Furto e insignificância – possibilidades
Gustavo de Almeida Ribeiro
Teço, no presente, algumas observações quanto à aplicação do princípio da insignificância ao furto por parte do STF.
Penso que de todas as situações em que a DPU requer a aplicação da insignificância em favor dos assistidos, os casos envolvendo furto são os que admitem maior variação.
Atualmente, está praticamente vedada, por exemplo, a aplicação da insignificância em favor daquele que reitera no descaminho, mesmo que existam contra si apenas anotações administrativas, a não ser que haja uma circunstância excepcional.
Por outro lado, em se tratando do furto, ainda que a pessoa seja reincidente, condutas ínfimas, praticamente famélicas, têm permitido, ao menos quando o processo cai na Segunda Turma do STF, a aplicação da insignificância.
Alguns pontos acabam pesando em favor do reconhecimento da atipicidade material: a subtração recair sobre produtos de primeira necessidade, os bens terem sido recuperados, não haver no caso situação que indique maior periculosidade (como invasão de domicílio), condição da pessoa (morador de rua, mãe com filhos pequenos), além, é claro, do valor das coisas subtraídas.
Mesmo a Primeira Turma, mais refratária à bagatela, tem, pelo menos, abrandado a pena, o que já significa vantagem para os assistidos da Defensoria Pública.
Aliás, nesse aspecto, a melhoria do regime de cumprimento de pena e/ou sua substituição por restritiva de direitos já pode significar que uma pessoa que tenha praticado conduta de pequena gravidade não será recolhida ao cárcere. Alguns pareceres ofertados pela PGR têm sido no sentido de se reduzir a pena imposta, em razão do pequeno valor da coisa subtraída.
Colocarei, abaixo, alguns julgados bastante recentes da Segunda Turma do Supremo, colegiados ou singulares, que podem servir de paradigma para estudo e prática jurídica.
Brasília, 31 de agosto de 2018
“Habeas corpus. 2. Furto simples de blusa de frio, marca Adidas, no valor de R$ 99,00. Sentença absolutória reformada pelo Tribunal. 3. Réu, à época da condenação, primário. 4. Aplicação do princípio da bagatela. Possibilidade. Precedentes. Peculiaridades do caso. 5. Reconhecida a atipicidade da conduta. 6. Ordem concedida para restabelecer a sentença de primeiro grau que aplicava o princípio da insignificância.” (HC 139738 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 08/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31-07-2018 PUBLIC 01-08-2018)
“Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus interposto pela Defensoria Pública da União em favor de Roberto Rolim de Mello de Andrade contra acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ proferido nos autos do HC 366.669-AgR/SC, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, assim ementado: “PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. AGENTE REINCIDENTE ESPECÍFICO NA PRÁTICA DE DELITO PATRIMONIAL. REPROVABILIDADE ACENTUADA DA CONDUTA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. O furto praticado por réu reincidente específico, ainda que seja pequeno o valor da coisa furtada – um par de chinelos, quatro cartelas de pilhas duracel AA e 4 barras de chocolate, perfazendo o total de R$73,90, o que representa 10,20% do salário mínimo vigente à época dos fatos –, não enseja a aplicação do princípio da insignificância, porquanto não se pode considerar como reduzidíssimo o grau de reprovabilidade da conduta. 3. Agravo regimental improvido.” (pág. 55 do documento eletrônico
(…)
4). É o relatório. Decido. Bem examinados os autos, verifico que o recurso merece prosperar. Isso porque a jurisprudência firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF é no sentido de que “a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto” (HC 123.108/MG, Rel. Min. Roberto Barroso) , verbis: “PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE FURTO SIMPLES. REINCIDÊNCIA. 1. A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (‘conglobante’), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados. 2. Por maioria, foram também acolhidas as seguintes teses: (i) a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e (ii) na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, § 2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade. 3. No caso concreto, a maioria entendeu por não aplicar o princípio da insignificância, reconhecendo, porém, a necessidade de abrandar o regime inicial de cumprimento da pena. 4. Ordem concedida de ofício, para alterar de semiaberto para aberto o regime inicial de cumprimento da pena imposta ao paciente” (HC 123.108/MG, Rel. Min. Roberto Barroso; grifei). No mesmo sentido, destaco os HCs 123.734/MG e 123.533/SP, também relatados pelo Ministro Roberto Barroso e julgados pelo Plenário do STF. Na espécie, observo que o recorrente foi condenado à pena de 1 ano, 7 meses e 1 dia de reclusão, em regime semiaberto, após ter sido denunciado por furtar de um supermercado 1 par de sandálias, 4 cartelas de pilhas Duracell AA e 4 barras de chocolate, totalizando R$ 73,90 (setenta e três reais e noventa centavos) (pág. 103 do documento eletrônico 1). O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – TJSC manteve a sentença condenatória, afastando a aplicação do princípio da insignificância em virtude da “habitualidade da conduta criminosa que afasta o reconhecimento da benesse” (pág. 154 do documento eletrônico 1). Pois bem, como já ressaltado, esta Suprema Corte entende que a reiteração delituosa não impede a aplicação do princípio da insignificância. Ademais, o reconhecimento da conduta praticada como insignificante tem o condão de “afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material” (HC 92.463/RS, Rel. Min. Celso de Mello). Vejamos: “PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO SIMPLES, EM SUA MODALIDADE TENTADA – “RES FURTIVA” NO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 20,00 (EQUIVALENTE A 5,26% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (HC 92.463/RS, Rel. Min. Celso de Mello; grifos do original). Diante de tais argumentos, verifico, in casu, a presença dos vetores que autorizam a aplicação do princípio da insignificância, tais como a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social do agente e a inexpressividade da lesão jurídica. Isso posto, dou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus para anular a sentença condenatória, aplicando o princípio da insignificância (art. 192 do RISTF). Expeça-se o alvará de soltura clausulado. Comunique-se ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – TJSC. Publique-se. Brasília, 29 de junho de 2018. Ministro Ricardo Lewandowski Relator” (RHC 145205, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 29/06/2018, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31/07/2018 PUBLIC 01/08/2018)
“EMENTA: TENTATIVA DE FURTO SIMPLES (CP, ART. 155, “CAPUT”, C/C O ART. 14, II). DUAS PEÇAS DE QUEIJO MINAS. OBJETOS SUBTRAÍDOS QUE FORAM DEVOLVIDOS À VÍTIMA, QUE É UMA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. SITUAÇÃO DE REINCIDÊNCIA QUE NÃO DESCARACTERIZA, POR SI SÓ, O FATO INSIGNIFICANTE. PRECEDENTES, NESSE SENTIDO, DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SUA DIMENSÃO MATERIAL. DOUTRINA. PRECEDENTES. HIPÓTESE, NO CASO, DE ABSOLVIÇÃO PENAL DA PACIENTE (CPP, ART. 386, III). “HABEAS CORPUS” DEFERIDO.” (HC 155920, Relator Min. CELSO DE MELLO, DJe 03/05/2018)
No mesmo sentido está o HC 141440, cujo acórdão ainda não foi publicado:
“Furtar um galo, quatro galinhas caipiras, uma galinha garnisé e três quilos de feijão — que juntos somam pouco mais de R$ 100 — é ato que se enquadra no princípio da insignificância, mesmo se o réu for reincidente. Assim entendeu a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao conceder Habeas Corpus e absolver um homem acusado de furto qualificado.” (https://www.conjur.com.br/2018-ago-27/furto-galinhas-feijao-insignificante-mesmo-reincidente?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook)