Não é bem assim

Não é bem assim

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Li hoje no jornal Folha de São Paulo, em sua versão on line, uma notícia em que se compara as penas de pessoas acusadas de crimes leves (furto, receptação) com aquelas impostas aos delatores da chamada Operação Lava-jato[1].

Concordo com parte do afirmado pelos pesquisadores ouvidos, de outra parte, discordo frontalmente.

Antes de apresentar minhas observações, vou relatar duas situações que presenciei no Supremo Tribunal Federal que me ajudaram a formar opinião sobre o assunto.

 

Em certa oportunidade, esperava com um colega sua vez de proferir sustentação oral em habeas corpus da Defensoria Pública da União. Antes dele, assomou à tribuna um advogado famoso de São Paulo, em favor de pessoa com alto poder econômico.

Ao final da sustentação, ele mencionou o fato de que a neta do cliente dele era coleguinha de escola da neta (ou do neto) de um Ministro do STF.

Esse causídico em questão está longe de ser um novato desavisado, muito pelo contrário. Escolhe e usa as palavras com precisão.

Seria leviano afirmar que a ordem foi concedida em razão disso. Até porque não acho que tenha sido o caso, mas, por outro lado, não acredito que advogado tão renomado e experimente estivesse gastando seu tempo de sustentação com algo que não pudesse, ao menos, angariar simpatia.

 

Em outra oportunidade, eu aguardava minha vez de proferir sustentação oral em habeas corpus da DPU, quando a advogada que me antecedeu pediu que o STF tivesse compreensão com o cliente dela. Segundo ela, seu cliente, de classe média alta de São Paulo, tinha se viciado em drogas e, já sem dinheiro para manter o vício, passara a traficar. Ela afirmou que o rapaz já tinha saído da faculdade em que conhecera as más companhias e já estava na segunda internação para desintoxicação, esta com bastante possibilidade de êxito. Pedia uma segunda chance a ele.

A ordem foi concedida. Enquanto ouvia, pensava: se com esse rapaz que teve todas as chances, a Corte deve ser compreensiva, o que se dirá com os miseráveis, furtadores de ninharias, sacoleiros de ônibus caquéticos, mulas de tráfico oriundas de países pobres que venho defender? Pensei em falar isso da tribuna, mas como minha tese era boa, deixei para lá e mantive o que tinha preparado. A ordem foi também deferida.

 

Por isso, ao ler o texto publicado na Folha de São Paulo, sou obrigado a concordar com parte dele, ao tempo em que rejeito outro trecho.

Infelizmente, as pessoas mais pobres, muitas vezes, não têm acesso à Defensoria Pública, Federal ou Estadual, instituições com quadros bem menores que o ideal. Não seria capaz de negar isso.

Todavia, nem sempre é correto dizer que a visão diferente decorre da qualidade da defesa. Há trabalhos melhores e piores, como ocorre, aliás, na iniciativa privada, mas vejo coisas de grande qualidade elaboradas pela Defensoria Pública que não encontram guarida nos Tribunais muito mais pelo entendimento do que por sua qualidade. Invoco um exemplo: por que o descaminho e a sonegação fiscal são tratados de formas tão distintas? Já levamos tal discussão incontáveis vezes ao STJ e ao STF.

Também discordo do aspecto de que o rigor do Código Penal nos crimes contra o patrimônio, em contraste com as chamadas leis esparsas, seja uma causa relevante da diferença. É bom lembrar que o peculato, a corrupção (ativa e passiva), a apropriação indébita previdenciária, são previstos no Código Penal, alguns com penas elevadas, e vejo mais rigor na resposta ao furto.

Por outro lado, concordo com aspectos do texto como a proximidade do acusado com a classe social de quem o julga, a possibilidade de delação premiada e a desatualização de parte da legislação (refiro-me à possibilidade de extinção da pena do furto com a devolução da coisa subtraída, que deveria ser implementada).

Quanto aos antecedentes, cumpre dizer que quem nunca é julgado, nunca se torna reincidente.

De qualquer modo, meu objetivo ao redigir este é observar que mais do que justificativas, deve haver atualização legislativa e, sobretudo, mudança no entendimento dos julgadores quanto às condutas praticadas, notadamente aquelas sem violência ou ameaça que causem pequeno ou nenhum dano (furtos de bagatela, descaminho de sacoleiros).

