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Reformatio in pejus e consequências indiretas

Reformatio in pejus e consequências indiretas

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

O tema reformatio in pejus pode parecer, à primeira vista, simples e isento de maiores reflexões. Entretanto, um olhar um pouco mais aprofundado demonstra que ele ultrapassa a mera questão do quantitativo de pena em si, trazendo outras nuances a serem apreciadas conforme o caso.

Um exemplo é a invocação, pelo Tribunal de apelação, de aspectos negativos contra o acusado recorrente que, em razão do acolhimento também de teses favoráveis, não torna a pena maior que a da primeira instância, mas a deixa maior do que a que seria devida.

Outro indicativo da complexidade do tema ocorre no recurso defensivo em que não há qualquer alteração ou redução na quantidade de pena fixada, mas com a imposição de circunstâncias que alteram, de alguma forma, a pena, seja pela mudança do enquadramento no tipo penal, seja pela invocação de circunstâncias judiciais antes neutras ou favoráveis.

Um caso concreto, extraído do HC 123251, julgado pela 2ª Turma do STF, demonstra de forma cristalina o que ora se afirma:

“Habeas Corpus. 2. Emendatio libelli (art. 383, CPP) em segunda instância mediante recurso exclusivo da defesa. Possibilidade, contanto que não gere reformatio in pejus, nos termos do art. 617, CPP. A pena fixada não é o único efeito que baliza a condenação, devendo ser consideradas outras circunstâncias para verificação de existência reformatio in pejus. 3. A desclassificação do art. 155, § 4º, II, para o art. 312, § 1º , ambos do Código Penal, gera reformatio in pejus, visto que, nos crimes contra a Administração Pública, a progressão de regime é condicionada à reparação do dano causado, ou à devolução do produto do ilícito (art. 33, § 4º, CP). 4. Writ denegado nos termos em que requerido, mas, de ofício, concedido habeas corpus.” (HC 123251, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-028 DIVULG 10-02-2015 PUBLIC 11-02-2015)

Em suma, a acusada havia sido condenada por furto. Em recurso exclusivo seu, o Tribunal entendeu por alterar o tipo penal de furto para peculato-furto, sem qualquer mudança na pena. Aparentemente, seria uma emendatio libelli sem maiores consequências, vez que mantida a pena imposta em primeiro grau. Ocorre que o peculato é crime praticado contra a administração pública, pelo que a ele é aplicado o disposto no artigo 33, §4º do Código Penal que impõe a reparação de dano para a progressão de regime, exigência inexistente no crime de furto. Ou seja, ainda que sem o agravamento do quantitativo de pena, a situação da acusada tornou-se mais gravosa, pois, precisando progredir de regime terá que cumprir determinação legal não imposta na condenação primeva e não questionada pelo Órgão de acusação.

Mais uma vez, repisa-se: não cabe ao Tribunal ad quem, inconformado, assumir o papel de Ministério Público, em recurso do acusado.

O mesmo se dá com a consideração de circunstância judicial como negativa contra o recorrente em recurso exclusivo seu, mesmo sem a majoração de pena. Como se sabe, as circunstâncias judiciais são sempre consideradas para a obtenção de benefícios, tais como a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.

Assim, os dois exemplos acima demonstram que a vedação da reformatio in pejus ultrapassa, em muito, a mera quantificação final da pena, surgindo até mesmo da tipificação legal imposta ao acusado recorrente. Os princípios acusatório e da ampla defesa impedem que o Tribunal de apelação altere, sem a provocação ministerial (ou do querelante ou do assistente de acusação, conforme o caso), aspectos da pena que resultem em qualquer espécie de agravamento na situação do acusado.

Não se impõe a quem recorre preocupar-se com circunstâncias que eventualmente podem ser invocadas pela Corte local, antecipando-se e temendo, ao apelar, um provimento de ofício contrário ao seu pedido.

Em apelação exclusiva da defesa, cabe ao Tribunal prover o recurso ou a ele negar provimento, mas não invocar circunstância que de qualquer modo prejudique o apelante sem qualquer provocação. Como já afirmado, o prejuízo não se limita ao total final da pena, sendo esta sua forma mais visível, mas de modo algum a única. Mudanças que impeçam ou dificultem a substituição da reprimenda, a progressão de regime, ainda que não causem um dia sequer a mais de pena, agravam a situação do recorrente pelo que dependem de irresignação ministerial para serem aplicadas.

Brasília, 16 de junho de 2015