Nulidades, prejuízos e delatores
Gustavo de Almeida Ribeiro
Farei, a seguir, alguns comentários rápidos sobre as nulidades no processo penal e como o STF tem entendido o tema em alguns processos patrocinados pela DPU.
Não sou professor e nem pretendo tecer considerações aprofundadas, mas apenas observarei alguns aspectos que considero bastante pertinentes desde a discussão surgida com a decisão sobre a ordem de manifestação no caso de um dos acusados ser delator (HC 157627, julgado pela Segunda Turma do STF).
1 – Discordo da afirmação que tem sido repetida à exaustão no sentido de que para haver nulidade a defesa sempre deve provar prejuízo (entendimento adotado, aliás, pelo STF).
Em certas circunstâncias, tal prova é absolutamente impossível, pelo que sua exigência significa permitir que limites no processo penal sejam completamente abandonados sem qualquer consequência.
Tenho um exemplo ocorrido em processo em que atuei para demonstrar.
No HC 136015, concedido pela 2ª Turma do STF, sob relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, a alegação era de nulidade em razão da atuação de Magistrado impedido. No caso, pai e filho tinham atuado como desembargadores e julgado recursos no processo penal movido contra a paciente do mencionado habeas corpus. O Ministro Edson Fachin votou pela denegação, ficando vencido. O acórdão ainda não foi publicado, mas se me lembro das palavras dele, ele invocou a não demonstração de prejuízo.
Fica a pergunta: como qualquer defensor/advogado poderia provar que se fosse outro julgador o resultado seria diferente? Como provar que houve ou não influência? Por isso, a mera relação familiar entre os julgadores impede sua atuação no mesmo processo. Aliás, os dois votaram contra os pedidos da defesa. Se tivessem ambos votado a favor, o MP certamente teria se insurgido.
Claro que existem situações que configuram mera irregularidade, mas a exigência da prova de prejuízo, em muitos casos, cria o que eu chamo de prova do futuro do pretérito, ou seja, prova do que teria sido diferente se algo que não ocorreu (ou ocorreu de forma distinta da prevista em lei) tivesse acontecido da maneira correta.
Tenho mais situações em que a prova de prejuízo é absolutamente impossível, mas penso estar esclarecido o ponto. Aliás, muitas vezes, a própria prova do prejuízo fica impossibilitada justamente pelo desrespeito às normas processuais. Como a defesa prova que o acusado preso poderia ajudar na formulação de perguntas à testemunha, se ele não acompanhou o andamento da audiência justamente por estar preso? Ele não ouviu a testemunha por não estar presente e, pede-se que ele mesmo ausente, prove o que teria feito de mais favorável à sua defesa se estivesse na audiência.
2 – O STF é extremamente rigoroso no reconhecimento de nulidades. Já vi casos em que a lei processual penal e até mesmo a Constituição da República tinham sido desrespeitadas e que foram considerados mera irregularidade sem prejuízo. Um bom exemplo disso está no HC 130328, em que proferi sustentação oral e que foi denegado pela 2ª Turma do STF, vencido o Ministro Celso de Mello. No caso em questão, pessoa presa não tinha sido conduzida à audiência, pelo que a Defensoria Pública pedia a nulidade do ato. Transcrevo trecho do voto vencido do Ministro decano:
“Esse entendimento tem por suporte o reconhecimento – fundado na natureza dialógica do processo penal acusatório, impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 13/20, 1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica) – de que o direito de audiência, de um lado , e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of law” e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu .”
A pessoa presa está sob o poder do Estado. Já está em condição processual nitidamente mais fragilizada. Não tem o direito sequer de estar presente nas audiências?
3 – No HC 127900, impetrado pela DPU, pedia-se que a inversão na ordem do interrogatório (passado para o final da instrução), conforme alteração inserida no CPP pela Lei 11719/08, valesse para todos os processos penais. Ao julgá-lo, o STF denegou a ordem, mas fixou orientação para estabelecer que a partir da publicação da ata de tal julgamento, a nova sistemática estabelecida pelo Código de Processo Penal deveria ser seguida em todos os processos de natureza penal.
