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Pingos nos is sobre a atual situação da Defensoria Pública da União

Pingos nos is sobre a atual situação da Defensoria Pública da União

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Tenho repetido em meu twitter que a Defensoria Pública da União está há tantos dias sem Defensor Público-Geral Federal, há tantos meses sem Subdefensor-Geral e Corregedor, atualizando a contagem com a passagem do tempo.

Com mais de quatorze anos de carreira, sendo um dos remanescentes da primeira posse do primeiro concurso, não há como não ficar, para se dizer o mínimo, frustrado com o tratamento dispensado à DPU.

Atuei cinco anos na primeira instância, momento em que a carreira se instalava, começava paulatinamente a ser conhecida. A qualidade técnica dos colegas fez com que conquistássemos o respeito dos Juízes e membros do Ministério Público, tal como acontecia em alguns Estados em que a Defensoria Estadual já tinha corpo e consolidação. As pessoas desassistidas por advogado passaram a ser prontamente encaminhadas à DPU.

Durante muito tempo, fomos apenas cem membros, aproximadamente, o que fazia com que eu e um colega de trabalho brincássemos que temíamos pela nossa extinção e incorporação em outra carreira.

Felizmente isso não aconteceu. Mais cargos foram criados, oportunidade em que pedi promoção para a categoria mais elevada da carreira, pulando a intermediária, uma vez que a falta de membros mais antigos no nível do meio possibilitava esse salto (seria inútil ser promovido para a categoria intermediária em um dia e para a final no seguinte, pela falta de membros mais antigos interessados).

Atuo na categoria final, chamada especial, há mais de nove anos. Convidado por um colega que trabalhava com o então Defensor-Geral e com a aquiescência deste, fui designado, ainda em março de 2007, para atuar perante o Supremo Tribunal Federal, situação que perdura até hoje. São quase nove anos de militância perante o STF, com mais de cem sustentações orais realizadas e participações em processos importantes, como a defesa de um dos acusados da AP 470, vulgarmente chamada de Mensalão. A preliminar suscitada nas alegações finais elaboradas foi a única aceita pelo Plenário do STF, sendo o feito desmembrado em favor do assistido da DPU.

Adoro o que faço. Gostava na primeira instância, gosto agora. São tarefas e frutos distintos, mas muito satisfatórios. A Defensoria Pública tem uma vantagem ímpar em relação às demais carreiras jurídicas públicas. O resultado do trabalho, muitas vezes, aparece imediatamente, como uma internação ou um medicamento para alguém doente, a concessão de um benefício previdenciário, a liberdade para uma pessoa acusada do furto de alguma bagatela ou, ainda, a fixação de uma tese que poderá beneficiar milhares de pessoas pelo país.

Fiz questão de ressaltar meu gosto pelo meu trabalho para afastar, ou, ao menos tentar, afirmações preconceituosas de que queríamos ser membros do Ministério Público e por isso somos frustrados.

Penso que há espaço e relevância no trabalho de todos e a existência de pontos de contato entre carreiras diferentes não deve ser vista como algo negativo, mas sim como a ampliação do acesso à Justiça não só de forma individual, mas também de maneira coletiva, justamente com o escopo de se evitar uma multiplicidade de demandas individuais assemelhadas. Radicalismos e menosprezos me incomodam, vindo de quem quer que seja, contra qualquer destinatário.

Entretanto, após experimentar um crescimento visível nos últimos anos, o momento da DPU não é dos mais auspiciosos.

Como falei, estamos com os cargos que dirigem a Instituição desocupados simultaneamente. A preocupação com essa possibilidade fez com que o Conselho Superior da DPU editasse, em 2011, resolução estabelecendo que em tal circunstância o Conselheiro mais votado assumiria a administração da Instituição.

Ao contrário do que ocorre no MPF, tal solução não existe na Lei Complementar da DPU. Foi tomada para se evitar uma situação bizarra de a Instituição ficar dias e dias sem alguém que a representasse. A precariedade é escancarada.

Mais ainda, o tempo está passando e continuamos sem carreira de apoio. Os servidores que trabalham na DPU são do chamado PGPE (Plano Geral de Cargos do Poder Executivo) ou, em sua maioria, cedidos por outros órgãos, gerando luta e queda de braço entre os cedentes e nós.

Como falei, sou dos mais antigos da carreira e atuo há anos como designado do Defensor Geral para cuidar dos processos em trâmite perante o STF. Algum desavisado poderia imaginar uma bela estrutura de trabalho. Ledo engano. Meu gabinete passou, há coisa de um ano e meio atrás, por um entra-e-sai de pessoas absurdo. Houve momentos em que tinha à disposição apenas uma estagiária de começo de curso com duas semanas de casa. Isso ocorreu quando a outra estagiária e a servidora saíram quase simultaneamente, sendo que a reposição não é imediata. A servidora que tinha saído, calha dizer, era dentista, não tendo qualquer relação com o mundo do direito. Imaginem a dificuldade. A atual é fornada em química, mas, ao menos, estuda direito. A precariedade é absurda. A rotatividade dificulta completamente a orientação e o estabelecimento de padrões e rotinas de trabalho e isso durou praticamente um ano em meu gabinete. Imaginem o acúmulo de material e de questões burocráticas, postergadas em nome da área fim (mais urgente e essencial, claro). A situação não mudou tanto, mas, ao menos, o caos diminuiu, repito, só diminuiu (para mim, bem entendido, pois tenho diversos colegas em situação ainda pior).

