Hierarquia e disciplina para quem?
Gustavo de Almeida Ribeiro
A Justiça Militar da União ainda julga, no Brasil democrático de 2015, civis, pela suposta prática de crimes militares impróprios.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, há tempos, entendeu ser indevida a submissão de civis a Tribunais Militares, conforme sempre adverte o Ministro Celso de Mello em incontáveis votos, vide, à guisa de exemplificação, o HC 105256, por ele relatado, com julgamento em 12 de junho de 2012, pela Segunda Turma do STF.
O tema é palpitante, sendo que existem diversas ações de todos os tipos em que ele é discutido, notadamente a ADPF 289, relatada pelo Ministro Gilmar Mendes, ainda pendente de apreciação pelo Plenário da Suprema Corte.
Parece crescer cada vez mais o entendimento de que os julgamentos, tal como são feitos hoje, não podem permanecer. A submissão de um civil à Justiça Militar, composta, em primeiro grau, por cinco julgadores, sendo quatro deles militares e um Juiz-Auditor concursado, mostra-se inadequada em uma democracia. Importa lembrar que os Juízes militares funcionam por três meses e continuam a desenvolver seus serviços normais, o que pode acabar prejudicando sua independência.
Em meu sentir, a solução adequada seria o afastamento da competência da Justiça Militar da União para julgar civis, como ocorre, aliás, com a Justiça Militar dos Estados. Entretanto, parece ganhar força uma solução intermediária, que eu considero paliativa e que está longe de resolver boa parte dos problemas advindos do julgamento de cidadãos comuns pela Justiça Castrense.
Segundo os defensores de tal posição, os civis continuariam a ser julgados na Justiça Militar, mas apenas pelos Juízes-Auditores e não pelo colegiado. Nesse sentido, aliás, parece estar o PL 7683/2014, remetido à Câmara dos Deputados pelo Superior Tribunal Militar. Tal medida amenizaria os problemas, mas não seria capaz de atingir a maior parte das perplexidades advindas da competência da Justiça Militar para o julgamento de civis.
Calha destacar, para reflexão, aspectos em que a citada mudança não traria qualquer solução para os problemas apontados por quem atua perante a Justiça especializada.
Inicialmente, o recurso continuaria a ser remetido para o Superior Tribunal Militar, STM, composto por quinze Ministros, sendo dez deles Militares, com sua visão ligada à vida na caserna, distante, portanto, de quem dela nunca fez parte.
Prosseguindo, são aplicáveis aos feitos julgados pela Justiça Castrense o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, anacrônicos, por não sofrerem as alterações que ocorrem na legislação penal e processual comum com frequência e, assim, manterem institutos já superados há muito e não receberem atualizações para torná-los consentâneos com os princípios constitucionais veiculados na Carta da República de 1988. Vale, como exemplo, enunciar que o CPM não prevê pena restritiva de direitos e que o CPPM ainda não foi alterado, transpondo-se o interrogatório do acusado para o final da instrução processual, tal como ocorreu com o Código de Processo Penal. Várias dessas situações são suscitadas diariamente por quem atua na área, notadamente a Defensoria Pública da União.
Claro que se reconhece que essa legislação que há muito carece de atualização é também nociva ao militar que será julgado na Justiça especializada, entretanto, pior ainda é aplicá-la aos civis que não optaram por ingressar na vida da caserna com todas as consequências a ela inerentes.
Exemplo clássico das consequências desse anacronismo ocorre nas ações de policiamento realizadas pelas Forças Armadas nas chamadas áreas de pacificação localizadas no Rio de Janeiro.
O cidadão carente morador de uma dessas chamadas “favelas pacificadas” que eventualmente seja acusado de crime de pequeno potencial ofensivo contra soldado do Exército Brasileiro, por exemplo, lesão corporal leve, será julgado perante a Justiça Castrense e não fará jus à aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais). Por outro lado, se uma pessoa praticar a mesma conduta em face de um policial militar, será julgada pela Justiça comum, com recurso para Juízes civis, podendo optar pelos institutos previstos na Lei dos Juizados Especiais. Tratar duas pessoas em situação igual de forma distinta indica ofensa ao princípio da igualdade. Nem se diga que uma delas seria moradora de área conflagrada, pois tal afirmação só reforçaria que para os pobres o rigor pode ser mais elevado, mesmo quando a conduta é a mesma, a não ser que carência econômica seja motivo para punição mais severa, em uma espécie de coculpabilidade às avessas. Essa opção leva à conclusão de que todos os moradores da favela, de início, são criminosos, o que nem de longe é verdade. O fato deve ser punido de acordo com sua gravidade, na favela ou no bairro nobre. Em tempo, a discussão dessa competência pende de apreciação pelo Plenário do STF, sendo interessante a leitura do acórdão do HC 112936, relatado pelo Ministro Celso de Mello, julgado e concedido pela Segunda Turma do STF em 5 de fevereiro de 2013.
Pior ainda, é extremamente comum, nos julgamentos de processos pela Justiça especializada e até mesmo pelo STF, quando desta provêm, a invocação da “hierarquia e disciplina” para justificar o maior rigor e a legislação mais restritiva.
Parece descabida a invocação da hierarquia e disciplina contra civil que nunca tenha integrado as Forças Armadas e, portanto, não aceitou ingressar no mundo mais rigoroso da vida na caserna, bem como a legislação a ele aplicável.
A última afirmação só demonstra o quanto exigências comuns à vida militar, mas dissociadas da vida civil, são utilizadas, ainda que inconscientemente, nos julgamentos dos feitos oriundos da Justiça especializada. É um divórcio impossível.
Em sua, o julgamento do civil pelo Juiz-Auditor parecer atingir pequena parte do problema, sendo que as questões envolvendo a desatualização legislativa, o rigor, o julgamento por uma Corte com formação majoritariamente Militar e a invocação aspectos disciplinares intrínsecos aos julgamentos da Justiça Militar, não sofrerão qualquer mudança com a pretendida alteração. A solução está em se retirar da Justiça Castrense a competência para o julgamento do civil, que não tem qualquer justificativa, ainda mais em se tratando de tempos de paz.
Brasília, 3 de dezembro de 2015