É uma comparação interessante a ser feita.
“EMENTA Habeas corpus. Penal e processual penal militar. Posse de substância entorpecente em local sujeito à administração militar (CPM, art. 290). Crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar. Competência da Justiça Castrense configurada (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). Pacientes que não integram mais as fileiras das Forças Armadas. Irrelevância para fins de fixação da competência. Interrogatório. Realização ao final da instrução (art. 400, CPP). Obrigatoriedade. Aplicação às ações penais em trâmite na Justiça Militar dessa alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes. Adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988. Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. 1. Os pacientes, quando soldados da ativa, foram surpreendidos na posse de substância entorpecente (CPM, art. 290) no interior do 1º Batalhão de Infantaria da Selva em Manaus/AM. Cuida-se, portanto, de crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar, o que atrai a competência da Justiça Castrense para processá-los e julgá-los (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). 2. O fato de os pacientes não mais integrarem as fileiras das Forças Armadas em nada repercute na esfera de competência da Justiça especializada, já que, no tempo do crime, eles eram soldados da ativa. 3. Nulidade do interrogatório dos pacientes como primeiro ato da instrução processual (CPPM, art. 302). 4. A Lei nº 11.719/08 adequou o sistema acusatório democrático, integrando-o de forma mais harmoniosa aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988, assegurando-se maior efetividade a seus princípios, notadamente, os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). 5. Por ser mais benéfica (lex mitior) e harmoniosa com a Constituição Federal, há de preponderar, no processo penal militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), a regra do art. 400 do Código de Processo Penal. 6. De modo a não comprometer o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) nos feitos já sentenciados, essa orientação deve ser aplicada somente aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso dos autos, já que há sentença condenatória proferida em desfavor dos pacientes desde 29/7/14. 7. Ordem denegada, com a fixação da seguinte orientação: a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.” (HC 127900, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 02-08-2016 PUBLIC 03-08-2016) grifo nosso
4 – Quanto ao mérito em si, confesso ter mais dúvidas do que certezas. São várias as razões e vou usar uma que me atinge como Defensor. Se falar por último beneficia, por que razão o delator deve ficar prejudicado, sendo também acusado?
As outras ponderações deixarei para distintos atores processuais, mas, como Defensor que, às vezes pode atuar para o delator, e, em outras, para o delatado, tenho dificuldade em esposar uma posição de forma peremptória, sem refletir sobre o outro lado.
Já atuei em favor de delator. As pessoas delatadas eram muito poderosas, ocupantes de elevados cargos na República (a delação já foi há muito homologada). No caso dele, sequer houve denúncia em seu desfavor, mas se houvesse, seria correto que ele tivesse que apresentar sua defesa antes dos demais? O que ele tinha que apresentar de provas já estava nos autos.
Com todo respeito, acho forçada a alegação de que delator é assemelhado ao assistente de acusação. Assistente de acusação não é condenado em caso de não acolhimento do que ele aduziu, o delator é. Ninguém atribui ao assistente a prática do crime, ao delator, sim.
Em suma, não tenho certeza se, entre os diversos acusados, e é isso o que o delator é, deve haver ordem.
