Mula do tráfico e organização criminosa

Mula do tráfico e organização criminosa

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Tenho observado que há uma divergência frontal entre o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e aquele adotado pelo Supremo Tribunal Federal no que concerne à situação da chamada “mula” no tráfico de drogas.

Em dois habeas corpus recentes, o STF concedeu a ordem para afastar entendimento esposado pela Corte Superior que tem afirmado que a condição de mula basta para que a pessoa seja considerada integrante de organização criminosa e, portanto, não merecedora da redutora prevista no §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06.

Ontem, 28 de junho de 2016, a 2ª Turma da Suprema Corte reafirmou a posição mais favorável aos assistidos da DPU. Transcrevo o andamento do HC 134597, extraído do site do STF:

“Decisão: A Turma, por votação unânime, concedeu a ordem de habeas corpus para o fim de cassar o acórdão recorrido e restabelecer o julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que redimensionou a pena imposta ao paciente para 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão e 485 (quatrocentos e oitenta e cinco) dias-multa, nos termos do voto do Relator. Falou, pelo Paciente, o Dr. Gustavo de Almeida Ribeiro, Defensor Público Federal. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Teori Zavascki. Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. 2ª Turma, 28.6.2016.”

O citado HC 134597 voltava-se contra a decisão tomada no REsp 1501704 do STJ, cujo trecho da ementa dispõe:

“4. É pacífica a orientação da Terceira Seção desta Corte no sentido de que, regra geral, o agente que transporta drogas, na qualidade de ‘mula’ do tráfico, integra organização criminosa, não fazendo jus ao benefício previsto no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006.” (AgRg no REsp 1501704/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 02/05/2016)

Na mesma linha favorável está o HC 131795, também julgado pela 2ª Turma do STF. Segue a ementa:

“Ementa: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006. APLICAÇÃO. TRANSPORTE DE DROGA. EXAME DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA CONDUTA. ATUAÇÃO DA AGENTE SEM INTEGRAR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. 1. A não aplicação da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 pressupõe a demonstração pelo juízo sentenciante da existência de conjunto probatório apto a afastar ao menos um dos critérios – porquanto autônomos –, descritos no preceito legal: (a) primariedade; (b) bons antecedentes; (c) não dedicação a atividades criminosas; e (d) não integração à organização criminosa. Nesse juízo, não se pode ignorar que a norma em questão tem a clara finalidade de apenar com menor grau de intensidade quem pratica de modo eventual as condutas descritas no art. 33, caput e § 1º, daquele mesmo diploma legal em contraponto ao agente que faz do crime o seu modo de vida, razão pela qual, evidentemente, não estaria apto a usufruir do referido benefício. 2. A atuação da agente no transporte de droga, em atividade denominada “mula”, por si só, não constitui pressuposto de sua dedicação à prática delitiva ou de seu envolvimento com organização criminosa. Impõe-se, para assim concluir, o exame das circunstâncias da conduta, em observância ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF). 3. Assim, padece de ilegalidade a decisão do Superior Tribunal de Justiça fundada em premissa de causa e efeito automático, sobretudo se consideradas as premissas fáticas lançadas pela instância ordinária, competente para realizar cognição ampla dos fatos da causa, que revelaram não ser a paciente integrante de organização criminosa ou se dedicar à prática delitiva. 4. Ordem concedida.” (HC 131795, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 03/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)

Brasília, 29 de junho de 2016

Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já escrevi uns dois textos tratando da discussão ocorrida no STF a respeito da hediondez ou não do tráfico privilegiado enquanto o assunto ainda pendia de conclusão.

Encerrada a apreciação do HC 118533, impetrado pela Defensoria Pública da União perante a Suprema Corte, com o acolhimento da tese sustentada pela Instituição, qual seja, a de que o tráfico de drogas chamado privilegiado não pode ser equiparado a hediondo, mais que aprofundadas digressões jurídicas, cabe esclarecer questões simples, muitas vezes ignoradas não só por leigos, mas por quem não milita na seara penal.

Li algumas afirmações bastante exageradas, para se dizer o mínimo, muitas vezes capazes de enganar os mais desavisados.

