documentos estejam acostados aos autos. Torci muito para que o feito não fosse a julgamento naquele dia. E, de fato, não foi.

Por uma questão de lealdade com a Corte e para evitar problemas posteriores, avisei que os interrogatórios tinham sido antes da alteração legislativa logo após a sessão.

Achei que o feito fosse ser desafetado e denegado monocraticamente ou na Turma mesmo.

Nada disso, ele continuou na lista do Plenário.

Passei então a viver uma situação incômoda, por um lado, ter um processo com um tema relevante para a DPU com um caso concreto desfavorável, por outro, saber que a liminar estava deferida, suspendendo o andamento da ação penal militar, ou seja, uma vez avisada a situação, tinha cumprido meu dever ético, mas não poderia desistir do HC em respeito aos assistidos.

Quando o feito voltou à pauta, novamente entrei em contato com o gabinete da Ministra Cármen Lúcia. Ela insistiu em manter o processo afetado, pelo que nada mais me restava a fazer.

Aqui, faço outra ponderação. Não queria deixar a matéria ser julgada sem sustentar pelo medo de, em um tema totalmente antagônico entre as Turmas, os Ministros resolverem entrar no mérito sem que a Defensoria fosse ouvida. Por isso, não havia, em meu sentir, a opção de não sustentar.

Foi uma sensação estranha. Sabia que estava perdido, que nada poderia fazer, vez que a lei processual não retroagiria nem mesmo para o processo penal comum, por outro lado, tinha coisas relevantes a dizer e não poderia simplesmente ignorar que, bom ou não era aquele o precedente afetado e isso não depende de nós.

A ordem restou denegada, mas dei o recado em nome da DPU. Fui leal com a Corte, avisando a situação, vez que não poderia afirmar que os interrogatórios tinham ocorrido em data posterior àquela em que realmente se deram; por outro lado, a liminar foi mantida enquanto possível e as portas continuam abertas quanto ao tema de fundo. Foi cansativo e um pouco frustrante, mas dentro das possibilidades, era o que dava para fazer.

Brasília, 25 de junho de 2015

A importância da Defensoria Pública na construção de teses

A importância da Defensoria Pública na construção de teses

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Existem temas no Direito que são intimamente ligados à Defensoria Pública. Não que não importem à advocacia particular, mas, por não terem apelo econômico ou envolverem pessoas incapazes de arcar com as despesas decorrentes de uma demanda judicial, situação essencial – e natural, frise-se – para a iniciativa privada, acabam por ser tratados, na maioria das vezes, pela defesa pública.

Além disso, há questões que se repetem à exaustão, pelo que a legitimidade da Instituição decorre da pletora de feitos por ela patrocinados e, consequentemente, da experiência adquirida pelos seus membros por todo o país no trato do assunto.

Isso ocorre tanto em matérias de natureza extrapenal, quanto em algumas de natureza penal.

Por isso, nas discussões desses temas, é fundamental seja chamada a Defensoria Pública para que possa dar voz ao lado mais frágil da relação processual.

Essa participação cresce em importância quando o feito a ser julgado tem os contornos típicos da repercussão geral, que acaba por fazer com que seu resultado ultrapasse o mero interesse das partes envolvidas.

Como dito acima, as causas que não proporcionam ganho econômico, ainda que patrocinadas graciosamente por advogados particulares, não permitem, em regra, que eles viajem para, por exemplo, proferir sustentação oral em localidade distante daquela em que exercem sua profissão. Cabendo destacar, ainda, a importância da experiência angariada na atuação maciça dos Defensores.

Por isso, faz-se essencial que em casos como estes, as Cortes Superior e Suprema tenham sensibilidade, permitindo e até mesmo açulando a participação da Defensoria Pública na defesa de teses que lhe sejam caras, frequentes na sua atuação diária por todo o país.

O Superior Tribunal de Justiça vem tomando esta medida, intimando a Defensoria Pública em processos em que entende ser o tema veiculado em sede de recurso repetitivo relevante para a atuação da Instituição. Já o Supremo Tribunal Federal não provoca a atuação da Defensoria, mas, como regra, permite sua participação, salvo uma ou outra exceção. Espero que a Suprema Corte também dê esse passo final fundamental para a formação de uma decisão com amplo acesso de todos os atores, chamando a Instituição a participar.

Como dito, há casos em que não se pode esperar que um advogado, que muitas vezes atuou de forma gratuita, saia de sua cidade e se desloque até Brasília para proferir sustentação oral. A participação da Defensoria permite que se ouça a voz do cidadão, principalmente nas causas mais relacionadas aos carentes, como de as de natureza assistencial, previdenciária, de saúde, ou, ainda, atinentes à execução penal, por exemplo. Quando do outro lado está a Fazenda Pública, em regra, fazem-se presentes Procuradores Federais e Advogados da União, quando é de natureza penal, lá está o Procurador da República à direita do Ministro Presidente. Por isso, a Defensoria deve assegurar o equilíbrio entre as posições sustentadas. São exemplos do afirmado os Recursos Extraordinários 567.985 e 580.963, versando sobre benefício assistencial e o Recurso Extraordinário 591.054, impugnando a consideração de inquéritos e ações penais em andamento como maus antecedentes. Em todos eles, a palavra em favor da tese mais favorável aos assistidos em geral foi lançada da tribuna pela Defensoria Pública da União.