5 – Segunda Turma do STF e nulidades em casos da Defensoria (em situações próximas e em que houve alegação logo na primeira manifestação)
Concedido
HC 136015, 2ª Turma, relator Ministro Ricardo Lewandowski – concedido – reconhecida a nulidade por terem pai, Desembargadores, julgado o mesmo processo (acórdão não publicado ainda)
Denegados
“EMENTA Habeas corpus. Constitucional. Processual Penal. Audiência de inquirição de testemunhas de acusação realizada sem a presença da paciente. Alegado cerceamento do direito de defesa. Não ocorrência. Ato realizado com a presença do defensor constituído. Inexistência de prejuízo. Precedentes. Ordem denegada. 1. Consoante se infere dos autos, a audiência de inquirição de testemunhas de acusação foi realizada sem a presença da paciente, porém com a presença de seu defensor, de modo que inexiste o alegado cerceamento do seu direito de defesa, uma vez que não configurado o prejuízo apontado. Precedentes. 2. Ordem denegada.” (HC 130328, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 02/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-098 DIVULG 13-05-2016 PUBLIC 16-05-2016)
“Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. DEFENSORIA PÚBLICA. DEFENSOR PÚBLICO NATURAL. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. PEDIDO DE REDESIGNAÇÃO. ATO REALIZADO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO. MATÉRIA NÃO ARGUIDA OPORTUNAMENTE. 1. À Defensoria Pública, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, compete promover a assistência jurídica judicial e extrajudicial aos necessitados (art. 134 da Constituição Federal), sendo-lhe asseguradas determinadas prerrogativas para o efetivo exercício de sua missão constitucional. 2. O art. 4º-A da Lei Complementar 80/1994 estabelece que são direitos dos assistidos pela Defensoria Pública “o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural” (designação por critérios legais), o que não se confunde com exclusividade do órgão para atuar nas causas em que figure pessoa carente, sobretudo se considerada a atual realidade institucional. 3. No caso, o indeferimento do pedido de adiamento de audiência designada não configura cerceamento de defesa, pois, à falta de defensor público disponível para atuar na defesa técnica do paciente, foi-lhe constituído advogado particular, que exerceu seu mister com eficiência e exatidão, precedido de entrevista reservada e privativa com o acusado. 4. Ademais, à luz da norma inscrita no art. 563 do Código de Processo Penal, a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que o reconhecimento de nulidade dos atos processuais demanda, em regra, a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte. Vale dizer, o pedido deve expor, claramente, como o novo ato beneficiaria o acusado. Sem isso, estar-se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional. Questão, outrossim, suscitada a destempo, após a prolação de sentença condenatória. 5. Ordem denegada.” (HC 123494, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 16/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-039 DIVULG 01-03-2016 PUBLIC 02-03-2016)
“Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE PECULATO. AUSÊNCIA DE DEFESA PRELIMINAR DO ART. 514 DO CPP. NÃO DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO À DEFESA TÉCNICA. MATÉRIA NÃO ARGUIDA OPORTUNAMENTE. PRECLUSÃO. INVIABILIDADE DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VALOR QUE POSSUI RELEVÂNCIA PARA O DIREITO PENAL. 1. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que, para o reconhecimento de nulidade decorrente da inobservância da regra prevista no art. 514 do CPP, é necessária a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte. Improcede, pois, pedido de renovação de todo o procedimento criminal com base em alegações genéricas sobre a ocorrência de nulidade absoluta. 2. Ademais, se a finalidade da defesa preliminar está relacionada ao interesse público de evitar persecução criminal temerária contra funcionário público, a superveniência de sentença condenatória, que decorre do amplo debate da lide penal, prejudica a preliminar de nulidade processual, sobretudo se considerado que essa insurgência só foi veiculada nas razões de apelação. 3. A ação e o resultado da conduta praticada pela paciente assumem, em tese, nível suficiente de reprovabilidade, destacando-se que o valor indevidamente apropriado não pode ser considerado ínfimo ou irrelevante, a ponto de ter-se como atípica a conduta. Precedentes. 4. Ordem denegada.” (HC 128109, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 08/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-189 DIVULG 22-09-2015 PUBLIC 23-09-2015)
Em suma, o STF tem como entendimento a necessidade de se provar o prejuízo para reconhecer a nulidade. Também tem entendido que a falta de alegação na primeira oportunidade implica em preclusão.
São essas minhas considerações. Veremos como ficará o entendimento do Tribunal em alegações de nulidades em casos futuros.
Brasília, 2 de setembro de 2019