Inicialmente calha explicar o que se define como “tráfico privilegiado”. A Lei 11.343/06, chamada de Lei de Drogas, estabeleceu, em seu artigo 33, §4º, a redução da pena para o acusado de tráfico que preencher, simultaneamente, 4 requisitos, a saber: ser primário, ter bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e não integrar organização criminosa. Impende reiterar, todas as condições devem estar presentes, bastando a ausência de uma delas para se afastar o chamado tráfico privilegiado.

Assim, importa dizer que a decisão tomada pelo STF só é aplicável a essas pessoas, não atingindo àquelas que não preencham os requisitos acima enumerados. Portanto, indivíduo que já tenha condenação, que seja acusado de integrar organização criminosa, que tenha indicação de que pratique crimes com frequência não será beneficiado pelo entendimento firmado, já que não será considerado traficante eventual.

O STF não liberou o tráfico, não reduziu penas, não regulamentou a profissão de traficante. As consequências da decisão serão sentidas por quem já foi condenado, na fase de execução penal. Os prazos para a progressão de regime e livramento condicional passam a ser mais reduzidos, como nos crimes comuns, permitindo-se, ainda, a concessão do indulto para os acusados que preencham os requisitos. Apenas foi reconhecida a distinção entre o traficante usual e o eventual, o grande traficante e o transportador (mula).

Aliás, uma das principais objeções de quem discorda da posição adotada está na situação das chamadas mulas, ou seja, aquelas pessoas quase que descartáveis (na visão de quem as explora, claro) contratadas pelas organizações criminosas para transportar a droga. Segundo os detratores da posição escolhida pelo STF, ela beneficiaria a arregimentação dessas mulas. Em primeiro lugar, aquele que se envolver regularmente com o tráfico não será considerado traficante eventual, mesmo que não tenha sido preso anteriormente. A Justiça Penal tem experiência suficiente para extrair dos elementos de prova carreados ao processo a condição do acusado. Por exemplo, pessoa que se declara pobre mas tem em seu passaporte diversos carimbos de entrada em vários países demonstra que alguém patrocina suas viagens, certamente com objetivos pouco nobres. Por outro lado, indivíduo que, por uma única vez, aceitar ou até mesmo for pressionado a transportar droga para uma organização de forma eventual e, sem nela ter qualquer poder de decisão, pode ser beneficiada pela redutora sem qualquer dificuldade.

Parece-me bastante inocente acreditar que a tese firmada pelo STF vai dificultar ou facilitar o trabalho dos traficantes profissionais que arregimentam as chamadas mulas. Seja pressionando, seja oferecendo dinheiro a quem se encontra em situação econômica precária ao extremo, as consequências da consideração do tráfico privilegiado sequer são sopesadas por essas pessoas. É impensável que o pequeno traficante fique ponderando que, não sendo mais crime hediondo, terá direito ao indulto, por exemplo. O mundo real passa bem longe dessas divagações.

Feitas as observações iniciais, é preciso indicar as vantagens da decisão proferida pelo STF.

Em primeiro lugar, ela reduz o encarceramento excessivo de pessoas que tenham praticado condutas menos gravosas e que não tenham outras ocorrências em suas fichas. São reiteradas as notícias das condições da maioria dos presídios brasileiros.

Ao contrário de que possa parecer em uma análise açodada, a prisão excessiva de mulas eventuais ou daqueles que tenham praticado o tráfico para sustentar o próprio vício a ninguém aproveita.

Nem ao próprio condenado, claro, sendo dispensáveis maiores explicações, mas também à sociedade como um todo. Como já esclarecido acima, para que uma pessoa seja condenada pelo tráfico privilegiado, ela tem que preencher 4 requisitos concomitantes. Assim, se for reincidente, contumaz, se participar de grupos criminosos não será acolhida pelo benefício. Logo, o tratamento mais generoso só ocorre para aqueles que não estejam envolvidos de forma plena com o crime. Essas pessoas, mesmo que merecedoras de pena, devem receber tratamento mais brando, inclusive com a possibilidade de indulto e de progressão de regime mais célere.