Em minha opinião, o rigor é maior com os mais frágeis e, pelo que vejo diuturnamente, isso vai demorar a mudar.

Brasília, 28 de fevereiro de 2017

 

 

 

[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1862406-delator-da-odebrecht-e-manicure-que-furtou-fralda-tem-penas-semelhantes.shtml

Breve resumo (atualizado até 15/02/2017)

Breve resumo (atualizado até 15/02/2017)

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Em 7 de julho de 2015, publiquei um post com o título “Breve Resumo” indicando as matérias mais frequentes na atuação criminal da DPU perante o STF e o posicionamento da Corte.

Participei do curso de formação dos colegas que tomaram posse agora em fevereiro de 2017, pelo que atualizei as informações constantes da sinopse.

Reproduzo a postagem abaixo, destacando o que entendo que sofreu alteração, seja por mudança de posição do STF, consolidação de entendimentos antes vacilantes, surgimento de precedentes relevantes.

 

 

Breve resumo

Gustavo de Almeida Ribeiro

Matérias mais frequentes no STF decorrentes do trabalho da DPU

 

Insignificância – aspectos gerais

furto – (HC 114723, TZ, 2ªT) – matéria decidida caso a caso, mas cada vez vista de forma mais restritiva

*estágio atual: HCs 123734 e 123108, RB – julgamento concluído pelo Plenário do STF para entender que furtos qualificados, bem como aqueles praticados por reincidente não admitem, como regra a aplicação do princípio da insignificância, devendo ser deferido, entretanto, o regime aberto para cumprimento de pena

descaminho – diferenciar do contrabando e limite de R$ 20.000,00 no STF (no STJ o limite é R$ 10.000,00) (descaminho HC 126191, DT, 1ªT, favorável – contrabando HC 122029, RL 2ªT, denegado) – a questão da comprovação dos valores subtraídos aos cofres públicos ainda gera controvérsia

uso de droga por militar (HC 103684, AB, Plenário, denegado) – pacificado

contra o meio ambiente (HC 112563, RL>CP, 2ªT, favorável)

*estágio atual: RHC 125566, DT, 2ªT, negado provimento, apesar de não ter sido pescada, pelo recorrente, nenhuma espécie

contra a administração (HC 107638, CL, 1ªT, favorável) – admitido, mas de forma excepcional – curioso observar que o citado precedente teve como paciente militar

moeda falsa (HC 111266, RL 2ª, denegado) pacificado no sentido no não cabimento da insignificância no crime de moeda falsa

 

Liberdade provisória

falta de fundamentação (HC 125827, RW, 1ªT; HC 114932, MA, 1ºT; HC 112487, CM, 2ªT – prisão e deserção) – matéria decidida caso a caso – enfrentamos algumas dificuldades decorrentes da condição econômica e/ou da nacionalidade dos nossos assistidos

 

Tráfico

liberdade provisória (RHC 123871, RW, 1ªT; HC 110844, AB, 2ªT, ambos favoráveis) pacificada a possibilidade, segundo precedente do Plenário do STF, HC 104339, GM

substituição de pena (HC 97256, AB, Plenário, concedido) pacificada a possibilidade

regime inicial mais brando que o fechado em crimes hediondos (HC 111840, DT, Plenário, DPE/ES) pacificada a possibilidade

causas de aumento e diminuição:

  1. transporte público (HC 120624, CL>RL, 2ªT, concedido) pacificado que o mero uso não configura a causa de aumento;
  2. redutora do §4º do artigo 33 (HC 123534, CL, 2ªT, concedido) decidido caso a caso, mas com boa aceitação no STF quando não há fundamentação adequada para afastá-la;
  3. dupla utilização da quantidade de droga em duas fases da dosimetria para aumentar a pena (HC 112776, TZ, Plenário, parcialmente concedido) – tema pacificado no sentido de se vedar a dupla invocação da quantidade de droga, que, entretanto, pode ser utilizada na primeira ou terceira fase da dosagem da pena
  4. internacionalidade e interestadualidade (HC 115893, RL, 2ªT, denegado) matéria bastante pacificada no sentido de se dispensar a ultrapassagem do limite do Estado/País para a configuração da causa de aumento (atualizado – tema pacificado)
  5. como regra, mula não é integrante de organização criminosa (HC 124107, DT, 1ªT, favorável) – também situação a se verificar caso a caso, mas prevalece o entendimento de que não integra – alguns elementos fáticos, entretanto, podem indicar o contrário (incontáveis carimbos de entrada em diversos países em passaportes de quem se declara pobre, por exemplo). (o STJ diverge do STF)