É preciso dizer ainda que, muitas vezes, o Ministério Público acaba por ter, principalmente em matérias não ligadas ao Direito Penal, entendimento assemelhado ao da Defensoria Pública. Entretanto, está em posição diferente, na condição de custos legis, menos vinculado, portanto, ao interesse daqueles que serão atingidos pela tese a ser consolidada. Em suma, não está limitado à posição do hipossuficiente, tal como ocorre com aquele que ingressa no feito justamente para defender o entendimento mais favorável ao carente.

Em vista do afirmado, entendo que a Justiça Brasileira precisa ser acessível a todos e, em muitos casos, a Defensoria Pública é a única voz audível de milhares de pessoas espalhadas pelos diversos rincões do país, principalmente em processos que ultrapassem os interesses apenas das partes nele envolvidas e signifiquem a esperança final de um entendimento jurisdicional favorável.

Brasília, 19 de junho de 2015

Reformatio in pejus e consequências indiretas

Reformatio in pejus e consequências indiretas

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

O tema reformatio in pejus pode parecer, à primeira vista, simples e isento de maiores reflexões. Entretanto, um olhar um pouco mais aprofundado demonstra que ele ultrapassa a mera questão do quantitativo de pena em si, trazendo outras nuances a serem apreciadas conforme o caso.

Um exemplo é a invocação, pelo Tribunal de apelação, de aspectos negativos contra o acusado recorrente que, em razão do acolhimento também de teses favoráveis, não torna a pena maior que a da primeira instância, mas a deixa maior do que a que seria devida.

Outro indicativo da complexidade do tema ocorre no recurso defensivo em que não há qualquer alteração ou redução na quantidade de pena fixada, mas com a imposição de circunstâncias que alteram, de alguma forma, a pena, seja pela mudança do enquadramento no tipo penal, seja pela invocação de circunstâncias judiciais antes neutras ou favoráveis.

Um caso concreto, extraído do HC 123251, julgado pela 2ª Turma do STF, demonstra de forma cristalina o que ora se afirma:

“Habeas Corpus. 2. Emendatio libelli (art. 383, CPP) em segunda instância mediante recurso exclusivo da defesa. Possibilidade, contanto que não gere reformatio in pejus, nos termos do art. 617, CPP. A pena fixada não é o único efeito que baliza a condenação, devendo ser consideradas outras circunstâncias para verificação de existência reformatio in pejus. 3. A desclassificação do art. 155, § 4º, II, para o art. 312, § 1º , ambos do Código Penal, gera reformatio in pejus, visto que, nos crimes contra a Administração Pública, a progressão de regime é condicionada à reparação do dano causado, ou à devolução do produto do ilícito (art. 33, § 4º, CP). 4. Writ denegado nos termos em que requerido, mas, de ofício, concedido habeas corpus.” (HC 123251, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-028 DIVULG 10-02-2015 PUBLIC 11-02-2015)

Em suma, a acusada havia sido condenada por furto. Em recurso exclusivo seu, o Tribunal entendeu por alterar o tipo penal de furto para peculato-furto, sem qualquer mudança na pena. Aparentemente, seria uma emendatio libelli sem maiores consequências, vez que mantida a pena imposta em primeiro grau. Ocorre que o peculato é crime praticado contra a administração pública, pelo que a ele é aplicado o disposto no artigo 33, §4º do Código Penal que impõe a reparação de dano para a progressão de regime, exigência inexistente no crime de furto. Ou seja, ainda que sem o agravamento do quantitativo de pena, a situação da acusada tornou-se mais gravosa, pois, precisando progredir de regime terá que cumprir determinação legal não imposta na condenação primeva e não questionada pelo Órgão de acusação.

Mais uma vez, repisa-se: não cabe ao Tribunal ad quem, inconformado, assumir o papel de Ministério Público, em recurso do acusado.

O mesmo se dá com a consideração de circunstância judicial como negativa contra o recorrente em recurso exclusivo seu, mesmo sem a majoração de pena. Como se sabe, as circunstâncias judiciais são sempre consideradas para a obtenção de benefícios, tais como a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.

Assim, os dois exemplos acima demonstram que a vedação da reformatio in pejus ultrapassa, em muito, a mera quantificação final da pena, surgindo até mesmo da tipificação legal imposta ao acusado recorrente. Os princípios acusatório e da ampla defesa impedem que o Tribunal de apelação altere, sem a provocação ministerial (ou do querelante ou do assistente de acusação, conforme o caso), aspectos da pena que resultem em qualquer espécie de agravamento na situação do acusado.