Nesse ponto, é preciso ainda fazer outra observação. A política de combate às drogas não parece estar sendo exitosa, pelo que se observa nos jornais diários. Não se tem a ilusão de que a decisão do STF irá melhorá-la sensivelmente, mas, ao menos, trará maior isonomia ao tratar o pequeno traficante de forma distinta, buscando evitar, dentro do possível, a perda da pessoa para o mundo da criminalidade profissional.

As interpretações não podem conduzir à desproporção flagrante. Interessante observar que o homicídio simples, no qual é ceifada a vida de uma pessoa e tem pena mínima de 6 anos, não é crime hediondo. É razoável considerar-se o tráfico privilegiado, cuja pena pode chegar a 1 ano e 8 meses, cometido sem violência ou grave ameaça, como crime hediondo? Muitas vezes fico com a impressão de que o rigor contra os pequenos traficantes advém da frustração por não se conseguir encarcerar os grandes.

O afastamento da hediondez no tráfico privilegiado pelo STF pode ter ainda forte influência no abrandamento do crescente encarceramento feminino. Pesquisas indicam que o tráfico de drogas é a principal causa de prisão de mulheres, pelo que as mudanças nos prazos para os benefícios na execução penal podem reduzir o tempo de recolhimento daquelas que tenham praticado a conduta de maneira eventual. As famílias e a sociedade brasileira agradecem. Repisa-se, a reiteração delitiva afasta a aplicação do quanto decidido no HC 118533.

Em suma, endosso a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, respeitando sempre as opiniões em contrário. Quis tecer os esclarecimentos acima apenas para que as pessoas saibam o que foi discutido e quais as consequências do julgamento do habeas corpus já mencionado. Penso que a isonomia prevaleceu.

Brasília, 27 de junho de 2016

 

 

 

 

 

Cálculos nos Juizados Especiais – RE 729884/STF

Cálculos nos Juizados Especiais – RE 729884/STF

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Foi julgado pelo Plenário do STF, na sessão de 23 de junho de 2016, o RE 729884, com repercussão geral reconhecida, em que se discutia a quem compete realizar os cálculos nas condenações impostas pelo Juizado Especial ao INSS.

Transcrevo abaixo a tese discutida:

“EXECUÇÃO DE SENTENÇA. IMPOSIÇÃO AO INSS, NOS PROCESSOS EM QUE FIGURE COMO PARTE RÉ, DO DEVER DE ELABORAR OS CÁLCULOS DO VALOR DA CONDENAÇÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA ISONOMIA, DA LEGALIDADE E DA SEPARAÇÃO DE PODERES. LEI Nº 9.099/95, ARTIGO 52, INCISOS I E II. CF/88, ARTS. 2º; 5º, CAPUT E INCISOS II, LIV E LV; 22, I; E 37, CAPUT.
Saber se o acórdão recorrido ofende os princípios do devido processo legal, da isonomia, da legalidade e da separação de poderes.” (fonte: site do STF)

A participação da DPU no caso como amicus curiae teve dois objetivos principais: o primeiro, açular o julgamento célere da causa, encerrando o sobrestamento de milhares de feitos sobre o tema. O segundo, defender a realização dos cálculos pela autarquia, que dispõe dos dados do segurado e, assim, pode confeccioná-los mais rapidamente. Além disso, quando a Justiça elabora os cálculos, ela tem que submetê-los às partes, o que gera ainda mais atraso no recebimento dos valores devidos aos segurados.

Após os processos terem ficado tempos parados, o STF entendeu que o tema não tem natureza constitucional, pelo que não conheceu do recurso:

“Decisão: O Tribunal, por maioria, não conheceu do recurso extraordinário, ao entendimento de que a pretensão deduzida repousa apenas na esfera da legalidade, concluindo pela inexistência de questão constitucional e, por conseguinte, de repercussão geral. Tudo nos termos do voto do Relator. Vencido o Ministro Edson Fachin, que conhecia do recurso extraordinário e negava-lhe provimento. Ausente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Falaram, pelo requerente, Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, o Dr. Dalton Santos Morais, Procurador Federal da Procuradoria-Geral Federal, e, pelo amicus curiae Defensoria Pública da União, o Dr. Gustavo Zortéa da Silva, Defensor Público Federal. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 23.06.2016.” (fonte: site do STF)