 

Dosimetria de pena e discussão na via do habeas corpus

admitida a discussão, mas em caso de flagrante excesso na fixação da pena (RHC 122469, CM, 2ªT)

 

Reformatio in pejus – questão atual

enfrentamento da reformatio in pejus (HC 103310, TZ>GM, 2ªT, HC 123251, GM, 2ªT, favoráveis; contrário RHC 123115, GM, 2ªT questão da fundamentação da constrição cautelar não invocada expressamente na sentença, mas supostamente constante da decisão e utilizada pelo Tribunal em recurso exclusivo da defesa)

 

Prerrogativa da intimação pessoa com remessa dos autos – questão atual

tem sido reconhecida a prerrogativa da intimação pessoal com remessa dos autos, contando-se o prazo a partir do ingresso do feito na DPU, mesmo que tenha havido intimação anterior em audiência (HC 125270, TZ, 2ªT, HC 126663, GM, 2ªT)

por outro lado, entendeu-se que a intimação de uma pauta com mais de 130 feitos realizada menos de 24 horas antes do início da sessão extraordinária do STM supriria a prerrogativa de intimação pessoal (HC 126081, RW, 1ªT)

 

Estelionato previdenciário

instantâneo para o servidor do INSS, permanente para recebedor do benefício (RHC 107209, DT, 1ªT) tema pacificado

 

Possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal com a aplicação de circunstância atenuante

tema pacificado no STF contrariamente ao entendimento da Defensoria para se vedar a aplicação da atenuante caso a pena-base já esteja fixada no mínimo legal (RE 597270, CP, Plenário) – pessoalmente, não me lembro de sequer um voto favorável em qualquer dos nossos incontáveis feitos sobre o tema

 

Perda de objeto do habeas corpus pela superveniência de nova decisão penal capaz de gerar novo título prisional

 *estágio atual: caso a nova decisão não traga fundamento diverso para justificar a prisão cautelar, o habeas corpus não resta prejudicado (HC 119183, TZ, 2ªT, favorável; HC 104954, MA>RW, 1ªT, desfavorável) – como regra, a 2ª Turma afasta o prejuízo quando a decisão posterior não invoca nenhum fundamento novo para justificar a constrição cautelar

precedente importante: no julgamento do HC 128278, pela 2ª Turma do STF, impetrado em favor de investigado na chamada operação Lava-jato, o STF superou a alegação de perda superveniente de objeto por novo título prisional e enfrentou o mérito do writ

 

Penal militar*

a. insignificância (HC 107638, CL, 1ªT – peculato-furto, favorável) cada vez menos aceito em favor do militar em qualquer crime

b. competência

b1.carteira de aquaviário(CIR) – a insistência do STM gerou a SV 36 quanto à competência da Justiça Federal comum para julgar a falsificação de carteira de aquaviário

b2. estelionato/furto entre colegas fora de serviço (RHC 123660, CL, 2ªT) prevalece a incompetência da Justiça Militar

b3. falsificação de documentos atinentes às Forças Armadas para a obtenção de empréstimos junto a instituições bancárias (HC 110038, MA, 1ªT, favorável; HC 110249, TZ, 2ªT, desfavorável – o mais bizarro deste caso: um dos pacientes dos dois habeas corpus é o mesmo) – em meu entender, clara insegurança jurídica

b4. competência para julgar civis quando os militares estão em atividade de policiamento (HC 112936, CM, 2ªT, favorável; HC 113128, RB, 1ªT, contrário) – matéria afetada ao Plenário HC 112848, RL e HC 126545, CL (atualizada)

c. *estágio atual: interrogatório ao final da instrução – após forte divergência entre as Turmas do STF, o tema foi submetido ao Plenário da Corte, primeiro através do HC 123228, denegado por enfrentar questão processual prejudicial; depois, o Ministro Dias Toffoli afetou o HC 127900, que foi denegado, fixando-se, entretanto, tese consentânea com o que esposado pela DPU, no sentido de se passar o interrogatório para o final em todos os feitos de natureza penal cuja instrução não estivesse encerrada no dia da publicação da ata de julgamento em diante

