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O álibi

O texto abaixo é uma adaptação do conto de mesmo nome do escritor francês Tristan Bernard (1866-1947), ajustado para os dias atuais, para a realidade e direito brasileiros. A ideia central vem do original francês, os floreios são meus.

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

O álibi

 

Belo Horizonte, setembro de 1993

 

Maicon estava cansado de sua vida monótona e quase miserável. Ser Office-boy de um escritório de cobrança e percorrer a cidade inteira buscando e entregando documentos por um ínfimo salário-mínimo não estava em seus planos como trabalho por muito tempo.

A falta de estudos, de condições, de pessoas que pudessem apadrinhá-lo para que conseguisse coisa melhor deixavam-no muito desanimado.

A idéia surgiu quando ele entregava documentos em um sítio de uma senhora idosa em Santa Luzia, nas proximidades de Belo Horizonte. A casa era grande, desprotegida, com um muro baixo e aparentemente nenhum sistema de alarme.

A criada, única pessoa que fazia companhia à proprietária, abriu a porta com uma boa vontade e uma inocência só encontradas em localidades menores.

Deixou-o esperando na sala para chamar a patroa. Enquanto isso, ele pôde perceber que se tratava de uma casa com objetos interessantes, coisas que talvez tivessem valor, ou ainda, quem sabe, existissem jóias no quarto da dona.

Durante vários dias pensamentos ruins povoaram sua mente. No dia seguinte à entrega na casa dessa senhora, Maicon foi humilhado por seu chefe na frente de todos, ridicularizado sem qualquer razão.

Para piorar, estava sentindo imenso ciúme da companheira, com quem, apesar de ter apenas 19 anos morava há aproximadamente 6 meses. Dançarina de uma boate de strip tease de segunda categoria, Maicon sabia que o trabalho dela não se resumia a isso. Estava acostumado e não era isso que o feria. Ela era profissional, não sabia o nome de ninguém, dançava, fazia algo mais e pronto. Mas havia um safado, um bicheiro, para ser mais exato, que estava mexendo com Mariele. Ela não falava muito para evitar os ciúmes, mas pelas conversas dela, esse velho estava prometendo dinheiro e uma casa melhor para ela ser uma espécie de exclusividade dele.

Mariele estava se interessando e começava a humilhá-lo dizendo que não poderia sustentar a casa sozinha por muito tempo, que ele precisava crescer, ganhar mais. Ela era mais mulher que ele homem, ambos sabiam disso e ela fazia questão de deixar isso claro nos últimos tempos.

Maicon tomou sua decisão. Iria assaltar a casa da velhinha. Não queria fazer disso meio de vida, mas precisava de um capital inicial para começar qualquer coisa. Planejou tudo.

Agiria na sexta. Primeiro por ter folga no sábado, segundo por Mariele trabalhar até de manhã nesse dia.

Chegada a sexta, pôs o plano em ação. Chegou do trabalho no horário normal. Falou com a dona da pensão miserável que ele dividia no subúrbio de Belo Horizonte com Mariele que estava com muita dor de cabeça e por isso se deitaria cedo aquele dia. A dançarina já tinha saído para a boate.

Subiu, vestiu uma camisa e um casaco do qual pudesse se livrar para evitar se reconhecido caso alguma coisa saísse errado e pôs em execução seu plano.

Saiu pela janela por volta de 11 da noite, para que ninguém notasse. Pegou um ônibus até a entrada de Santa Luzia, não daria tão na vista a ponto de descer perto de seu destino, mesmo por que por lá não passava ônibus a uma hora daquelas. Esgueirou-se pelas ruas até chegar à estradinha que levava à propriedade e, ao chegar na casa da vítima, calçou luvas e certificou-se de que a região estava vazia, antes de pular o muro.

Dentro da propriedade, conseguiu abrir uma janela antiga, de madeira, de acordo com o estilo colonial da construção. Começou a colocar a prataria em um saco quando, por causa da fraca claridade que entrava da rua, esbarrou em um abajur derrubando-o. Próximo que estava do quarto da velha, acordou-a. A senhora chamou pela criada, achando que fosse ela. Maicon torceu para que ela desistisse e tornasse a dormir. Mas, curiosa, a mulher levantou-se. Com o descontrole típico dos amadores, Maicon pegou um abridor de cartas que ele tinha selecionado como objeto a ser levado, por estar incrustado de pedras, e cravou no ventre da idosa. Sua queda acordou a empregada, que veio ver o que estava acontecendo. Ela viu Maicon e lembrou-se do entregador daquele outro dia. Sem opção, ele a golpeou com um peso de papéis. Ela caiu e ele acreditou que estivesse morta.

Com o caminho livre, ele vasculhou a casa, encontrando ainda R$ 500,00 em dinheiro, além de algumas jóias.