Ocorre com frequência de Ministros cobrarem dos colegas que impetram os habeas corpus instruções bem feitas, contendo informações atualizadas (se o paciente ainda está preso, se faleceu, se cumpriu pena). Claro que temos que nos esforçar para fazer o melhor trabalho possível, mas além das dificuldades normais de contato com as diversas varas judiciais espalhadas pelo Brasil, imagine o que é fazer isso com um gabinete vazio ou sem qualquer profissional com conhecimento de direito. Reitero, isso não é exceção ou situação episódica, ao contrário.

Também a discrepância remuneratória, que sempre existiu, mas avolumou-se do final de 2014 para cá é outro entrave para a carreira. Dinheiro não é tudo, mas importa e a diferença atual é um desestímulo indiscutível para mim e os demais colegas. A remuneração inicial dos Procuradores da República e Juízes Federais é pelo menos o dobro da percebida pelos Defensores Públicos Federais. Não há vocação que não se abale.

A mais odiosa das respostas para essa constatação é: está insatisfeito, faça concurso para vir para cá. Ela indica um preconceito indisfarçável contra os mais pobres e contra a Instituição, como se dissesse: se você é qualificado, deixe a defesa dessas pessoas e mude de lado. A mudança por vocação pode ocorrer, mas meramente pelo contracheque me parece lamentável.

Fato é que a soma desses três fatores tem me deixado desanimado e descrente. Adoro o que faço. Em algumas matérias, com destaque para o Direito Penal e o Processual Penal, além da seguridade social, temos participado e levado ao STF (e aos outros Juízos), de forma técnica e qualificada, a visão e a versão de pessoas praticamente invisíveis. Contribuímos para debates fundamentais a respeito dos direitos dos mais pobres, como o fornecimento de medicamentos pelo Estado, os limites para os benefícios assistenciais, as agruras do sistema prisional abarrotado.

Mas um pouco de reconhecimento não faz mal a ninguém. Não quero privilégios, nem luxo. Quero respeito. Desejo que a Instituição não fique sem chefe indefinidamente, que os salários não sejam pequenas frações perto das outras carreiras jurídicas e que possamos contar com servidores próprios e concursados. Tudo isso para que a Defensoria Pública da União, o Defensor Público e, consequentemente, os destinatários dos serviços sejam tratados com a dignidade que merecem.

Estou ficando cansado e sem perspectivas e sinto que não sou só eu.

 

Brasília, 31 de janeiro de 2016

 

 

 

Comentários sobre a estrutura e a autonomia da DPU

Comentários sobre a estrutura e a autonomia da DPU

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Há algum tempo vinha pensando em escrever breves linhas sobre questões atinentes à estruturação e à autonomia da Defensoria Pública da União.

Estimulado pela decisão favorável proferida na Suspensão de Tutela Antecipada 800, pelo Ministro Presidente do STF, em que a DPU pedia a suspensão dos efeitos de determinação judicial para que a Instituição prestasse atendimento em determinada subseção judiciária, tecerei alguns comentários sobre o assunto. Aliás, a matéria em destaque no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, na tarde de 10 de agosto de 2015, tratava justamente do deferimento do pleito defensorial, suspendendo decisão proferida pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul em ação civil pública, o que está a demonstrar seu relevo.

Com quase quatorze anos de carreira, não posso negar que a Instituição experimentou razoável crescimento em diversos aspectos nesse período. Em outros, entretanto, a evolução foi lenta ou, a bem da verdade, quase inexistente.

Começo com um exemplo da última situação descrita acima. Até a presente data, a Defensoria não tem quadro de apoio próprio. Ao contrário do que ocorre no Poder Judiciário Federal ou no Ministério Público da União, contamos com alguns cargos do chamado Plano Geral do Poder Executivo e, principalmente, com servidores cedidos por outros órgãos públicos. Em suma, passada mais de uma década desde que tomei posse, a DPU continua sem quadro próprio, o que faz com que o rendimento do trabalho caia enormemente, apesar de reconhecer a grande ajuda de muitos dos servidores oriundos de outros entes.

