Contrabando de alho

Contrabando de alho

Segue, abaixo, texto escrito por minha colega Tarcila Maia, contando o caso de pessoa que ficou presa por contrabando de alho.

É sempre uma oportunidade de reflexão.

Brasília, 26 de agosto de 2019

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Contrabando de alho

 

Tarcila Maia Lopes, Defensora Pública Federal

 

Ser defensora na área criminal e se identificar como abolicionista/minimalista (no meu caso, minimalista) é se deparar todo dia com situações que considero absurdas: já vi processo criminal de tentativa de furto de algumas telhas de alumínio, de uma pessoa acusada de furto porque recolheu notas de dinheiro que voaram de uma agência bancária explodida, entre outras… Mais recentemente, um colega defensor me contou um caso que me chamou muito atenção e sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar: contrabando de alho. Sim, alho, aquele tempero maravilhoso que tenho sempre em casa. Comentei o caso no Twitter e daí surgiu o convite para fazer esse texto.

Primeiro, vamos à dogmática jurídica. O crime de contrabando está previsto no artigo 334-A do Código Penal, que diz o seguinte:

Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

§1º Incorre na mesma pena quem:

I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando;

II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente;

III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação;

IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;

V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira.

§2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.

§3º A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.

Como qualquer pessoa que goste de cozinhar sabe, alho não é um produto proibido no Brasil. Porém, sua importação precisa seguir alguns trâmites administrativos. Assim, quem traz alho para o Brasil sem a devida autorização dos órgãos de controle brasileiros comete, em tese, o crime previsto no artigo 334-A, II do Código Penal.

No caso que me foi contado, um cidadão estava transportando 141 sacos de alho num carro e foi preso em flagrante pela Polícia Federal. Dois dias depois, foi realizada audiência de custódia e o cidadão teve sua prisão preventiva decretada. Segundo a decisão, como o autuado tinha outras acusações de crime, inclusive de contrabando, era necessário “cessar sua conduta delituosa”. A DPU fez pedido de reconsideração desta decisão e depois impetrou habeas corpus em favor do assistido. De nada adiantou. Ele permaneceu preso até a sentença, quase três meses depois, quando foi absolvido porque não havia laudo comprovando que o alho transportado era proveniente de fora do país. O MPF apelou desta decisão.

O que achei curioso nesse caso foi que eu jamais imaginaria que houvesse comércio clandestino de um produto tão comum quanto alho. Além disso, como boa minimalista que sou, acho que o Direito Penal não deveria ser usado nesses casos. Dois dos princípios fundamentais do Direito Penal são a fragmentariedade e a intervenção mínima. Parece-me que o Direito Administrativo é suficiente para tutelar o bem jurídico neste caso. Não se trata de uma conduta violenta, que cause perturbação social. Nesses casos, eu acho que o Direito Penal mais atrapalha que ajuda. Por isso, no Twitter, ironizei afirmando que a conduta era super perigosa.

Por fim, fiquei impressionada com a desproporção da prisão cautelar nesse caso, porque o assistido foi absolvido. E, ainda que não fosse, a pena máxima do contrabando é de 5 anos, o que, para pessoas como o cidadão que a DPU defendeu, que é primário, faria com que ele tivesse de cumprir pena no regime aberto ou, na pior das hipóteses, no regime semiaberto. Se ele fosse condenado, teria permanecido preso cautelarmente (quando se presume a inocência dele) em um regime mais gravoso do que quando ele tivesse sido condenado. E isso não é proporcional de forma alguma. Aqui, nem precisa ser minimalista como eu para pensar assim: os princípios mais básicos do Direito Penal e do Processo Penal já seriam suficientes para evitar prisões como esta.

Por conta de casos como este, penso que ser defensora na área criminal é muito mais do que atuar na defesa de pessoas como este assistido da história. É assumir um papel de denúncia de um sistema criminal extremamente violento, expondo situações reais de injustiça, na esperança que outras pessoas sejam tocadas por nossos relatos e possamos mudar um pouco essa realidade.

Recife, 26 de agosto de 2019

Deixe um comentário