Fio da navalha
Gustavo de Almeida Ribeiro
Cada carreira jurídica tem seus desafios e dificuldades e só quem as vivencia pode mensurá-las.
Ontem passei por essa situação no Plenário do Supremo Tribunal Federal.
A Defensoria Pública da União, que tem militância intensa perante a Justiça Militar da União, passou a alegar, valendo-se da alteração ocorrida em 2008 no Código de Processo Penal, que a mudança do interrogatório para o final da instrução processual, implementada pela Lei 11.719/08, deveria ser também aplicada aos feitos em trâmite perante a Justiça Castrense.
Os processos versando sobre o tema que aportaram no Superior Tribunal Militar obtiveram resposta negativa, pelo que a DPU passou a recorrer ao STF para reverter tal entendimento.
Como por vezes acontece, as duas Turmas da Suprema Corte trilharam caminhos diferentes, a Primeira concedendo os pedidos, em regra veiculados em habeas corpus, a Segunda denegando-os.
Após sustentar no RHC 123473, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, na sessão da 2ª Turma de 2 de setembro de 2014, com resultado desfavorável, percebi que apenas 10 dias depois a Ministra Cármen Lúcia tinha concedido liminar no HC 123228, versando exatamente sobre o mesmo tema.
Naquela oportunidade, já conhecia a divergência entre as Turmas, sabendo que a Primeira era favorável à tese esgrimida pela DPU, ao contrário da Segunda.
Em 11 de novembro de 2014, a Ministra Cármen Lúcia levou o HC 123228 para julgamento perante a Segunda Turma. Já tinha acontecido em outro feito sobre a mesma matéria de ela conceder a liminar e depois denegar a ordem, pelo que fiz questão de chamar a atenção para a frontal divergência entre as Turmas.
Assim, sustentei muito mais para destacar os entendimentos divergentes do que preocupado em repetir o que já havia dito – matéria exclusivamente de direito – há pouco mais de dois meses, para evitar deixar os Ministros enfadados.
A Turma resolveu então afetar o processo ao Plenário do STF para pacificar a questão.
O habeas corpus foi pautado para a sessão do Plenário do STF de 10 de dezembro de 2014, juntamente com diversos outros da DPU. Pouco antes de começar a sessão, me dei conta de que o habeas corpus tinha um problema sério: os interrogatórios tinham acontecido em 2007, antes mesmo da mudança ocorrida no Código de Processo Penal. Em suma, como as normas processuais não retroagem, ainda que os pacientes do citado HC 123228 tivessem sido interrogados na Justiça comum, não seria aplicável a regra do novo procedimento.
Pensei: se eles tiverem notado essa situação vou ser execrado em praça pública, embora os documentos estejam acostados aos autos. Torci muito para que o feito não fosse a julgamento naquele dia. E, de fato, não foi.
Por uma questão de lealdade com a Corte e para evitar problemas posteriores, avisei que os interrogatórios tinham sido antes da alteração legislativa logo após a sessão.
Achei que o feito fosse ser desafetado e denegado monocraticamente ou na Turma mesmo.
Nada disso, ele continuou na lista do Plenário.
Passei então a viver uma situação incômoda, por um lado, ter um processo com um tema relevante para a DPU com um caso concreto desfavorável, por outro, saber que a liminar estava deferida, suspendendo o andamento da ação penal militar, ou seja, uma vez avisada a situação, tinha cumprido meu dever ético, mas não poderia desistir do HC em respeito aos assistidos.
Quando o feito voltou à pauta, novamente entrei em contato com o gabinete da Ministra Cármen Lúcia. Ela insistiu em manter o processo afetado, pelo que nada mais me restava a fazer.
Aqui, faço outra ponderação. Não queria deixar a matéria ser julgada sem sustentar pelo medo de, em um tema totalmente antagônico entre as Turmas, os Ministros resolverem entrar no mérito sem que a Defensoria fosse ouvida. Por isso, não havia, em meu sentir, a opção de não sustentar.
Foi uma sensação estranha. Sabia que estava perdido, que nada poderia fazer, vez que a lei processual não retroagiria nem mesmo para o processo penal comum, por outro lado, tinha coisas relevantes a dizer e não poderia simplesmente ignorar que, bom ou não era aquele o precedente afetado e isso não depende de nós.
A ordem restou denegada, mas dei o recado em nome da DPU. Fui leal com a Corte, avisando a situação, vez que não poderia afirmar que os interrogatórios tinham ocorrido em data posterior àquela em que realmente se deram; por outro lado, a liminar foi mantida enquanto possível e as portas continuam abertas quanto ao tema de fundo. Foi cansativo e um pouco frustrante, mas dentro das possibilidades, era o que dava para fazer.
Brasília, 25 de junho de 2015