d. consideração do período em que o condenado cumpriu os requisitos do sursis para a obtenção do indulto – denegado por ambas as Turmas, vencidos, na 1ª, o Min. Marco Aurélio (RHC 128515) e na 2ª os Ministros Teori Zavascki e Gilmar Mendes (HCs 123827, 129209, 123698) – entendeu-se que o período em que o apenado esteve em gozo da suspensão condicional da pena não pode ser considerado como efetivo cumprimento da pena

*certamente é a matéria que mais gera insegurança jurídica

 

Nulidades

exigência de prova de prejuízo que praticamente torna impossível o reconhecimento de nulidade (vide, nesse sentido, RHC 106461, GM, 2ªT) – o Ministro Marco Aurélio, isoladamente, tem entendimento mais favorável sobre o tema, reconhecendo configurado o prejuízo quando há falhas no curso do processo e sobrevém condenação (vide voto vencido proferido no HC 98434, CL, 1ªT)

 

Maus antecedentes e inquéritos e ações penais em andamento

 matéria consolidada no RE 591054, com repercussão geral reconhecida, no sentido de se afastar a consideração de inquéritos e ações penais em andamento como maus antecedentes. Participação da DPU no julgamento do RE na condição de amicus curiae

no julgamento do HC 94620, o STF sinalizou que pode mudar esse entendimento, embora tenha concedido a ordem

 

Limitação de 5 anos como período depurador para a consideração de maus antecedentes

 a jurisprudência do STF parece caminhar para a consolidação no sentido de que passados 5 anos do cumprimento ou extinção da pena, a condenação anterior não mais pode ser invocada como maus antecedentes (HC 119200, DT, 1ªT, HC 126315, GM, 2ªT)

(o STJ diverge do entendimento do STF)

 

Compensação da atenuante confissão com a agravante reincidência
 

embora exista um precedente isolado do Min. Ayres Britto acatando a tese (HC 101909, AB, 2ªT), hoje é completamente pacifico no STF que a reincidência prepondera (HC 105543, RB, 1ªT; HC 112774, RL, 2ªT, ambos desfavoráveis)

situação pouco comum em que o STJ tem entendimento mais favorável que o STF: EREsp 1.154.752 e REsp 1.341.370

 

Cabimento de habeas corpus 

a. as duas Turmas do STF atualmente restringem a aceitação do habeas corpus voltado contra decisão monocrática de Tribunal Superior (HC 119943, DT, 1ªT; HC 119115, RL, 2ªT) – salvo, claro, situações de flagrante ilegalidade

b. a 1ª Turma do STF exige a interposição de recurso ordinário em habeas corpus contra decisão em habeas corpus, refutando o HC substitutivo (HC 114512, RW, 1ªT) – a 2ª Turma, como regra, é menos rigorosa quanto a isso

c. para a 1ª Turma, contra acórdão em recurso ordinário em habeas corpus só caberia recurso extraordinário e não HC originário (HC 119927, LF, 1ªT) – aqui também, como regra, a 2ª Turma é menos rigorosaem nosso favor, contrários à exigência da interposição de recurso ordinário: HC 111074, CM, 2ªT; 110270, GM, 2ªT e contra a exigência do recurso extraordinário: RHC 117138, RL, 2ªT

d. a 1ª Turma tem exigido a interposição de recurso extraordinário em praticamente todos os casos, notadamente quando o relator é o Ministro Luiz Fux – há situações em que o constrangimento surge no STJ e mesmo assim, ele entende incabível o HC, vide HC 124696, decisão monocrática, LF: a decisão atacada surgiu em um conflito de competência no STJ, quem seria então a autoridade coatora? 

Os itens grifados sofreram atualização.

Atualização realizada até o dia 15/02/2017.

 

 

Proposta de Súmula Vinculante 125 – Tráfico e hediondez

Proposta de Súmula Vinculante 125 – Tráfico e hediondez

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Segue, abaixo, a petição inicial da Proposta de Súmula Vinculante 125, apresentada pela Defensoria Pública da União, que pede a edição, pelo Supremo Tribunal Federal, de enunciado consentâneo com o entendimento firmado no HC 118.533, julgado pelo Plenário do STF, afastando a hediondez do chamado tráfico de drogas privilegiado.