Saiu da casa por volta de 2 da manhã e na claridade da lua percebeu que seu paletó estava manchado com o sangue da vítima. Com exceção do dinheiro, colocou tudo, casaco, arma do crime e objetos roubados no saco e os escondeu em uma pedra afastada 200 metros da estrada que liga Santa Luzia a Belo Horizonte. Com medo, voltou para casa a pé.

Ao chegar em seu hotel miserável já de manhã, viu alguns carros de polícia em volta da porta. Assustado, imaginou se eles estariam lá por sua causa. Sentiu seu sangue gelar. Pensou em fugir, mas antes que tivesse tempo de fazer qualquer coisa, viu a dona da pensão reconhecê-lo e apontar para ele. Sabia que se corresse após ter sido visto seria pior. Com uma frieza que não esperava ter, continuou caminhando em direção à sua casa, sabendo que a sorte estava lançada.

Foi abordado por um investigador que imediatamente o algemou. Ficou calado, sem conseguir entender como já poderia ter sido descoberto seu crime. Maldisse seu azar, não acreditava no que estava acontecendo.

O investigador perguntou porque ele havia feito aquilo. Antes que ele respondesse, conduziu-o a seu quarto.

Mariele estava morta, a facadas, deitada na cama. A arma do crime não estava lá. Não havia arrombamento ou sinal de luta. Ela não se defendera, conhecia o agressor. Maicon, calado, foi preso em flagrante. A polícia encontrou com ele o dinheiro subtraído da casa da velha, o que aumentou a suspeita contra o rapaz. Ele teria matado a companheira para ficar com o dinheiro dela, além do ciúme.

A dona da pensão disse que Mariele voltara cedo aquela noite. Ela passou pela entrada da pensão onde a proprietária e o marido terminavam de assistir a um filme por volta de 1 da manhã. Alegara estar passando mal.

Dias depois, Maicon conseguiu deixar a cadeia por meio de liberdade provisória.

Enquanto isso, começavam as buscas do assassino da velha. A empregada sobreviveu e fez boa descrição do homem. No entanto, a polícia estava preocupada em provar a culpa de Maicon no assassinato da companheira, ocorrido aproximadamente no mesmo horário, em lugares distantes um do outro. Assim, a empregada nunca teve a chance de ver o rosto de Maicon na televisão – culpados de assassinar dançarinas de cabaré não são manchetes de jornal. O assassino de Santa Luzia não foi encontrado.

Maicon respondeu ao processo em liberdade. Era primário, tinha bons antecedentes. Foi pronunciado, mesmo assim continuou livre. Quando ouvidas as testemunhas em seu processo, elas foram assentes em afirmar que ele estava com ciúmes de um possível romance da namorada e que ele estava sem dinheiro, piorando sua situação. Foi condenado. O curso do processo demorou 6 anos, aproximadamente. Ele apelou, também em liberdade. Quando o Tribunal de Justiça confirmou a condenação, mantendo a pena de 14 anos, Maicon foi finalmente preso. No dia em que ele foi conduzido à prisão já haviam se passado 8 anos e seis meses do fatídico dia 13 de setembro de 1993.

 

Ribeirão das Neves, presídio da região metropolitana de Belo Horizonte, outubro de 2003

 

Trancado em sua cela, Maicon escreveu a seguinte carta para o Juiz da Execução. Ele está preso há aproximadamente 1 ano e meio.

“Ribeirão das Neves, 2 de outubro de 2003”.

Sr. Juiz,

Na noite de 13 de setembro de 1993, eu saí de casa para furtar o sítio de uma velha em Santa Luzia, distante aproximadamente 35 km da capital. Ela me surpreendeu na hora e acabei matando-a. Ataquei também a empregada que, felizmente, não morreu. Fugi com os objetos do crime e os escondi, bem como minha camisa suja com o sangue da velha.

Ao chegar em minha casa, fui acusado e depois condenado por ter supostamente cometido o crime pelo qual estou hoje preso, ou seja, matado minha mulher.

Pois bem, com os objetos do crime, a arma, a camisa ensangüentada, bem como o testemunho da sobrevivente, posso provar que sou inocente quanto ao crime pelo qual me prenderam, pois naquele mesmo horário estava longe, cometendo outro na região rural de Santa Luzia, e não tinha como voltar tão rápido.

Acontece, Sr. Juiz, que a maior prescrição no Direito Penal Brasileiro é de 20 anos. Nós temos tempo de estudar na cadeia, sabe? Só que na época do fato eu tinha apenas 19, o que faz o prazo de prescrição cair pela metade. Assim, aquele crime está prescrito e desse pelo qual fui preso, sou inocente. Quero ser ouvido oficialmente pelo Sr. para que possa demonstrar meu álibi na presença do Ministério Público.

Serei um homem livre, Sr. Juiz.

Maicon