Não se impõe a quem recorre preocupar-se com circunstâncias que eventualmente podem ser invocadas pela Corte local, antecipando-se e temendo, ao apelar, um provimento de ofício contrário ao seu pedido.

Em apelação exclusiva da defesa, cabe ao Tribunal prover o recurso ou a ele negar provimento, mas não invocar circunstância que de qualquer modo prejudique o apelante sem qualquer provocação. Como já afirmado, o prejuízo não se limita ao total final da pena, sendo esta sua forma mais visível, mas de modo algum a única. Mudanças que impeçam ou dificultem a substituição da reprimenda, a progressão de regime, ainda que não causem um dia sequer a mais de pena, agravam a situação do recorrente pelo que dependem de irresignação ministerial para serem aplicadas.

Brasília, 16 de junho de 2015

Os limites e a busca por novos caminhos

Os limites e a busca por novos caminhos

Gustavo de Almeida Ribeiro

Um dos meus objetivos ao criar o blog foi poder comentar de maneira mais informal alguns temas de Direito que não caberiam no twitter, mas também exigiriam aprofundamento técnico necessário para divulgação em algum sítio eletrônico ou periódico jurídico.

Como Defensor Público militante perante o Supremo Tribunal Federal há mais de 8 anos, tenho percebido o endurecimento da Corte com relação à admissibilidade dos habeas corpus que, além disso, cada vez mais são julgados monocraticamente – claro, a interposição de agravo regimental torna colegiada a decisão, mas não permite a sustentação oral.

No caso da Corte Suprema, algumas restrições são gerais como a rejeição das impetrações voltadas contra decisões monocráticas definitivas da instância anterior, numa espécie de alargamento do enunciado da Súmula 691 do STF, que limitava o conhecimento do habeas corpus apenas quando voltado contra decisão que indeferia medida liminar. Por outro lado, a exigência de interposição de recurso ordinário em habeas corpus contra decisão denegatória de habeas corpus, refutando-se a possibilidade de impetração substitutiva, está limitada à Primeira Turma, não sendo exigida, como regra, pela Segunda Turma.

Mas o Superior Tribunal de Justiça parece ter ido além nas restrições ao cabimento do remédio constitucional. Deparei-me, ao emendar inicial de próprio punho no HC 128.153, em trâmite perante o STF, com o acórdão prolatado pelo STJ no HC 296.899, julgado pela Sexta Turma, sob relatoria da E. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. A citada decisão colegiada, invocando precedente emanado da Primeira Turma do STF, seguiu o voto condutor da E. Relatora, assim consignado:

“É inadmissível que se apresente como mera escolha a interposição de recurso ordinário, do recurso especial/agravo de inadmissão do Resp ou a impetração do habeas corpus. É imperioso promover-se a racionalização do emprego do mandamus , sob pena de sua hipertrofia representar verdadeiro índice de ineficácia da intervenção dos Tribunais Superiores. Inexistente clara ilegalidade, não é de se conhecer da impetração.”

Por sua vez, o julgado invocado no voto tem a ementa abaixo transcrita:

“HABEAS CORPUS – JULGAMENTO POR TRIBUNAL SUPERIOR – IMPUGNAÇÃO. A teor do disposto no artigo 102, inciso II, alínea “a”, da Constituição Federal, contra decisão, proferida em processo revelador de habeas corpus, a implicar a não concessão da ordem, cabível é o recurso ordinário. Evolução quanto à admissibilidade do substitutivo do habeas corpus. PROCESSO-CRIME – DILIGÊNCIAS – INADEQUAÇÃO. Uma vez inexistente base para o implemento de diligências, cumpre ao Juízo, na condução do processo, indeferi-las.” (HC 109956, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 07/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-178 DIVULG 10-09-2012 PUBLIC 11-09-2012) (grifo nosso)

Aqui, é preciso destacar que a impetração ajuizada perante o STJ voltava-se contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em sede de apelação e não contra decisão em habeas corpus originário.

Ou seja, o Superior Tribunal de Justiça, invocando precedente que, com a devida licença, parece não se adequar ao caso em tela, não conheceu da impetração lá ajuizada sob o fundamento de “racionalização do emprego do mandamus”. Assim, só restaria ao acusado a possibilidade de utilização dos apelos excepcionais.

Entretanto, ao contrário do alegado pela Corte Superior, o precedente do STF não obriga a interposição dos apelos extremos, limitando-se a exigir a interposição do recurso ordinário em habeas corpus contra decisão denegatória de habeas corpus. Na verdade, mesmo a Primeira Turma da Corte Suprema, mais restritiva em relação ao remédio heroico, é clara em afirmar que não é exigível a interposição de Recurso Especial, podendo ser utilizado o habeas corpus regularmente para a impugnação de decisões tomadas por Tribunais Estaduais ou Regionais Federais em sede de apelação. Calha transcrever decisão ainda mais recente que o julgado invocado no acórdão da Corte Superior.

