Uma surpresa a cada dia – complementação
Gustavo de Almeida Ribeiro
Escrevi alguns comentários sobre o HC 123.494, julgado pela 2ª Turma do STF, a partir do que foi publicado no Informativo 814 do Tribunal.
Redigi o texto na madrugada do dia 1º para 2 de março, sendo o acórdão publicado no mesmo dia 2, horas após eu ter divulgado minhas observações em meu blog.
Completo, portanto, o que falei, com agora base no acórdão em si.
Entendo pertinente, de início, transcrever a ementa do citado julgado:
“Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. DEFENSORIA PÚBLICA. DEFENSOR PÚBLICO NATURAL. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. PEDIDO DE REDESIGNAÇÃO. ATO REALIZADO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO. MATÉRIA NÃO ARGUIDA OPORTUNAMENTE. 1. À Defensoria Pública, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, compete promover a assistência jurídica judicial e extrajudicial aos necessitados (art. 134 da Constituição Federal), sendo-lhe asseguradas determinadas prerrogativas para o efetivo exercício de sua missão constitucional. 2. O art. 4º-A da Lei Complementar 80/1994 estabelece que são direitos dos assistidos pela Defensoria Pública “o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural” (designação por critérios legais), o que não se confunde com exclusividade do órgão para atuar nas causas em que figure pessoa carente, sobretudo se considerada a atual realidade institucional. 3. No caso, o indeferimento do pedido de adiamento de audiência designada não configura cerceamento de defesa, pois, à falta de defensor público disponível para atuar na defesa técnica do paciente, foi-lhe constituído advogado particular, que exerceu seu mister com eficiência e exatidão, precedido de entrevista reservada e privativa com o acusado. 4. Ademais, à luz da norma inscrita no art. 563 do Código de Processo Penal, a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que o reconhecimento de nulidade dos atos processuais demanda, em regra, a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte. Vale dizer, o pedido deve expor, claramente, como o novo ato beneficiaria o acusado. Sem isso, estar-se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional. Questão, outrossim, suscitada a destempo, após a prolação de sentença condenatória. 5. Ordem denegada.” (HC 123494, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 16/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-039 DIVULG 01-03-2016 PUBLIC 02-03-2016)
Calha, agora, tecer algumas considerações a respeito do afirmado acima.
Em primeiro lugar, concordo integralmente com a ausência de exclusividade da Defensoria Pública para atuar em favor de carentes. Ora, o cidadão pode optar por ser atendido por núcleos de prática de faculdades de Direito, por advogados particulares que queiram patrocinar a causa gratuitamente, por advogados de associações e sindicatos, sem qualquer problema. A questão torna-se diferente, entretanto, quando a pessoa já era assistida pela Defensoria Pública, quando entregou o patrocínio de sua causa à Instituição.
É direito do acusado escolher seu defensor e não sou eu quem o afirma, mas sim o artigo 8º, 2, “d” do Pacto de San José da Costa Rica. O paciente do citado habeas corpus escolheu a Defensoria Pública.
Fundamentou-se: mas foi nomeado dativo que interveio adequadamente no processo. Repito a pergunta do texto anterior: pedido de adiamento de advogado particular, devidamente sério e justificado, seria acatado?
Fui Defensor Público perante a primeira instância por 5 anos. Muitas vezes, ao participar de interrogatório, naquela época, primeiro ato da instrução, anotava na pasta do assistido perguntas e estratégias a serem tomadas quando do prosseguimento do feito. Assim, mesmo que a próxima audiência caísse em período de férias, o colega que me substituísse já tinha em mãos elementos para conduzir uma defesa mais concatenada. Ao se nomear advogado dativo, essa possibilidade fica esvaziada.
Nem se diga, como se infere da leitura do corpo do voto condutor, que o Defensor Público respondia por duas Comarcas, dividindo-se entre elas e que isso justificaria a medida tomada. Em primeiro lugar, embora não possa afirmar que isso ainda aconteça, lembro-me, até pouco tempo atrás, de colegas de faculdade que, aprovados Promotores de Justiça em Minas Gerais, respondiam por mais de uma Comarca simultaneamente. A mesma situação ocorria no Ministério Público Federal, uma vez que nem todas as Subseções Judiciárias já contavam com unidades do MPF instaladas na localidade. Pergunto: a mesma conduta ocorreria em relação a eles ou as audiências seriam designadas de acordo com sua disponibilidade?
