Descaminho majorado
Gustavo de Almeida Ribeiro
O descaminho majorado pela utilização de transporte aéreo, marítimo ou fluvial, previsto no §3º do artigo 334 do Código Penal, é tema pouco tratado nos livros de direito penal, ou trazido de forma sintética, mesmo nas obras especializadas em crimes federais.
Sem qualquer pretensão de desenvolver de forma aprofundada o tema, transcreverei abaixo as alegações jurídicas por mim utilizadas ao agravar da decisão monocrática proferida pelo Ministro Edson Fachin, do STF, no HC 147725 (portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5261504).
Como não poderia deixar de ser, elas têm o viés defensivo, mas mesmo para os que se interessam por outras áreas, servem para reflexão.
Brasília, 28 de maio de 2018
Primeiramente, quanto à matéria submetida a esse Egrégio Supremo Tribunal Federal, cumpre ressaltar que, em sede de habeas corpus, a competência é definida em face da autoridade coatora ou do paciente, não havendo limitação quanto aos temas nele agitados, tal como acontece com o Recurso Especial e o Recurso Extraordinário, pelo que não existe óbice no enfrentamento de matéria legal, como tem sido feito, aliás, rotineiramente, em temas processuais, por exemplo.
Assim sendo, não há que se falar em atuação exclusiva do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, já este que funcionaria como uniformizador da intepretação da lei. São inúmeras as hipóteses em que o STF é chamado a aplicar legislação ordinária, fazendo-o segundo seu entendimento e não se submetendo ao quanto fixado pela Corte Superior, vide o que ocorre nas centenas de ações penais originárias.
No que tange ao mérito da questão, há no presente caso ilegalidade manifesta, em vista da incidência da causa de aumento constante do §3º do artigo 334, do Código Penal, que versa sobre descaminho praticado em transporte aéreo.
No caso concreto, foi mantida a aplicação do §3º com na base interpretação literal do texto normativo, que, segundo esse posicionamento, seria aplicável tanto para aeronaves clandestinas como para aeronaves regulares (como a utilizada pelo agravante).
No entanto, tal entendimento não merece prosperar, visto que, nitidamente, é intuito da norma punir com maior rigor aqueles que fazem uso de transportes aéreos clandestinos, que normalmente dificultam a vigilância e têm o objetivo único de burlar autoridades fazendárias e policiais.
Não se mostra coerente aplicar penas maiores diante do mero uso de um meio de transporte aéreo regular, que se apresenta, em verdade, como o meio de deslocamento mais fiscalizado pelo Estado.
A análise da finalidade da norma é indispensável para se buscar sua melhor interpretação. Esta, no que se refere ao §3º do artigo 334, tem como único objetivo punir de forma mais gravosa e coibir o uso de meios que possam burlar o sistema de controle promovido pelo Estado. Claramente, voos regulares encontram-se submetidos a intensa fiscalização, maior, até mesmo, que a do transporte rodoviário.
Tal entendimento se mostra consentâneo com a jurisprudência do Tribunal a quo, de forma que se apresenta incompreensível a decisão tomada em contrário. In verbis:
“HABEAS CORPUS. PENAL. CONTRABANDO E DESCAMINHO. QUALIFICADORA.
TRANSPORTE AÉREO. ART. 334, § 3º, DO CP. VOO REGULAR. APLICAÇÃO. DESCABIMENTO. PENA. REDUÇÃO. PRESCRIÇÃO. CONSUMAÇÃO. 1. É descabida a aplicação da qualificadora do art. 334, § 3º, do Código Penal quando a prática delitiva é realizada por meio de transporte aéreo regular, sendo justificada a incidência da majorante tão somente quando se tratar de voo clandestino. 2. Apesar do concurso material, no cálculo da prescrição, cada pena deve ser considerada individualmente, segundo a regra contida no art. 119 do Código Penal. 3. Fixada a reprimenda para cada delito em 1 ano e 6 meses, o prazo prescricional é de 4 anos (art. 109, V, do CP), lapso esse transcorrido entre a data dos fatos (8/4/1996) e o recebimento da denúncia, em 27/4/2001 (fl. 452), bem assim entre este marco interruptivo e a publicação da sentença, em 1º/9/2006. 4. Ordem concedida para excluir a qualificadora do art. 334, § 3º, do Código Penal, ficando as reprimendas reduzidas pela metade, bem como para declarar a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal, nos termos do art. 107, IV, do Código Penal, determinando a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, se por outro motivo não estiver preso.” (HC 148.375/AM, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 12/04/2012, DJe 29/08/2012) grifo nosso
De forma majoritária, a doutrina esposa o mesmo entendimento que o ora esgrimido, destacando o fim protetivo da norma e razão do tratamento mais grave no caso do descaminho com a utilização de aeronave. Nesse sentido, expõe Cezar Roberto Bitencourt[1]:
“Teoricamente, a justificativa para essa majorante é a maior dificuldade de controle do transporte aéreo de mercadorias feito por essa via. Evidentemente que o legislador quando editou essa majorante, por certo, a estava destinando à importação ou exportação clandestina, sem controle alfandegário. Em situações como essas, efetivamente o combate ao contrabando ou descaminho fica enormemente dificultado, sendo razoável que se procure cominar-lhe sanção penal mais rigorosa.”
Diante do exposto, resta clara a necessidade de afastamento da majorante aplicada com fundamento único no uso de aeronave, considerando-se que o caráter punitivo da norma destina-se aos voos clandestinos, e não a todos os meios de transporte aéreos.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal, 5: parte especial, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 234.