“Ementa: Recurso ordinário em habeas corpus. Acórdão do superior tribunal de justiça que, ao inadmitir hc substitutivo de recurso especial, examinou o mérito da impetração. Tráfico de drogas. Pedido de aplicação do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006. impossibilidade. Regime inicial de cumprimento de pena fixado com base em dados objetivos. Recurso a que se nega provimento. 1. A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido de não admitir que o Superior Tribunal de Justiça negue seguimento a habeas corpus pela justificativa de cabimento de recurso especial. 2. No caso dos autos, apesar de não conhecer de habeas corpus por considerá-lo substitutivo de recurso especial, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça examinou o mérito da impetração. 3. Não há ilegalidade flagrante no acórdão que assenta a impossibilidade de se discutir, em sede de habeas corpus, o preenchimento dos requisitos para a incidência da causa de diminuição de pena definida no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006. Notadamente se as instâncias precedentes convergiram quanto ao não atendimento dos requisitos legais 4. A existência de circunstâncias objetivas valoradas negativamente pode implicar a fixação de regime prisional mais gravoso do que o autorizado pela quantidade da pena. 5. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.” (RHC 118623, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 19/11/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-239 DIVULG 04-12-2013 PUBLIC 05-12-2013) (grifo nosso)

Em suma, ao contrário do afirmado pela Corte Superior, o precedente que se amolda com perfeição ao HC 296.899 é o colacionado acima, que claramente veda a exigência da interposição de Recurso Especial por parte do STJ. Já o julgado invocado no voto condutor pelo Tribunal Superior (109956/STF) fala da exigência da utilização do recurso ordinário contra decisão denegatória de habeas corpus. Reitera-se, o HC 296.899 impugnava acórdão proferido em apelação, pelo que se vedada a utilização do habeas corpus, como deseja o STJ, só restaria o Recurso Especial.

Nem se diga que houve apreciação de ofício da matéria de fundo da impetração, o que, aliás, tem criado verdadeiro paradoxo. Se o writ, sendo ou não conhecido, é analisado no mesmo grau de profundidade, a discussão sobre seu conhecimento é inócua, desnecessária. Na verdade, o que se diz é que o não conhecimento da impetração permite apenas a apreciação de ilegalidades flagrantes, o que já indica a importância de se combater a restrição cada vez mais intensa sofrida pela ação constitucional. Além disso, confesso minha dificuldade em saber o que é ilegalidade patente (termo utilizado no voto) e o que é uma ilegalidade discreta, admissível, em se tratando de direito penal que, como se sabe, atinge sempre a liberdade dos acusados.

Certo é que as restrições ao instituto do habeas corpus se multiplicam e se alargam, pelo que me questiono até onde irão. Quem está preso indevidamente tem pressa, urgência, sendo os recursos excepcionais mais lentos e mais restritos que o remédio heroico. Permitindo-me certo exagero, às vezes parece-me que o novo entendimento sobre o cabimento da ação constitucional culminará quase que na sua extinção prática no direito brasileiro, vez que incabível praticamente em todas as situações e cada vez mais repleto de exigências, de modo a fazer inveja nos recursos excepcionais.

O aumento no número de HCs nos Tribunais Superiores – causador das restrições – tem, em grande parte, a paternidade da Defensoria Pública que faz chegar a Brasília processos que antes seriam encerrados, no máximo, no Tribunal de Segundo Grau, sendo nesse aspecto, positivo ao possibilitar o acesso da população menos favorecida a todas as instâncias judiciais. Por outro lado, infelizmente, conta também com outros fatores não tão alvissareiros, que precisam ser repensados, como a resistência dos Tribunais locais em seguir as orientações jurisprudenciais emanadas do STF, por exemplo. Seja por que razão for, a solução mais democrática não está na limitação exagerada ao cabimento do remédio constitucional.

Como Defensor Público, resta-me reinventar minha atuação de modo que questões meramente processuais não impeçam a apreciação dos temas de fundo veiculados nos diversos habeas corpus da forma mais ampla possível, vez que, em breves palavras, dada a extensão deste texto, parece contraditório que a forma de peticionamento mais democrática do Direito venha sofrendo cada vez mais restrições e condicionamentos.

Brasília, 13 de junho de 2015

A compatibilidade entre o sursis e o indulto

A compatibilidade entre o sursis e o indulto

 

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal está discutindo se o tempo em que o apenado cumpriu período de prova do sursis pode ser considerado para a obtenção de indulto, nos termos do disposto no inciso XIII do artigo 1º do Decreto 8.172/2013. São quatro habeas corpus em julgamento sobre o tema, três com pacientes militares e um com paciente civil. Segue, abaixo, memorial por mim apresentado antes do início do julgamento de um desses feitos, com breves considerações sobre o sursis, a competência da Justiça Militar e a desatualização da legislação penal e processual penal militar em relação à legislação penal comum.