Não faltava Defensor, pelo que se depreende da leitura do acórdão. Faltaram acordo, razoabilidade. Se infelizmente há menos Defensores Públicos no país do que seria necessário, a solução deveria ser inversa, no sentido da compreensão e da colaboração por parte da Instituição mais estruturada. Não se trata de homenagem ao Defensor, nem mesmo à própria Defensoria, mas, antes de tudo, ao assistido, cidadão carente e com poucas possibilidades de opção. Para reforçar o que ora afirmo, transcrevo trecho do voto condutor:
“2. No caso, o Defensor Público Thieres Fagundes de Oliveira foi designado para atuar, duas vezes por semana, na 2ª Defensoria Criminal de São Mateus/ES, sem prejuízo das suas funções na Comarca de Linhares/ES, razão pela qual requereu a esse último Juízo a redesignação da audiência de instrução designada para 12/4/2012, data em que estaria oficiando na comarca de São Mateus. Não obstante, o Juízo singular realizou o ato, no qual foi interrogado o paciente e inquiridas três testemunhas de acusação. Na oportunidade, foi nomeado o Dr. Leandro Freitas de Sousa para prestar-lhe assistência, tendo-lhe sido assegurado, inclusive, “contato privativo com seu advogado”.”
Aliás, o excerto acima indica que houve, sim, pedido de adiamento em tempo adequado, indeferido, portanto.
Quanto à demonstração de prejuízo, parece que sempre se impõe à defesa provar o futuro do pretérito: “o que aconteceria de diferente se o que foi feito equivocadamente fosse realizado na forma correta”. É uma solução simplista que, além de tudo, chancela e perpetua a falha.
Feita a última consideração acima, chego ao ponto em que invoco minha experiência pessoal. Atuei por 4 anos e 6 meses na primeira instância em Vitória, Espírito Santo, como Defensor Público Federal. Na maior parte desse tempo éramos 2 Defensores (3 no final do meu período na cidade). No início eram 8 Varas Federais, que, depois passaram a ser 15 (12 Varas comuns e 3 Juizados Especiais) que ocupavam 3 edifícios diferentes. Em suma, não é preciso muito para se constatar que, caso desejassem os Juízes, nossa atuação seria completamente inviabilizada.
Trabalhávamos com seriedade e afinco dentro de uma estrutura ainda mais lamentável do que hoje (perdi as contas das vezes em que comprei papel com dinheiro próprio) e isso era reconhecido pelos Juízes e pelos Procuradores da República. Assim, com exceção de um Magistrado que, no final da minha passagem por Vitória, criou um pouco mais de caso, mesmo assim contornado, sempre contamos com a colaboração dos Juízes ao pedirmos adiamento de audiências, ou que não fossem enviados todos os processos de cada Vara Federal com carga de uma só vez.
Presenciei, aliás, um Juiz, que me respeitava, mas não era meu amigo, falando com uma pessoa que dizia não ter advogado: vá para a Defensoria Pública, você será muita bem atendida.
Por outro lado, no que podíamos, buscávamos colaborar com os trabalhos das Varas, aceitando intimações inopinadas, quando ocorria algum imprevisto (lembro-me do caso de uma testemunha que era comandante de navio e não ficaria muito tempo na cidade).
Em suma, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pela DPU na época em que estive em Vitória, havia um ambiente de respeito e compreensão entre nós, os Magistrados Federais e os Procuradores da República.
O problema da decisão acima é colocar a Defensoria, na maioria das vezes menos estruturada do que o desejável, à mercê dessa razoabilidade, nem sempre presente, por razões diversas.
Volto a dizer, a situação seria completamente diferente se não houvesse Defensor nenhum disponível na Comarca, o que não ocorria, mas tão somente a divisão de seu trabalho entre duas cidades – situação que, repito, salvo engano, ocorre (ou, no mínimo, ocorria até bem pouco tempo) também com o Ministério Público.
Assim, após ler o acórdão, mantenho minha opinião inicial. Seria possível fixar as datas das audiências para que o Defensor atendesse às duas Comarcas sem prejuízo aos seus assistidos. Atribuir a isso qualquer atraso na prestação jurisdicional me lembra a fundamentação usada para afastar o prazo em dobro das Defensorias nos Juizados Especiais: homenagem à celeridade. Convenhamos…
Brasília, 6 de março de 2016