Na mesma sessão, foi iniciado o julgamento da ADPF 219, cuja tese transcrevo abaixo (dessa não participamos, a ADPF não gerou sobrestamento dos feitos e o tema de fundo era muito próximo):

“ADPF. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. LIQUIDAÇÃO. DECISÕES JUDICIAIS QUE DETERMINAM COMPETIR À UNIÃO O DEVER DE APURAR OU INDICAR, NOS PROCESSOS EM QUE FIGURE COMO RÉ/EXECUTADA, O VALOR DEVIDO À PARTE AUTORA/EXEQUENTE. LEI Nº 9.099/95, ARTIGO 52, INCISOS I E II. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 2º, 5º, CAPUT, E INCISOS II, LIV E LV; 22, I; E 37, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Saber se as decisões impugnadas ofendem preceito fundamental da Constituição.”

O julgamento da ADPF em questão foi interrompido por pedido de vista do Min. Luiz Fux.

Se um feito não tem questão constitucional, o outro teria?

O que importa é que a DPU lutou pela celeridade na apreciação do RE 729884 em favor dos assistidos e dos segurados em geral do país.

Nossa intervenção foi postulada em peça elaborada pelo Defensor Antonio Ezequiel I. Barbosa, cuja leitura recomendo (os autos eletrônicos do RE são acessíveis independentemente de assinatura eletrônica).

 

Brasília, 26 de junho de 2016

Sem critério aparente

Sem critério aparente

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já comentei algumas vezes em uma rede social que, definitivamente, não entendo o critério adotado pelo STF para decidir pelo desmembramento ou não dos inquéritos e ações penais que envolvam, além do detentor do chamado foro por prerrogativa de função, pessoas que não disponham de tal condição.

Com mais de 9 anos de militância perante a Suprema Corte e tendo atuado em diversos feitos penais originários, dentre eles a famosa Ação Penal 470, seja em favor daquele que goza da prerrogativa, seja de corréu, chego à conclusão de que a decisão é aleatória.

Na data de 21 de junho de 2016, a 2ª Turma do STF recebeu a denúncia ofertada em desfavor de Deputado Federal (Inq 3997). A inicial foi admitida também contra os demais acusados, estes sem foro. O processo foi mantido integralmente perante o Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, no dia 22 de junho seguinte, outra denúncia foi apreciada (Inq 4146), tratando, aliás, do mesmo procedimento investigativo tão famoso na República na época atual, sendo mantido, por ampla maioria dos votos do Plenário, o desmembramento do feito em relação aos que não possuem foro por prerrogativa, popularmente chamado de privilegiado.

Em ambos os processos, os diversos acusados são familiares entre si, pais, filhos, cônjuges. A acusação, em linhas gerais, que pesa contra os réus nos respectivos feitos é a de corrupção e lavagem de dinheiro. Ora, parece óbvio que o dinheiro alegadamente recebido em decorrência de corrupção passiva foi ofertado justamente aos parlamentares, sendo improvável que tenha havido tentativa de se corromper a esposa ou o filho de um Deputado.

Parece-me cristalino, com a devida licença, que ou existem razões para a cisão em ambas as ações penais ou não existe em nenhuma. Claro, não acessei os autos e menos ainda os votos proferidos recentemente pelos Ministros, mas as justificativas apresentadas, com o devido respeito, parecem-me não resistir a uma análise minimamente aprofundada. Se a família de um participou da corrupção, segundo a acusação, qual a diferença da família do outro? Se o dinheiro fosse lícito em relação à família, nem denúncia o Ministério Público deveria ter ofertado; por outro lado, se os familiares foram implicados na movimentação dos valores supostamente oriundos de crime, pouco importa a forma em que tal participação se deu para o julgamento em conjunto.

Medo de que o STF tenha que julgar processos com incontáveis acusados, tal como aconteceu na AP 470, também não é critério de alteração da competência. Aliás, se esse argumento foi mesmo utilizado, ele parece demonstrar a dificuldade técnica em se justificar as decisões discrepantes em situações bem assemelhadas. Calha destacar que a separação de processos prevista no artigo 80 do CPP não é capaz de alterar o foro por prerrogativa. Se assim fosse, um crime cometido por 50 Deputados em concurso de pessoas, por exemplo, deveria ser remetido a outra instância. O correto é o agrupamento das acusações em vários inquéritos e ações penais de acordo com o liame da conduta dos agentes, sem, contudo, alterar-se a instância de processo e julgamento.

