Despacho do Ministro Ricardo Lewandowski no HC coletivo 143641
Segue, abaixo, transcrição do despacho do Ministro Ricardo Lewandowski proferido no HC 143641 (gestantes e mães e colocação em prisão domiciliar).
Gustavo de Almeida Ribeiro
Brasília, 21 de agosto de 2017
HC 143641
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
PACTE.(S):TODAS AS MULHERES SUBMETIDAS À PRISÃO CAUTELAR NO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL, QUE OSTENTEM A CONDIÇÃO DE GESTANTES, DE PUÉRPERAS OU DE MÃES COM CRIANÇAS COM ATÉ 12 ANOS DE IDADE SOB SUA RESPONSABILIDADE, E DAS PRÓPRIAS CRIANÇAS
IMPTE.(S): ELOISA MACHADO DE ALMEIDA E OUTRO(A/S)
ASSIST.(S): DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO CEARA
ADV.(A/S): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DO CEARÁ
ASSIST.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
ADV.(A/S: DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DO PARANÁ
COATOR(A/S)(ES): JUÍZES E JUÍZAS DAS VARAS CRIMINAIS ESTADUAIS
COATOR(A/S)(ES): TRIBUNAIS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
COATOR(A/S)(ES): JUÍZES E JUÍZAS FEDERAIS COM COMPETÊNCIA CRIMINAL
COATOR(A/S)(ES): TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Trata-se de habeas corpus coletivo proposto em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.
A Defensoria Pública Estadual do Ceará requereu sua intimação regular para prosseguimento do feito (documento eletrônico 26).
A Defensoria Pública da União ingressou no feito (documento eletrônico 29), aduzindo ser essencial sua participação, seja pelos reflexos da decisão nos direitos de um grupo vulnerável, seja por sua expertise nos temas objeto do presente habeas corpus.
Quanto às questões de fundo, sustentou, primeiramente, a possibilidade de impetração de habeas corpus coletivo, invocando para tanto o histórico da “doutrina brasileira do habeas corpus”, a existência do mandado de segurança e do mandado de injunção coletivos e a legitimação da Defensoria Pública para a propositura deste último, tudo a demonstrar: (i) “a caminhada das ações constitucionais em direção às soluções coletivas”; (ii) “o reconhecimento da representatividade da Defensoria Pública”.
Acrescentou que, embora seja indiscutível que em várias situações tuteláveis por habeas corpus dependam de análises individuais pormenorizadas, outras há em que os conflitos podem ser resolvidos coletivamente. Citou como exemplo o caso do HC 118.536, em cujo bojo a Procuradoria-Geral da República ofertou parecer pelo conhecimento e pela concessão da ordem.
Em segundo lugar, defendeu ser devido o reconhecimento do direito que assiste às mães de crianças sob sua responsabilidade ou gestantes de não serem recolhidas à prisão cautelarmente, ressaltando ser comum a situação da mulher presa cautelarmente que é, ao final, condenada à pena restritiva de direito, o que não reverte os danos sofridos pela mãe e pela criança.
Enfatizou serem vários os precedentes do Supremo Tribunal Federal em prol da tese constante da inicial.
Requereu seja admitida para atuar no feito e, no mérito, pleiteou o conhecimento do habeas corpus coletivo e da concessão da ordem.
O Departamento Penitenciário do Estado do Paraná apresentou os dados de mulheres presas na Penitenciária Feminina daquele Estado, cumprindo a decisão anterior de minha lavra (documento eletrônico 31).
É o relatório. Decido.
Diante da manifestação da Defensoria Pública da União para atuar no feito, passo a apreciar a questão do cabimento do habeas corpus coletivo, cuja resposta entendo ser positiva.
Com efeito, como já afirmei no Recurso Extraordinário (RE) 612043-PR, as relações sociais tem progressivamente contraposto grupos sociais a organizações burocráticas. Esse é um traço cada vez mais marcante da configuração atual da sociedade. A solução que se afigura possível para garantir acesso à Justiça aos grupos sociais vulneráveis nesse contexto burocratizado é a ação coletiva.
De forma coerente com essa realidade ora narrada, o Supremo Tribunal Federal vem alargando o uso dos institutos para lidar com situações em que os direitos de coletividades estão sob risco de grave lesão. Tem-se admitido ampla utilização da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), assim como do mandado de injunção coletivo.
Com maior razão, deve-se autorizar o uso do habeas corpus na forma coletiva. Honra-se, desta forma, a tradição brasileira de dar a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como “doutrina brasileira do habeas corpus”, que encontrou em Ruy Barbosa um grande defensor. Segundo essa doutrina preconizava, se há um direito sendo violado, deve haver um remédio à altura da lesão.
Numa sociedade burocratizada, a lesão pode assumir caráter coletivo e, neste caso, o justo consiste em disponibilizar um remédio efetivo e funcional para a proteção da coletividade – mormente de coletividades vulneráveis socioeconomicamente.
