Descaminho e autuações fiscais
Gustavo de Almeida Ribeiro
Muito tem sido discutido, nos últimos tempos, por leigos e pessoas com formação jurídica, sobre rigor, impunidade, prisões.
Digo, com tranquilidade, que o rigor com os assistidos da Defensoria Pública continua o mesmo, talvez até maior em tempos recentes.
No HC 133.736, impetrado perante o STF, o Ministro Gilmar Mendes, relator, denegou a ordem por existirem contra o paciente autuações fiscais. Calha transcrever trecho da decisão monocrática (o texto integral está disponível no sítio eletrônico da Corte):
“In casu, consta dos autos que o paciente possui outros registros de autuações fiscais pela prática de descaminho.
Assim, embora não ocorra reincidência propriamente, há notícia da prática reiterada do crime de descaminho.
No ponto, registro que, na Turma, tenho-me posicionado, juntamente com Sua Excelência o Ministro Celso de Mello, no sentido da possibilidade de aplicação do princípio da bagatela em casos a envolver reincidentes. Nesse sentido, cito o HC 112.400/RS, de minha relatoria, DJe 8.8.2012 e o HC 116.218/MG, Relator Originário Min. Gilmar Mendes, Redator p/ o acórdão Min. Teori Zawascki. É que, para aplicação do princípio em comento, somente aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. É que, levando em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente possuir antecedentes criminais. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico e antijurídico ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há sequer que se falar em crime.
É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato.
No entanto, as turmas do STF já se posicionaram no sentido de afastar a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada: HC 97.007/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 31.3.2011; HC 101.998/MG Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 22.3.2011; HC 102.088/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 21.5.2010 e HC 112.597/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 10.12.2012.
Ademais, após as considerações trazidas pelo Ministro Teori Zavascki em voto-vista no RHC n. 115.226/MG, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, ressalvo a minha posição pessoal, mas, em homenagem ao princípio do colegiado, adoto a orientação no sentido de afastar o princípio da insignificância quando os autos sinalizam a reiteração delitiva.”
Como se observa, foi afastada a aplicação do princípio da insignificância porque “os autos sinalizam a reiteração delitiva”. Entretanto, não se indicou a existência de inquéritos ou mesmo ações penais em curso. Foi invocada a existência de meros registros de autuações fiscais, conforme expressamente reconhecido na r. decisão agravada. Autuações fiscais sequer são procedimentos de natureza penal, sendo incabível sua utilização para a vedação da aplicação do delito bagatelar.
Ademais, os eventuais valores referentes às respectivas autuações fiscais não constam dos autos do habeas corpus em questão, de modo a se aferir se, em sua soma, tais quantias atingiriam montante superior ao estipulado como limite mínimo para a execução fiscal pela Fazenda Pública, só assim se justificando a instauração de procedimento penal em desfavor do paciente (irrelevante fiscal, mas relevante penal parece ser contraditório).
Ainda, a suposta reiteração do descaminho em valores diminutos indica a pequena capacidade de comércio que não deve receber o mesmo tratamento dado ao delito de grande vulto.
A ponderação acima não é de difícil constatação. Imagine-se que uma única conduta no valor de R$ 19.999,00 (dezenove mil, novecentos e noventa e nove reais) poderia permitir que o acusado fosse absolvido, ante a aplicação do princípio da insignificância. Já o sacoleiro que por seis vezes tenha trazido ao país mercadoria estrangeira sem recolher tributos, no montante de R$ 500,00 (quinhentos reais) em cada jornada, não contaria com a aplicação do princípio, mesmo tendo cometido supostos delitos cujas somas alcançam R$ 3.000,00 (três mil reais). O prejuízo sofrido pela Fazenda Pública no primeiro caso, a despeito de não ter havido reiteração, poderia ser considerado mais grave que o gerado no segundo. Quanto a tal aspecto, ressalta-se que, embora o descaminho seja considerado um crime formal, o valor alegadamente elidido dos cofres públicos tem servido de base para a aplicação da insignificância, pelo que não pode ser ignorado como se não permitisse a verificação da existência da tipicidade material.
Nesse sentido, penso que a análise referente à aplicação do princípio da insignificância deve ser feita no caso concreto, no intuito de se constatar a verdadeira ofensa incapaz de atingir o bem jurídico protegido. Aliás, foi exatamente esse o entendimento prevalecente no julgamento dos três habeas corpus apreciados em conjunto pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso, versando sobre o delito de bagatela. Naquela oportunidade, decidiu-se que nem mesmo a reincidência seria capaz de vedar, de forma apriorística, a aplicação da insignificância, o que se dirá a mera autuação fiscal. Calha transcrever a ementa de um dos julgados:
“Ementa: PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE FURTO SIMPLES. REINCIDÊNCIA. 1. A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (“conglobante”), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados. 2. Por maioria, foram também acolhidas as seguintes teses: (i) a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e (ii) na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, § 2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade. 3. No caso concreto, a maioria entendeu por não aplicar o princípio da insignificância, reconhecendo, porém, a necessidade de abrandar o regime inicial de cumprimento da pena. 4. Ordem concedida de ofício, para alterar de semiaberto para aberto o regime inicial de cumprimento da pena imposta ao paciente.” (HC 123108, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016) grifo nosso
No entanto, o precedente acima tem sido afastado, vedando-se a aplicação do princípio da insignificância pelos mais diversos motivos, como pode ser verificado na decisão comentada.
Por isso, insisto que o maior rigor não advém de famoso Juízo Federal, colorações partidárias deixadas de lado. Ele encontra cada vez mais amparo na Suprema Corte (destaco, aliás, que o Ministro Gilmar Mendes é um dos que tem entendimentos mais favorável às teses da Defensoria Pública em matéria penal, apesar da decisão).
Certo é que, se por um lado, há uma luta contra a impunidade nos crimes cometidos por grupos organizados e nos de colarinho branco, é preciso sejam repensadas algumas condenações e punições impostas em condutas ínfimas praticadas sem violência ou ameaça.
No caso do HC 133.736, o valor dos tributos não recolhidos foi de R$ 2.685,00. “Sacoleiros” que trazem pequenas quantidades de objetos cuja importação é permitida – caso contrário seria contrabando – devem ser vistos com cuidado. O país passa por fase de crise econômica e desemprego, segundo dados fornecidos pelo IBGE. Condenar criminalmente pessoas que se arriscam em nossas estradas violentas e esburacas não parece, nem de longe, ser combate à impunidade, mas tão somente medida contra o elo mais frágil e já tão sofrido, pelas razões de todos conhecidas.
A decisão, como não poderia deixar de ser, foi agravada.
Brasília, 18 de abril de 2016