 

  1. BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS

O paciente foi denunciado pela suposta prática do delito tipificado no artigo 299 do Código Penal Militar, desacato, à pena de 6 (seis) meses de detenção, sendo a ele concedido regime inicial aberto e o benefício do sursis pelo prazo de 2 (dois) anos.

O apenado XXXX vem cumprindo regularmente todas as condições impostas.

Em 19 de fevereiro de 2014, em decorrência do Decreto presidencial de indulto de dezembro de 2013, o Juiz Auditor da 3ª Auditoria da 1ª CJM proferiu decisão reconhecendo que o paciente atendeu os requisitos subjetivos e objetivos para a concessão do indulto especificados no inciso XIII do artigo 1º do Decreto 8.172/2013, vez que cumpriu ¼ (um quarto) do período de prova do sursis dentro do prazo especificado no decreto presidencial.

Contra esta decisão, o Parquet interpôs recurso em sentido estrito, argumentando que o período de prova do sursis não pode ser contabilizado como tempo de cumprimento de pena.

No dia 25 de junho de 2014, foi a Plenário o julgamento do recurso, interposto pelo Ministério Público Militar, oportunidade em que, por unanimidade, o Superior Tribunal Militar deu-lhe provimento e reformou a decisão de primeiro grau.

Entretanto, conforme será demonstrado a seguir, tal entendimento não deve prosperar.

2. DOS FUNDAMENTOS PARA A CONCESSÃO DA ORDEM

A presente impetração traz a oportunidade de a Suprema Corte apreciar diversos temas que afetam a Justiça Militar, principalmente quando são a ela submetidos civis.

Em primeiro lugar, calha rememorar que no caso dos autos, o paciente foi acusado de desacato, crime de duvidosa constitucionalidade.

Em seguida, cabe dizer que o paciente, civil, teria praticado tal conduta contra militares em atividade de policiamento, matéria que foi considerada, no julgamento até agora concluído pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, de competência da Justiça comum (HC 112936, 2ª Turma, Rel. Ministro Celso de Mello, acórdão publicado em 17/05/2013), havendo ainda feito afetado ao Plenário da Corte.

Piora mais ainda a situação o anacronismo da legislação penal e processual penal castrense que se torna mais flagrante a cada dia, vez que não tem sido atualizada e adequada ao disposto na Constituição Federal de 1988, bem como nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é signatário. Assim, persistem entendimentos superados nas leis penais comuns, como o tratamento do tráfico e do uso de drogas no mesmo dispositivo legal, bem como a manutenção do interrogatório do acusado no início da instrução, quando o próprio STF já reconheceu, apreciando Ação Penal originária, que a autodefesa é mais bem exercida quando o réu sabe o que foi dito contra si pelas testemunhas no curso da instrução processual (AP 528 AgR, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Pleno, acórdão publicado em 08/06/2011).

Essa desatualização é ainda mais maléfica ao atingir o civil, pois este, ao contrário daquele que adotou para sua vida a carreira militar, não optou por seguir o estilo de vida castrense, com todas as suas demandas de hierarquia e disciplina, sempre invocadas nos julgamentos envolvendo militares. Por isso, a Suprema Corte deve caminhar no sentido de declarar a impossibilidade de a Justiça Militar processar e julgar civis.

A presente impetração, de certo modo, é consequência desse anacronismo. Como se sabe, a Justiça Militar, como regra, não procede à substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, mesmo que o acusado preencha todos os requisitos necessários – nesse sentido, vide julgados do STF: HC 91709, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, acórdão publicado em 13/03/2009 e HC 94083, Rel. Ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, acórdão publicado em 12/03/2010. Concede, entretanto, o sursis, suspendendo a pena nos termos do disposto no Código Penal Militar.

Mas até mesmo o instituto da suspensão condicional da pena encontra-se defasado no Código Castrense em relação à Lei Penal comum. Esta, a partir da reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, impôs condições para o recebedor da suspensão muito próximas das penas restritivas de direito. Aliás, o Código Penal estabelece que o sursis será aplicado quando não for possível a substituição da pena pela restritiva de direitos, o que está a indicar ser ele medida mais gravosa, tanto que subsidiária.

Mas é preciso ir além. Desde 1908, muito antes das últimas alterações levadas a efeito pelo reformador de 1984, José Mendes já advertia, em dissertação apresentada em concurso prestado na Faculdade de Direito de São Paulo, conforme menciona René Ariel Dotti em seu artigo “O “sursis” e o livramento condicional nos projetos de reforma do sistema”, pronunciado em conferência ocorrida em 8 de abril de 1983 no I Ciclo de Estudos de Direito e Processo Penal patrocinado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, que o sursis tem nítido caráter penal: “A própria condemnação condicional é uma pena consistente na ameaça feita ao delinquente; é um substitutivo penal, que não perde a natureza de pena. É pena no verdadeiro sentido, o scientífico, É pena adequada ao nosso tempo.” (artigo publicado na Revista Justitia, do Ministério Público de São Paulo, 46(124): 175-194, jan/mar 1984)

O introito acima contextualiza a situação dos beneficiários da suspensão condicional da pena perante a Justiça Militar em cotejo com o disposto no Decreto de Indulto 8.172 de 24 de dezembro de 2013, mais precisamente em seu artigo 1º, XIII.

