Crime ambiental – pesca e princípio da insignificância
Colocarei abaixo o agravo interno que apresentei no HC 176670, que teve seu seguimento negado, em decisão monocrática, pelo Min. Luiz Fux.
O pescador, que é o paciente do HC, sequer chegou a retirar um peixe ou crustáceo da água, mas mesmo assim foi condenado pelo crime previsto no artigo 34, parágrafo único, inciso II da Lei 9605/98 (pesca com petrecho proibido), sendo afastada a aplicação do princípio da insignificância.
Curioso observar o precedente invocado no recurso.
Tenho colocado esses julgados e recursos aqui por duas razões: para que as pessoas que se interessam saibam o que chega ao STF através da Defensoria e também para que se tenha conhecimento de como julgam as Cortes Superiores.
Gustavo de Almeida Ribeiro
Brasília, 8 de novembro de 2019
BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS
O agravante foi denunciado pela suposta prática da conduta tipificada no artigo 34, parágrafo único, inciso II, da Lei 9605/98, a saber, pesca com o emprego de petrecho não permitido.
Foi ofertada a ele a suspensão condicional do processo. Além das condições relativas a não se mudar nem se ausentar do Estado do Rio Grande do Norte sem avisar ao juízo, foram impostas outras duas: o pagamento de R$ 250 (duzentos e cinquenta reais), divididos em 5 (cinco) vezes e o comparecimento bimestral em juízo por 2 (dois) anos. O valor foi pago integralmente, mas, como o agravante só compareceu 5 (cinco) vezes ao Fórum de sua Comarca, o benefício foi revogado.
Sobreveio então a condenação a 1 (um) ano de detenção, sendo a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos.
Interposta apelação pela defesa, ela restou desprovida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados.
Em seguida, o agravante interpôs recurso especial, inadmitido na origem. Sobreveio então o agravo para destrancá-lo.
Já na Corte Superior, o recurso nobre não foi conhecido, em decisão monocrática. Interposto agravo interno, a decisão foi mantida.
Em seguida, a defesa impetrou habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal ao qual foi negado seguimento em decisão singular. No entanto, tal decisão não merece prosperar, como será demonstrado a seguir.
DAS RAZÕES RECURSAIS
O presente agravo volta-se contra r. decisão monocrática que negou seguimento ao habeas corpus impetrado em favor de acusado de cometer crime de pesca com petrecho ilegal.
A irresignação cinge-se ao capítulo da decisão que afastou a aplicação do chamado delito de bagatela, capaz, por si só, de justificar a concessão da ordem.
Inicialmente, calha destacar que nenhuma espécie foi pescada pelo agravante – vide o voto condutor do acórdão no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Além disso, o paciente, pessoa com idade superior a 50 (cinquenta) anos, quando da ocorrência do fato, não tem antecedentes criminais, tanto que lhe foi ofertada a suspensão condicional do processo.
Ainda quanto à suspensão, importa destacar que o agravante pagou os valores avençados em juízo como prestação pecuniária, deixando, todavia, de comparecer ao fórum. É preciso, nesse aspecto, se atentar para a falta de orientação, de informação, e as intempéries da vida de pescador (profissão do agravante) que devem ter contribuído para os atrasos em sua apresentação. Essas questões, embora possam, em uma primeira análise, parecer estranhas à aplicação do princípio da insignificância, ganharam força a partir do momento em que a vida pregressa do acusado passou a ser considerada pelo STF.
É inequívoca a admissibilidade, por parte do Supremo Tribunal Federal, da aplicação do princípio da insignificância aos chamados crimes ambientais, conforme será demonstrado a seguir.
No caso em tela, os aspectos objetivos delineados pela própria Suprema Corte para a configuração do princípio da insignificância estão satisfeitos: a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada.
Em caso de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, ficou assentado, por unanimidade, a possibilidade de reconhecimento da atipicidade material da conduta, ou seja, da insignificância. O fato se deu em Unidade de Conservação de Proteção Integral, na qual a pesca não é permitida em nenhuma época do ano. No entanto, embora autuado pelo órgão de fiscalização ambiental, restou o denunciado absolvido, conforme consta do inteiro teor do acórdão (Fl. 06), cuja ementa estabelece:
“EMENTA: INQUÉRITO. DENÚNCIA CONTRA DEPUTADO FEDERAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM LUGAR INTERDITADO POR ÓRGÃO COMPETENTE. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. AFASTAMENTO DA PRELIMINAR DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGADA FALTA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. ACOLHIMENTO.
