Dosimetria penal no tráfico – quantidade e qualidade das drogas
Pediram que eu colocasse aqui o memorial apresentado no HC 153339, em que se discute o momento de aplicação das circunstâncias “quantidade” e “qualidade” das drogas na dosimetria penal do crime de tráfico.
O STF já fixou a tese no sentido de que a quantidade e a qualidade das drogas não podem ser utilizadas em das fases da dosimetria, sob pena de inadmissível bis in idem, devendo ser escolhida a primeira fase ou a terceira para sua incidência (HC 112776, STF, Plenário, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 30/10/2014).
Todavia, há julgados cindindo as duas circunstâncias, aplicando uma delas em cada fase, o que, segundo entendo, acaba por gerar majoração indevida na pena imposta.
Infelizmente, nunca consegui sustentar o tema, já que ele nunca foi levado ao colegiado sem a necessidade de interposição de agravo, todavia, apresentei memoriais que serão abaixo transcritos.
Gustavo de Almeida Ribeiro
Brasília, 12 de dezembro de 2018
BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS
O paciente foi condenado pela suposta incursão na conduta prevista no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006 à pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de reclusão, em regime inicial aberto, bem como ao pagamento de 200 dias-multa. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direitos.
A sentença foi parcialmente reformada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que, dando provimento a recurso do Ministério Público, alterou a fração aplicada para a causa de redução de pena do §4º do art. 33 da Lei de Drogas, majorando a pena cominada – estabelecendo-a em 5 anos e 1 mês de reclusão – e, por conseguinte, modificou para o semiaberto o regime inicial de cumprimento da pena.
A Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina interpôs revisão criminal, a qual foi indeferida.
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus junto ao STJ, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que indeferiu a revisão criminal, por meio do qual requereu-se a revisão de pena empregada ao paciente, para aplicar a fração redutora prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, no patamar máximo, bem como aplicação, na primeira fase da dosimetria, da exasperação de 1/6, com consequente modificação do regime de pena para o aberto e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Em decisão monocrática, o habeas corpus não foi conhecido, porém concedeu-se ordem de ofício para se reduzir a pena-base do paciente, sendo fixada a pena final em 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime inicial semiaberto.
Inconformada, a defesa interpôs agravo regimental sob a alegação da incidência de bis in idem ao se considerar a natureza da droga para elevar a pena-base e sua quantidade para reduzir o percentual de diminuição na terceira fase da dosimetria. Além disso, requereu o restabelecimento da aplicação da minorante prevista no artigo 33, §4.º, da Lei 11.343/2006, no patamar de 2/3 (dois terços), tal como determinara a sentença. O agravo foi desprovido.
Em seguida, foi impetrado habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, sendo a ordem denegada. Assim, a defesa interpôs agravo interno, que, espera, seja conhecido e provido.
DOS FUNDAMENTOS PARA A CONCESSÃO DA ORDEM
O julgado atacado pela impetração mostra de forma cristalina a razão do inconformismo do paciente. Calha transcrever trecho da decisão monocrática prolatada pelo Ministro Relator, no STJ, mantida em sede de agravo interno:
“No caso, conforme relatado, o magistrado de primeiro grau aplicou o § 4º do art. 33 da Lei de Drogas no patamar máximo (2/3). O Tribunal a quo, porém, em recurso da acusação, alterou essa fração para 1/6, sob o fundamento, dentre outros, de que a qualidade e a variedade das drogas bastam para o aumento da pena-base e a elevada quantidade para justificar a aplicação dessa minorante em patamar inferior. Confira-se, aliás, o seguinte trecho do acórdão (…)” (HC 406252, STJ, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe 15/12/2017)
Em síntese: quantidade e qualidade das drogas apreendidas com o paciente foram cindidas, sendo cada uma delas usada em uma fase da dosimetria penal.
Não há, com a devida vênia, qualquer necessidade de reexame de fatos e provas, sendo a discussão totalmente jurídica. O inconformismo da defesa limita-se à cisão feita pelo TJSC ao apreciar a quantidade e a qualidade da droga em duas fases da dosagem da pena.
A situação em questão não se confunde com o precedente firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 112.776/MS.