Particularmente, havendo concurso de pessoas ou conexão, sou favorável à manutenção do processo em um só Juízo, como regra. Isso minimiza a chance de decisões discrepantes entre instâncias distintas, o que pode gerar situações ensejadoras de perplexidade, como a absolvição de quem tem foro pelo STF e a condenação de quem não tem pelo Juízo de Primeiro Grau, criando-se, por exemplo, uma associação criminosa de uma só pessoa.

Aliás, em decorrência de uma falha na intimação, a AP 470 foi desmembrada quanto ao assistido da Defensoria Pública da União. Uma das acusações que pesava contra ele era da prática do crime de quadrilha. As demais pessoas que foram denunciadas juntamente com ele por tal delito foram absolvidas. Assim, opusemos embargos de declaração perante o STF, com pedido de concessão de habeas corpus de ofício, para que o Tribunal reconhecesse que, absolvendo os corréus, o Juízo que recebesse o feito desmembrado não poderia condenar o assistido pela quadrilha, pois, para isso, teria que “rescindir” o acórdão do Plenário do STF quanto aos demais acusados, ou criar a quadrilha unipessoal. A ordem foi concedida de ofício, sendo decotado tal crime da acusação.

Também me causa curiosidade o procedimento em que se recebe a denúncia para, em seguida, promover-se o desmembramento imediato. Ora, se já se entendia que não havia motivo para a manutenção do foro privilegiado em relação a todos os acusados, por que se esperar o recebimento da denúncia para reconhecê-lo? Se a extensão do foro para quem dele não dispõe é excepcional, já não era assim antes da apreciação da denúncia?

Competência para processo e julgamento de acusados em processo penal é questão intimamente ligada ao Juízo natural, fundamental em um regime democrático. A falta de um critério aparente é bastante preocupante, gerando insegurança jurídica e dúvidas nos jurisdicionados e até mesmo nos causídicos que militam perante a Corte.

Já conversei sobre o tema tratado nessas breves reflexões com diversas pessoas que atuam na seara penal, encontrando sempre a mesma resposta de incapacidade de se indicar o critério adotado pelo STF.

Esse texto não se aprofunda em aspectos técnicos, mas aponta contradições que entendo aparentes e que deveriam ser, ao menos, minimizadas pela Suprema Corte. Um critério mais claro evitaria muitos questionamentos.

Brasília, 23 de junho de 2016

 

 

 

 

 

 

 

Tráfico privilegiado e crime hediondo

Tráfico privilegiado e crime hediondo

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Ontem, 1º/06/2016, teve prosseguimento, no Plenário do STF, um julgamento muito importante para nossa atuação criminal, que terá, a depender do resultado, efeitos imediatos para os assistidos da Defensoria Pública.

Refiro-me ao HC 118533, em que se questiona a hediondez do chamado tráfico privilegiado.

Até a sessão de ontem estava 4 votos a 2 pela denegação da ordem, tendo sido o julgamento interrompido por pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes.

O Ministro Gilmar Mendes apresentou voto-vista concedendo a ordem. O julgamento prosseguiu e chegou a ficar 6 votos a 3 pela denegação.

Nisso, o Ministro Edson Fachin resolveu repensar seu voto pela denegação, pedindo vista. Outros Ministros, após ele se manifestar, endossaram que também pretendem refletir sobre a questão, pelo que ficamos com a impressão que temos boas chances de virar o resultado.

Foi fantástico. O afastamento da hediondez no tráfico privilegiado interfere na possibilidade de indulto, nos lapsos para progressão e livramento condicional e, destacadamente, no crescente encarceramento feminino.

Tomara tenhamos êxito, será mais uma vitória marcante para a DPU.

Segue, abaixo, a notícia extraída do site do STF.