- Inviável a rejeição da denúncia, por alegada inépcia, quando a peça processual atende ao disposto no art. 41 do Código de Processo Penal e descreve, com o cuidado necessário, a conduta criminosa imputada a cada qual dos denunciados, explicitando, minuciosamente, os fundamentos da acusação.
- Hipótese excepcional a revelar a ausência do requisito da justa causa para a abertura da ação penal, especialmente pela mínima ofensividade da conduta do agente, pelo reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e pela inexpressividade da lesão jurídica provocada.” (Inq 3788/DF, Relatora Ministra Carmen Lúcia, Dje 01/03/2016) grifo nosso
Extrai-se do voto condutor:
“11. Assiste razão à defesa, porém, quando assevera inexistente, no caso concreto, o requisito da justa causa a propiciar o prosseguimento da ação penal, especialmente pela mínima ofensividade da conduta do agente, pela ausência de periculosidade social da ação, pelo reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e pela inexpressividade da lesão jurídica provocada.
- Apesar de amoldar-se a conduta do Denunciado à tipicidade formal e subjetiva, tenho por ausente, na espécie em exame, a tipicidade material, consistente na relevância penal da conduta e do resultado típico, pela significância da lesão produzida no bem jurídico tutelado.
(…)
- O requisito da justa causa impõe a demonstração não apenas de indícios de autoria delitiva, mas também indícios da “existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade” (TAVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5. ed. Salvador: Jus Podium, 2011. p. 149). Na espécie, não se vislumbrando qualquer dano efetivo ou potencial ao meio ambiente, é de se assentar a atipicidade material da conduta, pela completa ausência de ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal.” (Fl. 18/24) grifos nossos
As situações são próximas, pois, se no caso presente, houve emprego de petrecho não permitido; no julgado acima, o fato ocorreu em Unidade de Conservação ambiental, sendo que nas duas não houve resultado naturalístico.
Cumpre rememorar ainda que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela incidência do princípio da insignificância em caso semelhante assim ementado:
“AÇÃO PENAL. Crime ambiental. Pescador flagrado com doze camarões e rede de pesca, em desacordo com a Portaria 84/02, do IBAMA. Art. 34, parágrafo único, II, da Lei nº 9.605/98. Rei furtivae de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Crime de bagatela. Caracterização. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento” (HC nº 112.563/SC, Relator Ministro Cezar Peluso, DJe de 10/12/12).
A situação ora em análise é ainda mais singela que aquela narrada no precedente acima. No caso atual, repisa-se, nenhum animal foi retirado da água.
Foi invocado, ainda, o fato de se tratar a conduta imputada ao paciente de crime de perigo abstrato, para afastar a bagatela. Essa condição, por si só, não deve impedir a aplicação da insignificância. Condutas incapazes, ainda que potencialmente, de colocar em risco o bem jurídico protegido, não podem ser consideradas criminosas, como ensina o Ministro Cezar Peluso, no voto proferido no HC 95861[1], citando artigo de Marta Rodriguez de Assis Machado, para chamar a atenção para a “ênfase desmedida sobre a segurança antecipatória”[2], e, assim, concluir pela necessidade de um mínimo de ofensividade como fator de delimitação de condutas que mereçam reprovação penal. A presença de um pescador no mar, com seu barco, sem que nenhuma espécie tenha sido pescada, com certeza não oferece essa ofensividade mínima – principalmente se comparada ao que se vê, em tempos recentes, em termos de danos ambientais no Brasil.
Por fim, importa destacar que todos os elementos invocados no presente agravo, bem como na exordial da impetração, podem ser aferidos pela simples leitura das decisões proferidas nas instâncias anteriores. Na verdade, a discussão é jurídica, uma vez que não há controvérsia quanto aos fatos que devem ser subsumidos à norma, limitando-se a questão à possibilidade de aplicação da insignificância.
Deve, portanto, ser exercido o juízo de reconsideração ou provido o agravo para, ao final, conceder-se a ordem de habeas corpus, permitindo-se a aplicação do princípio da insignificância, com consequente absolvição do agravante, uma vez que sua conduta não foi capaz de ofender o bem jurídico protegido.
[1] HC 95861, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 02/06/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-128 DIVULG 30-06-2015 PUBLIC 01-07-2015
[2] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação das novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 129