Alteração jurisprudencial e segurança jurídica
Gustavo de Almeida Ribeiro
Mudanças inopinadas em entendimentos jurisprudenciais são situações que têm ocorrido com alguma frequência no Supremo Tribunal Federal, atingindo, em meu sentir, a segurança jurídica.
Claro, a situação fica piorada pelo fato de que todas as alterações recentes são por modelos mais restritivos em termos penais e processuais penais, mas, mesmo em termos do estudo do Direito em si, penso ser a instabilidade bastante temerária.
Indiscutivelmente, os julgadores, os entendimentos, a sociedade, mudam. Todavia, tais alterações têm sido muito rápidas e, por vezes, sem respeitar processos já em andamento que acabam colhidos pela mudança entre a apreciação da liminar e o julgamento definitivo, por exemplo.
O HC 123199 encontra-se exatamente nessa situação. Em julho de 2014, o Ministro Roberto Barroso, relator, deferiu a liminar para suspender a execução da pena imposta ao paciente, condenado por furto simples tentado de canos de PVC, a 6 (seis) meses de detenção. Com a crescente restrição da Corte quanto à aplicação do princípio da insignificância, o Ministro relator, de forma monocrática, denegou a ordem, em novembro de 2016, baseando-se, para tanto, no novo entendimento do STF quanto ao delito de bagatela em caso de contumácia delitiva.
Reitero para simplificar: pena imposta: 6 (seis) meses; interregno entre a liminar concedida e a ordem denegada 1 (um) ano e 5 (cinco) meses.
Como fica a segurança jurídica no caso em exame? O Ministro relator, ao examinar a liminar, concedeu a medida, situação excepcional, por entender que estavam presentes os requisitos exigidos. Tempos depois, com situação completamente consolidada, em crime de bagatela, o paciente volta a ter contra si uma pena executável?
Em minha opinião, em casos como o apresentado acima (comuns, informo), deve prevalecer a segurança jurídica, aplicando-se a jurisprudência dominante quando da concessão da liminar ou do ajuizamento. Invoco outro exemplo corriqueiro. Foram muitos os habeas corpus não conhecidos quando o STF passou a exigir sua impetração em face de decisão colegiada, o que não acontecia até poucos anos. Deveriam ter sido admitidos aqueles ajuizados antes da mudança e imposta a nova restrição apenas aos que sobreviessem após a alteração no entendimento.
Lembro-me que cheguei a sustentar questão atinente à mudança jurisprudencial certa vez, não obtendo êxito, contudo – vide HC 114462, julgado e denegado pela 2ª Turma do STF, em 11/03/2014, cujo trecho de um dos votos vencidos, proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, transcrevo abaixo:
“Mas a mim, impressionou-me o segundo argumento trazido da tribuna, que é o argumento da segurança jurídica, que vai levar… Quer dizer, liminar concedida em 2012, agosto de 2012; um crime de furto tentado simples; duas tábuas, parece-me. E, aí, o dado objetivo é inequívoco, como o próprio Relator reconhece.
Eu tenho uma enorme dificuldade de vencer esse argumento. E, não podendo avançar além, não podendo deixar de levar em conta a configuração concreta do caso para conceder a ordem, tendo em vista exatamente a chamada proporcionalidade em sentido concreto de que fala o Procurador, de fato, vamos estar, aqui, permitindo que esse processo prossiga, muito provavelmente, para que não se aplique a pena, sem que haja nenhuma utilidade.”
De qualquer modo, ainda que em termos de competência ou de matéria eleitoral, o STF já esposou entendimento que penso ser o mais consentâneo com a segurança jurídica. O raciocínio apresentado nos julgados cujas ementas colaciono abaixo pode ser aplicado em qualquer matéria. Segurança jurídica é essencial. Confere estabilidade, evita surpresas e minimiza as injustiças.
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. REELEIÇÃO. PREFEITO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. I. REELEIÇÃO. MUNICÍPIOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. PREFEITO. PROIBIÇÃO DE TERCEIRA ELEIÇÃO EM CARGO DA MESMA NATUREZA, AINDA QUE EM MUNICÍPIO DIVERSO.
(…)
II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO. Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior. III. REPERCUSSÃO GERAL. Reconhecida a repercussão geral das questões constitucionais atinentes à (1) elegibilidade para o cargo de Prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo da mesma natureza em Município diverso (interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição) e (2) retroatividade ou aplicabilidade imediata no curso do período eleitoral da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que implica mudança de sua jurisprudência, de modo a permitir aos Tribunais a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. IV. EFEITOS DO PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Recurso extraordinário provido para: (1) resolver o caso concreto no sentido de que a decisão do TSE no RESPE 41.980-06, apesar de ter entendido corretamente que é inelegível para o cargo de Prefeito o cidadão que exerceu por dois mandatos consecutivos cargo de mesma natureza em Município diverso, não pode incidir sobre o diploma regularmente concedido ao recorrente, vencedor das eleições de 2008 para Prefeito do Município de Valença-RJ; (2) deixar assentados, sob o regime da repercussão geral, os seguintes entendimentos: (2.1) o art. 14, § 5º, da Constituição, deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo de Chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da federação diverso; (2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.” (RE 637485, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-095 DIVULG 20-05-2013 PUBLIC 21-05-2013) grifo nosso
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA JUDICANTE EM RAZÃO DA MATÉRIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO, PROPOSTA PELO EMPREGADO EM FACE DE SEU (EX-)EMPREGADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 114 DA MAGNA CARTA. REDAÇÃO ANTERIOR E POSTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04. EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSOS EM CURSO NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS. IMPERATIVO DE POLÍTICA JUDICIÁRIA. Numa primeira interpretação do inciso I do art. 109 da Carta de Outubro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, ainda que movidas pelo empregado contra seu (ex-)empregador, eram da competência da Justiça comum dos Estados-Membros. 2. Revisando a matéria, porém, o Plenário concluiu que a Lei Republicana de 1988 conferiu tal competência à Justiça do Trabalho. Seja porque o art. 114, já em sua redação originária, assim deixava transparecer, seja porque aquela primeira interpretação do mencionado inciso I do art. 109 estava, em boa verdade, influenciada pela jurisprudência que se firmou na Corte sob a égide das Constituições anteriores. 3. Nada obstante, como imperativo de política judiciária — haja vista o significativo número de ações que já tramitaram e ainda tramitam nas instâncias ordinárias, bem como o relevante interesse social em causa –, o Plenário decidiu, por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o advento da EC 45/04. Emenda que explicitou a competência da Justiça Laboral na matéria em apreço. 4. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito. É dizer: as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04, lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impõe, em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação. 5. O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete. 7. Conflito de competência que se resolve, no caso, com o retorno dos autos ao Tribunal Superior do Trabalho.” (CC 7204, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2005, DJ 09-12-2005 PP-00005 EMENT VOL-02217-2 PP-00303 RDECTRAB v. 12, n. 139, 2006, p. 165-188 RB v. 17, n. 502, 2005, p. 19-21 RDDP n. 36, 2006, p. 143-153 RNDJ v. 6, n. 75, 2006, p. 47-58) grifo nosso
Brasília, 6 de dezembro de 2016