Inicialmente, questiona-se, se sursis não fosse pena, não fosse gravame, não seria aplicável quando incabível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e sim preferencialmente. Ou seja, é considerado subsidiário em relação à pena restritiva, pelo que é, logicamente, mais severo, caso contrário, seria aplicado primeiramente a quem fizesse jus aos dois institutos. Em outras palavras, seria ilógico se constatar que alguém não merece a substituição de pena, mas merece o sursis e ao mesmo tempo concluir que este não é pena e a substituição o é. Tal conclusão levaria a uma situação paradoxal de imposição de pena a quem tem condição menos grave e não imposição a quem tem condição mais severa.

A suspensão impõe ao seu recebedor uma ameaça constante de execução da pena em caso de descumprimento das condições impostas. Aliás, mais uma vez, repete o que ocorre com a substituição da pena pela restritiva de direitos, que, não cumprida, é convolada em privativa de liberdade.

Reforça ainda o caráter penal do sursis a necessidade de individualização na sua aplicação que deverá apreciar questões como antecedentes, personalidade, circunstâncias do crime, nitidamente ligadas à dosimetria penal; bem como a exigência de condições específicas a que fica subordinada a suspensão.

Cumpre ainda dizer que a interpretação de que o prazo da suspensão não deve ser considerado para a concessão do indulto parece ser mais rigorosa com quem foi apenado em infração menos grave em relação a quem sofreu punição maior. Aqui, reitera-se o já afirmado acima no sentido de que a Justiça Militar não aplica penas restritivas, situação que culmina na concessão de sursis. Repisa-se, o anacronismo é absurdo contra o militar, inadmissível contra o civil.

As diferenças existentes entre a Lei Penal comum e a Militar agravam-se diuturnamente, na medida em que esta não acompanha as alterações realizadas naquela, em temas que não guardam qualquer relação com a especificidade da vida na caserna. Por isso, é preciso que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar os feitos oriundos da Justiça Castrense, atente-se para a desatualização da legislação lá aplicada, principalmente, mas não apenas, quando o acusado é civil, que, aliás, sequer deveria ser submetido a julgamento perante as instâncias militares.

Assim, deve ser o tempo de suspensão condicional da pena considerado para a obtenção do indulto, evitando-se a discrepância entre o condenado pela Justiça Militar e a Justiça comum e o tratamento mais gravoso a quem tenha praticado crime de pouca relevância penal.

Aliás, o instituto da suspensão condicional da pena parece ter sido extirpado do projeto de Novo Código Penal, o que está a demonstrar sua defasagem em relação ao sistema penal atual.

3. DO PEDIDO

Portanto, o sursis deve ser considerado, ao menos, como execução parcial da pena, pelo que se justifica que o período de seu cumprimento seja considerado para a obtenção do indulto, com a consequente concessão da ordem.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Brasília, 25 de maio de 2015. 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Devolutividade e reformatio in pejus

Devolutividade e reformatio in pejus

Foi publicado, em 8 de maio de 2015, o acórdão do HC 103310, impetrado pela Defensoria Pública da União, versando sobre tema interessante e capaz de gerar divergência.

A discussão veiculada no habeas corpus dizia respeito ao que se entende por reformatio in pejus em recurso exclusivo da defesa, divergindo a Defensoria da decisão que prevalecera até a Corte Superior.

A ordem foi concedida, após empate na votação, pela 2ª Turma do STF (pela concessão: Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello X pela denegação: Ministros Teori Zavascki e Cármen Lúcia).

O precedente é interessante, pois os Tribunais insistem no entendimento de que sendo a pena final menor que a imposta em primeiro grau, não há reformatio in pejus, mesmo que em determinada fase da dosimetria o Tribunal de apelação piore, em recurso exclusivo da defesa, a situação do acusado/apelante.

Esses casos têm sido recorrentes na atuação da DPU, estando um deles atualmente com vista ao Ministro Gilmar Mendes, já com voto contrário do relator, Ministro Dias Toffoli (RHC 126763).

São várias as situações em que tal efeito pode acontecer. Por exemplo, a apelação da defesa discute a fração da majoração da pena pela internacionalidade no tráfico de drogas, sem nada falar sobre a pena-base, ou, pior ainda, pedindo sua redução. O Tribunal dá provimento ao recurso e diminui a fração de aumento de pena pela internacionalidade, mas, de ofício, aumenta a pena-base fixada, literalmente provendo ao contrário o recurso, sob o fundamento da devolutividade.

