Insignificância, reiteração e furto “famélico”
Apresentei, em 28 de junho de 2018, agravo interno em face de decisão monocrática proferida pelo Ministro Dias Toffoli, da 2ª Turma do STF, no HC 143921, impetrado em favor de paciente, assistido pela Defensoria Pública, acusado do furto simples de uma bermuda no valor de R$ 10,00, devolvida intacta ao dono da loja de onde foi subtraída.
O paciente está em situação de rua e faz uso de álcool, tanto que estava embriagado ao ser preso em flagrante.
Embora o bem subtraído não seja comida, tal como ocorrido no precedente invocado nas razões recursais que serão colacionadas abaixo (HC 119672), a expressão “famélica” pode ser usada para outras necessidades essenciais de uma pessoa, como vestir-se, por exemplo.
Espero ter mais sorte no julgamento do agravo.
Gustavo de Almeida Ribeiro
Brasília, 29 de junho de 2018
DAS RAZÕES RECURSAIS
O presente agravo volta-se contra a r. decisão monocrática que negou seguimento ao habeas corpus, considerando que a decisão proferida pela Sexta Turma não evidencia ilegalidade ou abuso de poder.
A r. decisão monocrática entendeu que o acórdão do Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça está em sintonia com a jurisprudência da Suprema Corte, considerando-se ser o agravante reincidente, não podendo, portanto, ser reconhecida a insignificância no caso em questão.
Tal entendimento não merece prosperar, uma vez que os requisitos a serem considerados para a aplicação da bagatela têm natureza objetiva: a) a mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Não se desconhece, entretanto, que aspectos de caráter subjetivo, como reiteração delitiva, têm sido considerados pelas instâncias judiciais na verificação da insignificância.
Todavia, ainda que sejam invocados os antecedentes do acusado, a consideração, de forma divorciada da conduta efetivamente praticada, de aspectos subjetivos para a aplicação do princípio da insignificância pode causar, como no caso em tela, condenações desproporcionais, baseadas exclusivamente na vida pregressa, ainda que o bem jurídico protegido não tenha sofrido qualquer ofensa.
Como já mencionado na narração dos fatos, o bem subtraído e imediatamente recuperado era uma bermuda no valor de R$ 10,00 (dez reais), furtada de uma loja pelo agravante. É completamente desarrazoada a imposição de pena em regime fechado por conduta tão ínfima, ainda mais considerando-se o sistema carcerário brasileiro e a precariedade econômica do paciente.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal já se posicionou, aplicando o princípio da insignificância em casos de pacientes portadores de antecedentes, pontuando que a reincidência, por si só, não tem o condão de afastar o princípio da bagatela.
“Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA ATO DE MINISTRO DE TRIBUNAL SUPERIOR. INCOMPETÊNCIA DESTA CORTE. TENTATIVA DE FURTO. ART. 155, CAPUT, C/C ART. 14, II, DO CP). REINCIDÊNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. FURTO FAMÉLICO. ESTADO DE NECESSIDADE X INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. SITUAÇÃO DE NECESSIDADE PRESUMIDA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. HABEAS CORPUS EXTINTO POR INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. A aplicação do princípio da insignificância deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de se evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais. 3. O valor da res furtiva não pode ser o único parâmetro a ser avaliado, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato para decidir-se sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela, bem assim o reflexo da conduta no âmbito da sociedade. 4. In casu, a) a paciente foi presa em flagrante e, ao final da instrução, foi condenada à pena de 4 (quatro) meses de reclusão pela suposta prática do delito previsto no art. 155, caput, c/c o art. 14, II, do Código Penal (tentativa de furto), pois, tentou subtrair 1 (um) pacote de fraldas, avaliado em R$ 45,00 (quarenta e cinco reais) de um estabelecimento comercial. b) A atipicidade da conduta está configurada pela aplicabilidade do princípio da bagatela e por estar caracterizado, mutatis mutandis, o furto famélico, diante da estado de necessidade presumido evidenciado pelas circunstâncias do caso. 5. O furto famélico subsiste com o princípio da insignificância, posto não integrarem binômio inseparável. É possível que o reincidente cometa o delito famélico que induz ao tratamento penal benéfico. 6. Os fatos, no Direito Penal, devem ser analisados sob o ângulo da efetividade e da proporcionalidade da Justiça Criminal. Na visão do saudoso Professor Heleno Cláudio Fragoso, alguns fatos devem escapar da esfera do Direito Penal e serem analisados no campo da assistência social, em suas palavras, preconizava que “não queria um direito penal melhor, mas que queria algo melhor do que o Direito Penal”. 7. A competência desta Corte para a apreciação de habeas corpus contra ato do Superior Tribunal de Justiça (CRFB, artigo 102, inciso I, alínea “i”) somente se inaugura com a prolação de decisão do colegiado, salvo as hipóteses de exceção à Súmula nº 691 do STF, sendo descabida a flexibilização desta norma, máxime por tratar-se de matéria de direito estrito, que não pode ser ampliada via interpretação para alcançar autoridades – no caso, membros de Tribunais Superiores – cujos atos não estão submetidos à apreciação do Supremo. 8. Habeas corpus extinto por inadequação da via eleita. Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da ação penal, em razão da atipicidade da conduta da paciente.” (HC 119672, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/05/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-106 DIVULG 02-06-2014 PUBLIC 03-06-2014) (grifos nossos)
“Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. FURTO SIMPLES. REINCIDÊNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. A aplicação do Princípio da Insignificância, na linha do que decidido por esta Corte, pressupõe ofensividade mínima da conduta do agente, reduzido grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão jurídica causada e ausência de periculosidade social. (Precedente). 2. No julgamento conjunto dos HC’s 123.108, 123.533 e 123.734 (Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 01.02.2016) o Plenário desta Corte firmou o entendimento de que, no delito de furto simples, a reincidência não impede, por si só, a possibilidade de atipia material. Também foi acolhida a tese de que, afastada a possibilidade de reconhecimento do princípio da insignificância por furto, “eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, § 2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade”. 3. No caso em análise, trata-se de furto simples de um botijão de gás usado, avaliado em R$ 80,00 (oitenta reais), em que a res furtiva, além ser de pequena monta, foi restituída à vítima. Ademais, não está caracterizada a habitualidade delitiva específica em delitos patrimoniais. 4. Recurso provido para restabelecer a sentença de primeiro grau, que reconheceu a aplicação do princípio da insignificância e absolveu o paciente do delito de furto.” (RHC 140017, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 13/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-140 DIVULG 26-06-2017 PUBLIC 27-06-2017) (grifos nossos)
Verifica-se, no caso em tela, que o agravante, como foi apontado por seus familiares, não tem paradeiro certo, é dependente químico (álcool) e foi condenado pelo furto de mercadoria avaliada em R$ 10,00 (dez reais), que posteriormente foi restituída à vítima de forma integral e em perfeitas condições, não havendo que se falar em lesividade ao bem jurídico tutelado.