Foi com semelhante quadro que se deparou a Suprema Corte Argentina no famoso caso Verbitsky. Na Argentina, assim como no Brasil, não existe previsão constitucional expressa de existência de habeas corpus coletivo, mas essa omissão legislativa não impediu o conhecimento do writ pela Corte. Nesse julgamento, o habeas corpus coletivo foi visto pela maioria dos membros da Suprema Corte como compatível com a natureza dos direitos a serem tutelados que, tal como neste caso concreto, diziam respeito a direitos fundamentais de pessoas presas em condições insalubres.
É importante destacar que a Suprema Corte de Justiça recorreu ao direito convencional – sobretudo às Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos – como fundamentação central da decisão tomada, na qual determinou tanto a tribunais que lhe são hierarquicamente inferiores quanto aos Poderes Executivo e Legislativo a tomada de medidas para sanar a situação de inconvencionalidade a que estavam sujeitos os presos.
Assim, para além de tradições jurídicas similares, temos com a República Argentina também um direito convencional comum que deve levar esta Suprema Corte à reflexão dos instrumentos jurídicos que devem estar disponíveis para superar situações de ofensa ao direito convencional relativo aos direitos humanos.
No Brasil, além da já citada “doutrina brasileira do habeas corpus”, que integra a história do instituto em questão e mostra o quanto ele pode ser maleável diante das lesões aos direitos fundamentais, temos ainda dispositivos legais que encorajam à superação de posicionamento no sentido do não cabimento do writ na forma coletiva.
Nesse sentido, destaco o art. 654, § 2º do Código de Processo Penal, que preconiza a competência de juízes e os tribunais “para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal” (grifei). A faculdade de concessão, ainda que de ofício, de habeas corpus, revela o quanto o remédio heroico é flexível e estruturado de forma a combater, de forma célere e eficaz, às ameaças e lesões a direitos relacionados ao status libertatis do paciente. Indispensável destacar, ainda, que a ordem pode ser estendida a todos que se encontram na mesma situação, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.
Não é por acaso que, episodicamente, o habeas corpus coletivo vem sendo conhecido e provido em outras instâncias do Poder Judiciário, tal como ocorreu no HC 1080118354-9, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos HCs 207.720/SP e 142.513/ES, ambos do Superior Tribunal de Justiça. Neste último, o exercício da faculdade de extensão da ordem todos os que estivavam na mesma situação transformou o referido habeas corpus individual em legítimo habeas corpus coletivo, “substituindo-se a prisão em contêiner por prisão domiciliar, com extensão a tantos quantos – homens e mulheres – estejam presos nas mesmas condições”.
Note-se que, feita a extensão, não se exige a nome de cada paciente, nos termos do art. 654, § 1º, a, do Código de Processo Penal e, por igual razão, não se deve exigir tal requisito no habeas corpus coletivo, lembrando-se que a interpretação do Código de Processo Penal deve ser orientada pelo prisma constitucional.
A existência de outras ferramentas disponíveis para suscitar a defesa coletiva de direitos – notadamente, em casos como o presente, a ADPF, não deve ser óbice ao conhecimento deste habeas corpus. O rol de legitimados dos instrumentos não é o mesmo, sendo consideravelmente mais restrito na ADPF, e o acesso à Justiça em nosso País, sobretudo das mulheres presas e pobres (talvez um dos grupos mais oprimidos do Brasil), por ser notoriamente insuficiente, não pode prescindir da atuação da sociedade civil na defesa de direitos. Deve-se extrair do habeas corpus, instrumento flexível e relevante, sua mais ampla potencialidade, nos termos dos princípios ligados ao acesso à Justiça da Constituição e ao art. 25 do Pacto de São José da Costa Rica.
Considero fundamental que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem referente aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, e passe a fortalecer remédios de natureza coletiva quando os direitos em perigo disserem respeito a uma coletividade, contribuindo, assim, não apenas para maior isonomia e celeridade na cessação de lesões a direitos, mas, sobretudo, para a maior legitimação do sistema político brasileiro.
No caso concreto, essa ratio decidendi fica fortalecida pelo reconhecimento do ‘Estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro, tal como levado a efeito por esta Suprema Corte quando do julgamento da ADPF 347 MC/DF. Naquele julgamento, a qual a narrativa do presente habeas corpus – de insuficiência estrutural específica em relação à situação da mulher presa – foi expressamente abordada.
A despeito do cabimento do habeas corpus coletivo, penso, com a devida venia, que são necessários certos parâmetros em termos de legitimidade ativa, como, aliás, é a regra em se tratando de ações de natureza coletiva. Parece, nesse sentido, que por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo (art. 12, IV, da Lei 13.300/2016), o ideal é reconhecer a legitimidade ativa à Defensoria Pública da União, por se tratar de ação de caráter nacional, e admitir as impetrantes como assistentes, em condição análoga à atribuída às demais Defensorias Públicas atuantes no feito.
Em relação a estas últimas, ficam cientes do procedimento para habilitação no sistema de intimação eletrônica, previsto no edital publicado na edição extra do DJe (245/2016), divulgado em 17/11/2016 e publicado em 18/11/2016.
Sendo assim, corrija-se a autuação. No mais, dê-se ciência às interessadas e à Procuradoria-Geral da República do teor desta decisão e dos documentos juntados aos autos pelo Depen do Paraná.
Publique-se.
Brasília, 15 de agosto de 2017.
Ministro Ricardo Lewandowski
Relator