 

 

“Quarta-feira, 01 de junho de 2016

Suspenso julgamento sobre natureza hedionda do crime de tráfico privilegiado

Pedido de vista do ministro Edson Fachin suspendeu o julgamento de Habeas Corpus (HC 118533) por meio do qual o Supremo Tribunal Federal (STF) discute se o chamado tráfico privilegiado, previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006, deve ser considerado crime de natureza hedionda. Na sessão desta quarta-feira (1º), votaram os ministros Gilmar Mendes, que se manifestou por afastar o caráter de hediondez dos delitos em questão, e os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, que reconheceram como hediondo o crime de tráfico privilegiado.

O tráfico privilegiado prevê que as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

No caso concreto, Ricardo Evangelista Vieira de Souza e Robinson Roberto Ortega foram condenados a 7 anos e 1 mês de reclusão pelo juízo da Comarca de Nova Andradina (MS). Por meio de recurso, o Ministério Público conseguiu ver reconhecida, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a natureza hedionda dos delitos praticados pelos réus. Contra essa decisão foi ajuizado, no STF, o HC em julgamento.

O caso começou a ser julgado pelo Plenáruo em 24 de junho do ano passado, quando a relatora, ministra Cármen Lúcia, votou no sentido de conceder o HC. Para ela, o tráfico privilegiado de entorpecentes não se harmoniza com a qualificação de hediondez do tráfico de entorpecentes, definido no caput e parágrafo 1º do artigo 33 da norma. Ela foi acompanhada pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Naquela ocasião, o ministro Fachin chegou a se pronunciar pelo indeferimento do pedido, ao argumento de que a causa de diminuição de pena, prevista na Lei 11.343/2006, “não parece incompatível com a manutenção do caráter hediondo do crime”. Acompanharam esse entendimento os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux. O julgamento foi interrompido, então, por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Ao se manifestar na sessão desta quarta, o ministro Gilmar Mendes considerou que a Constituição Federal deu ao legislador espaço para retirar do âmbito dos crimes chamados hediondos algumas condutas de transação ilícita com drogas. Para ele, há casos em que não se pode fugir à hediondez, principalmente quando há habitualidade no delito. O caráter isolado do delito, a inexistência de crimes para além de uma oportunidade, por sua vez, salientou o ministro, autorizaria o afastamento da natureza hedionda do crime.

Já o ministro Dias Toffoli decidiu acompanhar a divergência aberta pelo ministro Fachin. O ministro citou, inicialmente, que no caso concreto os réus foram pegos com 772 kg de droga, em um caminhão escoltado por batedores, um indicativo de que estariam atuando para organização criminosa.

Ao votar pelo indeferimento do HC, o ministro lembrou que, apesar de ser a primeira vez que o Plenário do STF analisa o tema, as Turmas do STF têm assentado caráter da hediondez do tráfico privilegiado.

O ministro Marco Aurélio concordou com o ministro Toffoli. Para ele, o reconhecimento da hediondez foi uma opção normativa, pelo legislador, que partiu da premissa de que tráfico é um crime causador de muitos delitos, para chegar a um rigor maior quanto ao tráfico de entorpecentes.

Crimes hediondos

Além de serem inafiançáveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto, os crimes hediondos, previstos na Lei 8.072/1990, devem ter penas cumpridas inicialmente em regime fechado, e a progressão de regime só pode acontecer após o cumprimento de dois quintos da pena, se o réu for primário, e de três quintos, se for reincidente.

Dados estatísticos

O presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, trouxe ao debate dados estatísticos relativos aos resultados já alcançados a partir da implantação das audiências de custódia, mas que, nas palavras do presidente, ainda se mostram insuficientes para resolver o problema do sistema carcerário brasileiro. Mantida a proporção e o ritmo do encarceramento que temos hoje no país, disse o presidente, dentro de poucos anos alcançaremos o número de um milhão de presos. Para Lewandowski, é preciso se chegar a uma solução de natureza de política criminal. Nesse sentido, o ministro salientou que uma decisão voltada a conceder o HC no caso em julgamento, reconhecendo a não hediondez do tráfico privilegiado, levaria à soltura de 45% das mulheres presas.

Vista

Diante da complexidade do tema e dos argumentos levantados no debates, o ministro Edson Fachin, que havia se manifestado pelo indeferimento do HC abrindo a divergência, pediu vista dos autos para uma melhor análise do caso.”