Ainda, é imperioso ressaltar a inadequação de se movimentar a máquina judiciária para se condenar um morador de rua a uma pena privativa de liberdade pelo furto de bem de valor irrisório.
O voto do Ministro Luiz Fux, condutor do acórdão do HC 119672, mencionado acima, traz considerações que se aplicam ao presente caso:
“É possível que o reincidente cometa o delito famélico que induz ao tratamento penal benéfico.
Alguns autores sustentam que o furto famélico decorre da inexigibilidade de conduta diversa, outros, como Nélson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso (Comentários ao Código Penal, 4ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1980, vol. VII, p. 34), afirmam que essa causa extinção da ilicitude está umbilicalmente ligada ao estado de necessidade, in verbis :
“Furto necessitado. Desde a Idade Média, por influência do direito canônico, se reconhecia a impunibilidade do furto famélico, isto é, do furto praticado por quem em estado de estrema penúria, é impelido pela fome (coactus fame), pela inadiável necessidade (propter necessitatis vim) de se alimentar. Discutiam os doutores sobre o fundamento de tal impunibilidade: ora se dizia que a necessidade excluía o dolo específico do furto, ora que fazia retornar as coisas ao primitivo estado de comunhão (necessitas legem). A Carolina expressamente isentava de pena o furto quando premido o agente pela necessidade de se alimentar a si próprio e à sua família.
Na França, ao tempo do bom juge MAGNAUD, o furto necessitado foi um tema rumorosamente debatido, e como o Código de Napoleão não contemplasse, como excludente de crime, o estado de necessidade, a isenção de pena foi admitida, em famosa decisão do Tribunal de Chateau-Thierry, porque ‘a fome é suscetível de privar parcialmente a todo ser humano o livre-arbítrio e reduzir nele, em grande parte, a noção do bem e do mal’. Presentemente, o estado de necessidade figura nos códigos penais em geral como descriminte, e na sua órbita se inclui o furto famélico, o que vale dizer que é um fato penalmente lícito.”
No Direito Penal, os fatos devem ser analisados sob o ângulo da efetividade e da proporcionalidade da Justiça Criminal. Na visão do saudoso Professor Heleno Cláudio Fragoso, alguns fatos deveriam escapar da esfera do Direito Penal e serem analisados no campo da assistência social, em suas palavras, preconizava que “não queria um direito penal melhor, mas que queria algo melhor do que o Direito Penal”. (grifos nossos)
No HC 119672, paradigma, discutia-se a subtração de um pacote de fraldas por uma mãe; no caso em análise, o agravante, sem residência, usuário de álcool, teria subtraído uma peça simples de roupa (bermuda), certamente pela necessidade de se vestir.
A lesão irrisória mencionada no édito condenatório sequer justifica a movimentação da máquina estatal em desfavor de alguém tão desamparado. Ao contrário do afirmado do Douto Juízo prolator da r. sentença condenatória: “a censura para o milhão há de ser a mesma para o tostão”, ensinava o Eminente Ministro Eros Grau:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. A subtração de aparelho celular cujo valor é inexpressivo não justifica a persecução penal. O Direito Penal, considerada a intervenção mínima do Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões significativas aos bens juridicamente tutelados. Aplicação do princípio da insignificância, no caso, justificada. Ordem deferida.” (HC 96496, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 10/02/2009, DJe-094 DIVULG 21-05-2009 PUBLIC 22-05-2009 EMENT VOL-02361-04 PP-00776) (grifos nossos)
Por fim, cumpre destacar o parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra do Subprocurador-Geral Edson Oliveira de Almeida, favorável à concessão da ordem para reconhecer a atipicidade da conduta, in verbis:
“Porém, as circunstâncias do caso concreto apontam para a atipicidade. O valor do bem furtado é irrisório e, não obstante os antecedentes desfavoráveis, não há qualquer outro dado que acrescente relevância ou maior reprovabilidade à conduta do paciente, um pobre morador de rua e alcoólatra: o fato atribuído ao paciente não tem dignidade penal E, como tal, é atípico.”
Assim, deve ser concedida a ordem, posto que a reincidência do agravante não é capaz de afastar a aplicação do princípio da insignificância, ocasionando a condenação por conduta penalmente irrelevante.