Entende-se com frequência que se a pena final for menor que a da primeira instância, não há que se falar em reformatio in pejus. Ora, o prejuízo é óbvio: o Tribunal assume o papel do Ministério Público e, com isso, torna mais pesada a pena em relação ao que ela deveria ser. Se a Corte discorda de alguma fase da dosimetria penal não impugnada pelo Parquet, ela nada pode fazer.

A devolutividade não vai ao ponto de permitir que o Tribunal de apelação aprecie aspecto da sentença não impugnado ou impugnado apenas pela defesa com o escopo de se reduzir a pena, chegando à conclusão pela piora da situação do recorrente naquela fase da dosimetria penal.

A questão é tão sensível e relevante que, há mais de 20 (vinte) anos, ao julgar o HC 71822, relatado pelo E. Ministro Celso de Mello, a 1ª Turma do STF concedeu a ordem por entender que: “O princípio tantum devolutum quantum appellatum condiciona a atividade processual dos Tribunais em sede recursal. Sendo assim, não e licito ao Tribunal, quando do julgamento de recurso interposto pelo Ministério Público, ultrapassar os limites tematicos fixados na petição recursal subscrita pelo órgão da acusação penal. A reforma da sentença, em ponto que não havia sido impugnado pelo Ministério Público, e da qual resulte o agravamento do status poenalis do condenado, por constituir pronunciamento ultra petita não admitido pelo sistema processual, configura situação tipificadora de injusto constrangimento ao status libertatis do paciente.” – trecho extraído da ementa do acórdão, publicado em 4 de novembro de 1994. Ora, se o Tribunal não pode ultrapassar os limites impostos em apelo interposto pelo Ministério Público para agravar a situação do acusado, mais inadmissível ainda é fazê-lo em recurso defensivo, seja porque a matéria não foi tratada ou porque se foi invocada teve como objetivo reduzir a pena, nunca majorá-la.

Calha, por fim, fazer uma observação importante. Em certas circunstâncias, o próprio apelo defensivo pode requerer, por ser mais benéfico, que determinada causa de majoração de pena seja retirada de uma fase da dosimetria e passada para outra. Essa situação não configura reformatio in pejus, mas uma readequação na dosimetria favorável à defesa. Um exemplo ajuda a entender melhor o afirmado. O concurso de pessoas qualifica o furto (CP, artigo 155, §4º, IV), dobrando a pena mínima de 1 (um) para 2 (dois) anos. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inúmeras vezes, provia recurso defensivo para afastar a qualificadora e considerar o concurso no furto como causa de aumento de pena, tal como ocorre no crime de roubo (CP, artigo 157, §2º, II), sendo que neste a fração de majoração varia de um terço até a metade. Ou seja, o furto deixava de ser qualificado, passando a ser simples, com a qualificadora transformada em causa de aumento de pena, gerando resultado mais favorável ao recorrente, portanto. Tal situação em nada se confunde com a mudança para pior em qualquer fase da dosagem da pena, feita de ofício pelo Tribunal, quando tal alteração vai de encontro ao interesse da defesa em recurso exclusivo seu – vide o exemplo acima em que um apelo defensivo pedindo a redução da fração de aumento de pena pela internacionalidade do tráfico de drogas foi utilizado para majorar a pena-base, sob o fundamento da amplitude da devolutividade.

Como anteriormente afirmado, a questão ainda não está consolidada, mas parece inaceitável que o Tribunal de apelação possa piorar a situação do acusado em determinada fase da dosimetria sem que tenha sido provocado pelo Ministério Público, mesmo que a pena final seja, em termos matemáticos, inferior àquela imposta na sentença recorrida.

Brasília, 9 de junho de 2015

Gustavo de Almeida Ribeiro

Furto, insignificância e um mínimo de razoabilidade

Furto, insignificância e um mínimo de razoabilidade

Temo que ao final do julgamento dos habeas corpus afetados ao Plenário do STF em que se discute a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ao furto (HC 123734, HC 123533 e HC 123108), tenhamos um resultado bem restritivo, afastando-se o citado postulado de acordo com a vida pregressa do acusado, ou em razão de qualquer qualificadora boba (a presença de 2 pessoas, por exemplo).

Entretanto, alguns julgados recentes do Tribunal mostram que essa vedação absoluta, na prática, vai gerar absurdos que saltam aos olhos de quem tem um mínimo de sensibilidade.

Em 2 de junho do corrente, foi julgado o HC 126866, pela 2ª Turma do STF, em que se discutia o furto de uma peça automotiva no valor de R$ 4,00. O paciente tinha sido condenado pela Justiça Mineira a 2 anos e 4 meses de reclusão, afastada a insignificância por ter ele condenação anterior por fato completamente diverso do furto. A ordem foi concedida por unanimidade pelo colegiado. O relator do feito foi o Ministro Gilmar Mendes.

