Sem critério aparente

Sem critério aparente

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já comentei algumas vezes em uma rede social que, definitivamente, não entendo o critério adotado pelo STF para decidir pelo desmembramento ou não dos inquéritos e ações penais que envolvam, além do detentor do chamado foro por prerrogativa de função, pessoas que não disponham de tal condição.

Com mais de 9 anos de militância perante a Suprema Corte e tendo atuado em diversos feitos penais originários, dentre eles a famosa Ação Penal 470, seja em favor daquele que goza da prerrogativa, seja de corréu, chego à conclusão de que a decisão é aleatória.

Na data de 21 de junho de 2016, a 2ª Turma do STF recebeu a denúncia ofertada em desfavor de Deputado Federal (Inq 3997). A inicial foi admitida também contra os demais acusados, estes sem foro. O processo foi mantido integralmente perante o Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, no dia 22 de junho seguinte, outra denúncia foi apreciada (Inq 4146), tratando, aliás, do mesmo procedimento investigativo tão famoso na República na época atual, sendo mantido, por ampla maioria dos votos do Plenário, o desmembramento do feito em relação aos que não possuem foro por prerrogativa, popularmente chamado de privilegiado.

Em ambos os processos, os diversos acusados são familiares entre si, pais, filhos, cônjuges. A acusação, em linhas gerais, que pesa contra os réus nos respectivos feitos é a de corrupção e lavagem de dinheiro. Ora, parece óbvio que o dinheiro alegadamente recebido em decorrência de corrupção passiva foi ofertado justamente aos parlamentares, sendo improvável que tenha havido tentativa de se corromper a esposa ou o filho de um Deputado.

Parece-me cristalino, com a devida licença, que ou existem razões para a cisão em ambas as ações penais ou não existe em nenhuma. Claro, não acessei os autos e menos ainda os votos proferidos recentemente pelos Ministros, mas as justificativas apresentadas, com o devido respeito, parecem-me não resistir a uma análise minimamente aprofundada. Se a família de um participou da corrupção, segundo a acusação, qual a diferença da família do outro? Se o dinheiro fosse lícito em relação à família, nem denúncia o Ministério Público deveria ter ofertado; por outro lado, se os familiares foram implicados na movimentação dos valores supostamente oriundos de crime, pouco importa a forma em que tal participação se deu para o julgamento em conjunto.

Medo de que o STF tenha que julgar processos com incontáveis acusados, tal como aconteceu na AP 470, também não é critério de alteração da competência. Aliás, se esse argumento foi mesmo utilizado, ele parece demonstrar a dificuldade técnica em se justificar as decisões discrepantes em situações bem assemelhadas. Calha destacar que a separação de processos prevista no artigo 80 do CPP não é capaz de alterar o foro por prerrogativa. Se assim fosse, um crime cometido por 50 Deputados em concurso de pessoas, por exemplo, deveria ser remetido a outra instância. O correto é o agrupamento das acusações em vários inquéritos e ações penais de acordo com o liame da conduta dos agentes, sem, contudo, alterar-se a instância de processo e julgamento.

Particularmente, havendo concurso de pessoas ou conexão, sou favorável à manutenção do processo em um só Juízo, como regra. Isso minimiza a chance de decisões discrepantes entre instâncias distintas, o que pode gerar situações ensejadoras de perplexidade, como a absolvição de quem tem foro pelo STF e a condenação de quem não tem pelo Juízo de Primeiro Grau, criando-se, por exemplo, uma associação criminosa de uma só pessoa.

Aliás, em decorrência de uma falha na intimação, a AP 470 foi desmembrada quanto ao assistido da Defensoria Pública da União. Uma das acusações que pesava contra ele era da prática do crime de quadrilha. As demais pessoas que foram denunciadas juntamente com ele por tal delito foram absolvidas. Assim, opusemos embargos de declaração perante o STF, com pedido de concessão de habeas corpus de ofício, para que o Tribunal reconhecesse que, absolvendo os corréus, o Juízo que recebesse o feito desmembrado não poderia condenar o assistido pela quadrilha, pois, para isso, teria que “rescindir” o acórdão do Plenário do STF quanto aos demais acusados, ou criar a quadrilha unipessoal. A ordem foi concedida de ofício, sendo decotado tal crime da acusação.

Também me causa curiosidade o procedimento em que se recebe a denúncia para, em seguida, promover-se o desmembramento imediato. Ora, se já se entendia que não havia motivo para a manutenção do foro privilegiado em relação a todos os acusados, por que se esperar o recebimento da denúncia para reconhecê-lo? Se a extensão do foro para quem dele não dispõe é excepcional, já não era assim antes da apreciação da denúncia?

Competência para processo e julgamento de acusados em processo penal é questão intimamente ligada ao Juízo natural, fundamental em um regime democrático. A falta de um critério aparente é bastante preocupante, gerando insegurança jurídica e dúvidas nos jurisdicionados e até mesmo nos causídicos que militam perante a Corte.

Já conversei sobre o tema tratado nessas breves reflexões com diversas pessoas que atuam na seara penal, encontrando sempre a mesma resposta de incapacidade de se indicar o critério adotado pelo STF.

Esse texto não se aprofunda em aspectos técnicos, mas aponta contradições que entendo aparentes e que deveriam ser, ao menos, minimizadas pela Suprema Corte. Um critério mais claro evitaria muitos questionamentos.

Brasília, 23 de junho de 2016

 

 

 

 

 

 

 

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