Todavia, respeitosamente, cumpre esclarecer que o mencionado julgado vedou a aplicação da quantidade e da qualidade das drogas em duas fases de dosimetria, sem, contudo, permitir que as duas fossem fracionadas, sendo uma invocada na primeira fase e outra na terceira.
O julgado mencionado, HC 112776, foi encerrado após amplo debate ocorrido no Plenário da Suprema Corte, oportunidade em que foi afastada a aplicação da quantidade e da qualidade das drogas em duas fases da fixação da pena.
É interessante observar que, no citado precedente, o paciente era acusado de portar 14,945 kg de maconha e 150 gramas de haxixe[1]. Assim, se prevalecesse o entendimento esposado nas instâncias anteriores, a quantidade de maconha poderia ter sido invocada para se manter a majoração na primeira fase e o haxixe, pela qualidade, para manter o aumento na terceira fase. O resultado seria a denegação da ordem.
No caso em análise, o paciente estava na posse de 451,4g de cocaína e 91,3g de maconha, quantidades bem inferiores àquelas do precedente do Plenário do STF.
O entendimento mais consentâneo com a proporcionalidade é que os dois aspectos sejam considerados em uma única fase, influenciando, de acordo com a situação concreta, no percentual de majoração da pena-base ou na fração de redução.
Em suma, as duas circunstâncias devem ser analisadas em conjunto, em uma só fase de dosimetria, influenciando mais ou menos no cômputo da pena de acordo com a quantidade/qualidade.
Calha rememorar que, em 08/02/2018, foi proferida decisão monocrática pelo Ministro Relator Celso de Mello, nos autos do HC 141.350, que veiculava discussão jurídica muito semelhante à do Habeas Corpus ora em análise.
Discutia-se, assim como nesta situação, a legalidade de se valorar negativa e separadamente a natureza e a quantidade da substância ou do produto, para, então, tornar possível o aumento da pena-base e a redução do percentual de diminuição na terceira fase da dosimetria simultaneamente.
No mencionado decisum, entendeu-se que a natureza e a quantidade são indissociáveis, não sendo possível a sua valoração em separado, em fases diferentes da fixação da pena. In verbis:
“O art. 42 da Lei de Drogas dispõe que serão considerados, em caráter preponderante, na operação de dosimetria penal, três ordens de fatores: (1) natureza e quantidade da substância ou do produto; (2) a personalidade; e (3) a conduta social do agente.
Vê-se desse conjunto de vetores que cada qual se apresenta de modo autônomo, sendo incindível, por isso mesmo, para os fins e efeitos a que se refere a norma legal mencionada, o fator “natureza e quantidade da substância ou do produto”, a significar que tais elementos (natureza e quantidade), por revelarem-se indecomponíveis, não deverão receber abordagem individualizada, sob pena de ofensa à vedação fundada no postulado “non bis in idem”.
Na realidade, não cabe utilizar, separadamente, nas fases distintas em que se divide o procedimento de dosimetria penal, a natureza da droga na definição da pena-base, para, em momento posterior, considerar-se, de modo isolado, a quantidade dessa mesma droga apreendida.
Disso resulta, portanto, que a natureza e a quantidade da droga apreendida, por constituírem vetor indissociável, devem ser consideradas globalmente, “in solidum”, seja na primeira etapa, seja no terceiro momento, do método trifásico em que se desenvolve a operação de dosimetria da pena.” (HC 141350, Min. Celso de Mello, DJe 14/02/2018) (Grifo nosso)
Diante da inquestionável semelhança entre o caso anterior e o atual, requer a Defensoria Pública da União a aplicação do entendimento firmado para que seja concedida a ordem, aplicando-se o benefício do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas nos mesmos percentuais utilizados pela r. sentença de primeiro grau.
DO PEDIDO
Ante o exposto, requer seja provido o agravo e concedida a ordem de habeas corpus.
[1] “O Haxixe causa muitos efeitos e alguns até variados dependendo do organismo daquele que ingere a droga. Se assemelham aos efeitos da maconha, porém muitos mais intensos devido a grande diferença de THC.” Disponível em: https://www.infoescola.com/drogas/haxixe/. Acesso em: 19 out. 2017