A inicial foi ajuizada em 31/01/2017, assinada pelo Defensor Público-Geral Federal e por mim.

Brasília, 1º de fevereiro de 2017

 

EXCELENTÍSSIMA SENHORA PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – MINISTRA CÁRMEN LÚCIA

 

 

O DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL, no uso da atribuição a ele conferida pelo artigo 3º, VI, da Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, regulamentadora do artigo 103-A da Constituição Federal de 1988, vem, respeitosamente, à presença de V. Exa., propor a edição de SÚMULA VINCULANTE, versando sobre o tema detalhado a seguir.

O Supremo Tribunal Federal pacificou sua jurisprudência no sentido de que o chamado tráfico de drogas privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/2006) não tem natureza de crime hediondo. A decisão paradigma foi tomada pelo Plenário da Suprema Corte ao apreciar habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União, tombado sob o número 118.533. Calha colacionar a ementa do julgado:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos. 2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa. 3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90. 4. Ordem concedida.” (HC 118533, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016) grifo nosso

Como se verifica, restou afastado o caráter de hediondez da conduta do pequeno traficante ou traficante episódico, que preencha, segundo análise judicial, os 4 (quatro) requisitos cumulativos estipulados na Lei 11.343/2006: ser primário, de bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas, nem integrar organização criminosa.

A votação foi tomada por larga maioria, com 8 (oito) votos pela concessão da ordem contra 3 (três) por sua denegação, quórum, aliás, exigido para a aprovação de súmula vinculante, nos termos do disposto no artigo 103-A da Constituição Federal de 1988 e no artigo 2º, §3º, da Lei 11.417/2006.

A posição esposada pelo Colegiado Maior foi repetida em julgado oriundo da 1ª Turma, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso, conforme pode ser constatado abaixo:

“EMENTA: DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTROVÉRSIA DECIDIDA COM BASE NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. 1. Para chegar a conclusão diversa do acórdão recorrido, necessária seria a análise da legislação infraconstitucional pertinente, procedimento inviável em recurso extraordinário. Precedentes. 2. O Supremo Tribunal Federal afastou a natureza de crime hediondo ao tráfico ilícito de entorpecentes, na modalidade privilegiado (HC 118.533, Relª. Minª. Cármen Lúcia). 3. Agravo a que se nega provimento.” (RE 937651 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2016, DJe-208 DIVULG 28-09-2016 PUBLIC 29-09-2016) grifo nosso

Com a sedimentação do entendimento, os Eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal passaram a decidir e a aplicar o precedente emanado do Plenário de maneira singular. As diversas decisões monocráticas, parcialmente transcritas abaixo, confirmam o alegado:

HC 138.817, Min. Edson Fachin, DJe 19/12/2016:

“Destarte, com base no art. 192 do RISTF, não conheço da impetração, mas concedo a ordem de ofício para determinar ao Juízo da Execução que analise o pedido de progressão de regime, afastada hediondez equiparada quanto à condenação de tráfico de drogas com aplicação da minorante prevista no art. 33, §4°, da Lei 11.343/06.” 

HC 119.706, Min. Luiz Fux, DJe 02/12/2016:

“Esta Corte, no julgamento do HC 118.533, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 19/9/2016, pacificou o entendimento quanto à classificação jurídica do chamado “tráfico privilegiado”, cujas penas podem ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o réu seja primário, tenha bons antecedentes e não se dedique a atividade criminosa e nem integre organização criminosa, conforme preceitua o artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006.”

Rcl 25.694, Min. Gilmar Mendes, DJe 22/11/2016:

“Ante o exposto, com fundamento no artigo 161, parágrafo único, do RISTF, nego seguimento à presente reclamação. Mas concedo habeas corpus de ofício (art. 654, § 2º, do CPP), para determinar à autoridade reclamada que proceda à retificação da Guia de Execução Penal da apenada SHIRLEI ELIENAI MENDES CORREA (PEC 129.555-1, eDOC 5, p. 9-10), observando, portanto, a orientação fixada no HC 118.533/MS, no sentido de que ao condenado por tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não se aplicam os regimes mais severos previstos no art. 5º, XLIII, da CF (equiparação a crime hediondo), no art. 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 (livramento condicional) e no art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990 (progressão de regime).” 

