Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já escrevi uns dois textos tratando da discussão ocorrida no STF a respeito da hediondez ou não do tráfico privilegiado enquanto o assunto ainda pendia de conclusão.

Encerrada a apreciação do HC 118533, impetrado pela Defensoria Pública da União perante a Suprema Corte, com o acolhimento da tese sustentada pela Instituição, qual seja, a de que o tráfico de drogas chamado privilegiado não pode ser equiparado a hediondo, mais que aprofundadas digressões jurídicas, cabe esclarecer questões simples, muitas vezes ignoradas não só por leigos, mas por quem não milita na seara penal.

Li algumas afirmações bastante exageradas, para se dizer o mínimo, muitas vezes capazes de enganar os mais desavisados.

Inicialmente calha explicar o que se define como “tráfico privilegiado”. A Lei 11.343/06, chamada de Lei de Drogas, estabeleceu, em seu artigo 33, §4º, a redução da pena para o acusado de tráfico que preencher, simultaneamente, 4 requisitos, a saber: ser primário, ter bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e não integrar organização criminosa. Impende reiterar, todas as condições devem estar presentes, bastando a ausência de uma delas para se afastar o chamado tráfico privilegiado.

Assim, importa dizer que a decisão tomada pelo STF só é aplicável a essas pessoas, não atingindo àquelas que não preencham os requisitos acima enumerados. Portanto, indivíduo que já tenha condenação, que seja acusado de integrar organização criminosa, que tenha indicação de que pratique crimes com frequência não será beneficiado pelo entendimento firmado, já que não será considerado traficante eventual.

O STF não liberou o tráfico, não reduziu penas, não regulamentou a profissão de traficante. As consequências da decisão serão sentidas por quem já foi condenado, na fase de execução penal. Os prazos para a progressão de regime e livramento condicional passam a ser mais reduzidos, como nos crimes comuns, permitindo-se, ainda, a concessão do indulto para os acusados que preencham os requisitos. Apenas foi reconhecida a distinção entre o traficante usual e o eventual, o grande traficante e o transportador (mula).

Aliás, uma das principais objeções de quem discorda da posição adotada está na situação das chamadas mulas, ou seja, aquelas pessoas quase que descartáveis (na visão de quem as explora, claro) contratadas pelas organizações criminosas para transportar a droga. Segundo os detratores da posição escolhida pelo STF, ela beneficiaria a arregimentação dessas mulas. Em primeiro lugar, aquele que se envolver regularmente com o tráfico não será considerado traficante eventual, mesmo que não tenha sido preso anteriormente. A Justiça Penal tem experiência suficiente para extrair dos elementos de prova carreados ao processo a condição do acusado. Por exemplo, pessoa que se declara pobre mas tem em seu passaporte diversos carimbos de entrada em vários países demonstra que alguém patrocina suas viagens, certamente com objetivos pouco nobres. Por outro lado, indivíduo que, por uma única vez, aceitar ou até mesmo for pressionado a transportar droga para uma organização de forma eventual e, sem nela ter qualquer poder de decisão, pode ser beneficiada pela redutora sem qualquer dificuldade.

Parece-me bastante inocente acreditar que a tese firmada pelo STF vai dificultar ou facilitar o trabalho dos traficantes profissionais que arregimentam as chamadas mulas. Seja pressionando, seja oferecendo dinheiro a quem se encontra em situação econômica precária ao extremo, as consequências da consideração do tráfico privilegiado sequer são sopesadas por essas pessoas. É impensável que o pequeno traficante fique ponderando que, não sendo mais crime hediondo, terá direito ao indulto, por exemplo. O mundo real passa bem longe dessas divagações.

Feitas as observações iniciais, é preciso indicar as vantagens da decisão proferida pelo STF.

Em primeiro lugar, ela reduz o encarceramento excessivo de pessoas que tenham praticado condutas menos gravosas e que não tenham outras ocorrências em suas fichas. São reiteradas as notícias das condições da maioria dos presídios brasileiros.

Ao contrário de que possa parecer em uma análise açodada, a prisão excessiva de mulas eventuais ou daqueles que tenham praticado o tráfico para sustentar o próprio vício a ninguém aproveita.

Nem ao próprio condenado, claro, sendo dispensáveis maiores explicações, mas também à sociedade como um todo. Como já esclarecido acima, para que uma pessoa seja condenada pelo tráfico privilegiado, ela tem que preencher 4 requisitos concomitantes. Assim, se for reincidente, contumaz, se participar de grupos criminosos não será acolhida pelo benefício. Logo, o tratamento mais generoso só ocorre para aqueles que não estejam envolvidos de forma plena com o crime. Essas pessoas, mesmo que merecedoras de pena, devem receber tratamento mais brando, inclusive com a possibilidade de indulto e de progressão de regime mais célere.

Nesse ponto, é preciso ainda fazer outra observação. A política de combate às drogas não parece estar sendo exitosa, pelo que se observa nos jornais diários. Não se tem a ilusão de que a decisão do STF irá melhorá-la sensivelmente, mas, ao menos, trará maior isonomia ao tratar o pequeno traficante de forma distinta, buscando evitar, dentro do possível, a perda da pessoa para o mundo da criminalidade profissional.

As interpretações não podem conduzir à desproporção flagrante. Interessante observar que o homicídio simples, no qual é ceifada a vida de uma pessoa e tem pena mínima de 6 anos, não é crime hediondo. É razoável considerar-se o tráfico privilegiado, cuja pena pode chegar a 1 ano e 8 meses, cometido sem violência ou grave ameaça, como crime hediondo? Muitas vezes fico com a impressão de que o rigor contra os pequenos traficantes advém da frustração por não se conseguir encarcerar os grandes.

O afastamento da hediondez no tráfico privilegiado pelo STF pode ter ainda forte influência no abrandamento do crescente encarceramento feminino. Pesquisas indicam que o tráfico de drogas é a principal causa de prisão de mulheres, pelo que as mudanças nos prazos para os benefícios na execução penal podem reduzir o tempo de recolhimento daquelas que tenham praticado a conduta de maneira eventual. As famílias e a sociedade brasileira agradecem. Repisa-se, a reiteração delitiva afasta a aplicação do quanto decidido no HC 118533.

Em suma, endosso a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, respeitando sempre as opiniões em contrário. Quis tecer os esclarecimentos acima apenas para que as pessoas saibam o que foi discutido e quais as consequências do julgamento do habeas corpus já mencionado. Penso que a isonomia prevaleceu.

Brasília, 27 de junho de 2016

 

 

 

 

 

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