Há algum tempo atrás, a mesma 2ª Turma do STF deferiu, também por unanimidade, o HC 117903, em que se discutia a aplicação da insignificância em furto de R$ 6,00 em milho. O relator deste caso foi o Ministro Ricardo Lewandowski que tem entendimento mais restritivo quanto ao princípio que o Ministro Gilmar Mendes e mesmo assim votou pela concessão da ordem. As instâncias anteriores também tinham invocado a folha de antecedentes do acusado para afastar a bagatela.

Espero que, independentemente do resultado do Plenário, situações como as duas narradas acima não sejam completamente ignoradas, mantendo-se hígidas condenações completamente despidas de qualquer razoabilidade.

Como o tema é instigante e bastante recorrente em minha atuação como Defensor Público Federal, pretendo voltar a ele.

Brasília, 8 de junho de 2015

Gustavo de Almeida Ribeiro

Maus antecedentes e período depurador

Maus antecedentes e período depurador

Gustavo de Almeida Ribeiro

O Código Penal atual estabeleceu, na redação a ele dada pela Lei 7.209/1984, em seu artigo 64, inciso I, limitação temporal máxima para a consideração de crime anterior como capaz de gerar reincidência. Assim, passados mais de 5 (cinco) anos entre o cumprimento ou a extinção da pena e a infração posterior, o acusado não será considerado reincidente.

Entretanto, o mesmo texto legal foi omisso quanto aos maus antecedentes, não fixando prazo máximo para a consideração de condenação anterior.

Assim, parte predominante da jurisprudência brasileira entendia não haver qualquer limitação temporal para a invocação de condenações pretéritas como maus antecedentes.

A Defensoria Pública da União, inconformada com a posição prevalecente, e com base principalmente na vedação contida na Carta Constitucional de 1988, mais precisamente em seu artigo 5º, inciso XLVII, “b”, que estabelece que não haverá penas de caráter perpétuo, impetrou diversos habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal pugnando pela aplicação do mesmo período depurador estabelecido para a verificação de reincidência, ou seja, 5 (cinco) anos.

Inicialmente, os pedidos restaram indeferidos, vide, como exemplo, decisão proferida pela Colenda 1ª Turma, em julgamento ocorrido em 08/02/2011, no RHC 106814.

Mais recentemente, entretanto, o citado colegiado alterou seu entendimento para limitar a consideração de maus antecedentes em 5 (cinco) anos após o final da pena, nos termos da decisão prolatada no julgamento do HC 119200, ocorrido em 11/02/2014 e no RHC 118977, julgado em 18/03/2014.

Por sua vez, a Colenda 2ª Turma, em julgamento datado de 22/04/2014, do RHC 116070, afastou o limite temporal para a aplicação dos maus antecedentes, sob o fundamento de não ser ele aplicável como ocorre na reincidência.

Entretanto, o E. Ministro Celso de Mello, ao conceder monocraticamente, em decisão proferida em 25/02/2015, o HC 123189, versando sobre a temática em comento, invocou precedente relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, julgado pela 2ª Turma, em que a ordem foi concedida. Trata-se do HC 110191, apreciado em 23/04/2013.

Foram pautados, em data recente, dois feitos por E. Ministros que compõem a 2ª Turma discutindo o mesmo assunto, são eles os Habeas Corpus 126315 e 125586. Em ambos, os Relatores votaram pela concessão da ordem, Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli respectivamente, sendo os julgamentos interrompidos por pedidos de vista formulados pela Ministra Cármen Lúcia, Relatora, aliás, do RHC 116070, supracitado.

Certo é que o tema, ao que parece, considerando-se as posições até agora externadas em julgamentos recentes por Ministros que compõem as duas Turmas, de forma majoritária, consolida-se cada vez mais no sentido do que buscado pela Defensoria Pública, ou seja, de que deve haver prazo máximo para a consideração de fato anterior como antecedente negativo, nos termos do que ocorre com a reincidência, que, frise-se, é mais grave e ainda assim é limitada no tempo.

O entendimento defendido pela Instituição tem como supedâneo principal a vedação das penas de caráter perpétuo, vez que condenação anterior não pode ser utilizada indefinidamente para majorar outra sem qualquer limite. Aliás, a se entender pela consideração de condenação pretérita como maus antecedentes independentemente de lapso temporal, cria-se uma pena que ultrapassa até mesmo o prazo máximo prescricional previsto no Brasil de 20 (vinte) anos, lembrando-se ser a prescritibilidade regra em nosso ordenamento.

Por fim, vai ao encontro das seguidas manifestações da Defensoria Pública quanto ao tema o disposto no artigo 80 do Anteprojeto de Código Penal, entregue em junho de 2012 ao Presidente do Senado pela Comissão Especial de Juristas, presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do STJ, que fixou prazo máximo de 5 (cinco) anos para a consideração de condenação anterior que não gere reincidência como maus antecedentes.

Adotada a redação sugerida pela Comissão, o problema estará sanado. Até lá, cumpre ao Poder Judiciário dar ao tema tratamento consentâneo com a proporcionalidade, a razoabilidade e a vedação das penas de caráter perpétuo.

Brasília, 22 de abril de 2015