HC 135.568 AgR, Min. Teori Zavascki, DJe 08/11/2016:

“4. No particular, o Superior Tribunal de Justiça sinalou que “A incidência da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não retira o caráter hediondo do delito de tráfico”. Como bem se vê, a decisão está em pleno desacordo com entendimento consagrado recentemente pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento do HC 118.533 (Rel. Min. Cármen Lúcia), que, ao final, afastou o caráter hediondo do tráfico privilegiado de drogas. 5. Ante o exposto, reconsidero a decisão agravada e concedo a ordem de habeas corpus para determinar ao Juízo de origem que não considere a natureza hedionda do delito de tráfico privilegiado (ação 125.08.004489-5, 2ª Vara da Comarca de Itapema/SC).”

Rcl 24.825 AgR, Min. Roberto Barroso, DJe 10/10/2016:

“10. No entanto, no presente caso, verifico que, caso fosse seguido o entendimento desta Corte no HC 118.533, o agravante já faria jus ao benefício do livramento condicional. Dessa forma e considerando a solução adotada por mim nas Rcl 24.935 e 24.936 , a desconsideração da hediondez do crime praticado pela autoridade reclamada configura, a meu ver, ilegalidade flagrante capaz de ensejar a concessão de habeas corpus de ofício. 11. Diante do exposto, concedo a ordem de ofício para determinar à autoridade reclamada que desconsidere a hediondez do crime do art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006 praticado pelo agravante.”

HC 136.762, Min. Ricardo Lewandowski, DJe 11/10/2016:

“Ressalto que há de ser observado, para solução do caso em exame, o que decidido por ocasião do julgamento do HC 118.533/MS.”

As consequências do novo entendimento esposado pelo STF, a partir do julgamento do HC 118.533, foram observadas pelo Eminente Ministro Gilmar Mendes, ao acompanhar a posição da Ministra relatora do writ, em seu voto-vista:

“Além do regime constitucional, há previsões legais que dão ao condenado por tráfico de drogas sanções mais severas do que as comuns. Tenho que ao tráfico privilegiado, tampouco, essas disposições se aplicam. 

No que se refere ao livramento condicional, o parágrafo único do já mencionado art. 44 da Lei 11.343/06 é expresso ao estabelecer que o regime mais severo é aplicável aos crimes mencionados em seu caput: 

“Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.” 

Relembre-se que o § 4º do art. 33 não é mencionado no caput do dispositivo. Logo, a regra mais gravosa quanto ao livramento condicional não se aplica. 

E, no que tange à progressão de regime, o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90 estabelece um regramento mais rigoroso do que o ordinário, aplicável ao tráfico de drogas: 

“Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

§2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.” 

Seguindo a linha aqui defendida, por tráfico de drogas deve ser entendida a conduta que se amolda ao art. 5º, XLIII, da CF. Não é o caso do tráfico privilegiado. Portanto, a regra mais gravosa à progressão de regime de cumprimento de pena não se aplica. 

Ante o exposto, peço vênia à divergência e acompanho a Relatora, para conceder a ordem, assentando que aos incursos no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06 não se aplicam os regimes mais severos previstos no art. 5º, XLIII, da CF (equiparação a crime hediondo), no art. 44, parágrafo único, da Lei 11.343/06 (livramento condicional) e no art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90 (progressão de regime).” grifos nossos

Portanto, estão preenchidos os requisitos exigidos para a tramitação e aprovação de súmula de caráter vinculante pela Corte, o que resultará na maior celeridade em favor do condenado na obtenção de benefícios, bem como na diminuição dos feitos versando sobre o tema.

Propõe, como sugestão de redação do enunciado a ser adotado pela Corte Suprema, o que segue:

“O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006) não configura crime hediondo, não sendo aplicáveis a ele os parâmetros mais rigorosos previstos no artigo 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 e da Lei 8.072/1990.”

Assim, requer seja apreciada e aprovada a proposta apresentada, com a edição de súmula vinculante.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Brasília-DF, 27 de janeiro de 2017

 

Carlos Eduardo Barbosa Paz

Defensor Público-Geral Federal

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

Defensor Público Federal de Categoria Especial