Poderia enumerar incontáveis situações bizarras que a falta de quadro de apoio me fez passar, mas duas delas bastam. Após algum tempo de estabilidade no gabinete, contando com servidores cedidos que ficaram por mais de um ano, em um período de seis meses experimentei três ou quatro trocas de pessoas que mal conseguiam aprender o trabalho e pediam para sair, por razões diversas – uma delas, por exemplo, formada em odontologia, tinha dificuldade natural em fazer qualquer atividade relacionada ao Direito. Certo é que entre a chegada e a saída de um desses servidores ficou trabalhando comigo apenas uma estagiária que tinha, na oportunidade, duas semanas de casa. Como costumo brincar, ela mal sabia onde estavam os interruptores e sequer tinha alguém, além de mim, para lhe ensinar qualquer coisa. Em suma, quando eu tinha que sair para realizar atividade externa, o gabinete ficava por conta de uma pessoa não só inexperiente em termos profissionais, mas sem qualquer conhecimento da Instituição.

O crescimento do número de membros, por sua vez, é inegável, mas não na velocidade necessária para o cumprimento da missão constitucional confiada à DPU. Por isso, ações civis públicas para se colocar Defensores em todos os locais em que haja sede da Justiça Federal, mais que inócuas, são contraproducentes, vez que desestruturam o planejamento da Instituição. Aliás, durante algum tempo, ajudei o Defensor Público-Geral Federal a redigir e ajuizar os pedidos de suspensão das decisões proferidas em ACPs, lembrando-me de uma em especial que chegava ao cúmulo de impor multa pessoal ao Defensor-chefe de Manaus, caso não instalada unidade da DPU em Tabatinga/AM. Ora, o Defensor-chefe apenas administra seu núcleo, não tendo qualquer ingerência sobre os locais em que serão instaladas novas sedes, além disso, as distâncias amazônicas impedem qualquer deslocamento periódico.

A estruturação material também experimentou incremento, não se pode negar, mas está longe do ideal, principalmente em localidades menores. Em algumas faltam coisas básicas, simples, cuja aquisição se arrasta por falta de servidores e quadro de apoio adequado. Em suma, as carências se somam e se auto-alimentam.

Por todas as razões acima, as falas contra a autonomia da DPU devem também ser rechaçadas. Em primeiro lugar, porque em alguns aspectos não houve o mínimo interesse por parte do Poder Executivo em estruturar a Instituição, como já narrado.

Em seguida, mesmo no que aparentemente só importaria aos membros, refiro-me especificamente à remuneração, a questão é bem mais complexa do que parece após uma leitura rápida.

A imensa discrepância remuneratória existente entre Juízes e Membros do Ministério Público de um lado e Defensores de outro traz consequências nefastas para a carreira. Lamentavelmente, cria desrespeito por parte de alguns que veem no contracheque o indicativo único da relevância da atividade. Em seguida, faz com que muitas pessoas vocacionadas acabem saindo à procura de vencimentos melhores, esvaziando os quadros da Instituição. Outros permanecem, mas infelizes, insatisfeitos com o tratamento desrespeitoso por parte do Estado e acabam por se dedicar menos, ter menos empenho no exercício de suas funções.

Neste ponto, impende afastar argumentos lamentáveis, para se dizer o mínimo, como: quem está insatisfeito tem é que estudar para outro concurso, se não está bom saia ou na iniciativa privada é ainda pior. Ora, a comparação a ser feita é com outras carreiras jurídicas de Estado que exigem os mesmos requisitos para ingresso e exercício. O abismo remuneratório em nada se justifica. Com relação à iniciativa privada, a comparação é impossível e tal conclusão dispensa maiores digressões. Duvido sinceramente que qualquer autoridade pública, principalmente aquelas que são eleitas pelo voto popular, tivesse coragem de justificar em rede nacional de televisão que acha correto que o membro do Órgão de acusação receba mais do dobro daquele que defende os direitos dos mais frágeis – em matérias penais e extrapenais.

Em suma, não se trata apenas de “diferença” remuneratória, mas sim de um verdadeiro fosso que acaba por desvalorizar o trabalho do Defensor Público. Por fim, o título a que é paga a verba pouco importa na prática (indenizatória, cumulação, auxílio, etc.), pelo que justificativas nesse sentido servem mais para irritar que para explicar.

Por isso, as tentativas de se minorar as discrepâncias remuneratórias, muito além de significarem exclusiva defesa dos interesses dos membros, representam também a valorização da carreira em si. Não sou hipócrita a ponto de dizer que não interessa a cada Defensor ganhar bem, mas importa também a quem é por ele atendido. Valorização, no sistema capitalista, passa inequivocamente pela remuneração. Os Defensores Públicos não obtêm descontos em suas contas pela nobreza da função.

São igualmente irritantes as falas no sentido de se defender os ajustes fiscais, a contenção de gastos, as contas públicas para se justificar o tratamento dado aos Defensores. Os mesmos argumentos foram ignorados, ao que parece, no momento da aprovação e concessão de aumento nos subsídios, adicional por substituição e auxílio-moradia para Magistrados e Membros do Ministério Público. A memória seletiva não me convence.

Por todas as razões acima, a autonomia da Defensoria Pública da União deve ser mantida (sofre impugnação, aliás, através de ADI ajuizada perante o STF pela Presidente da República), consolidada e efetivada em todos os seus aspectos. Isso interessa aos Defensores, é verdade, mas também a todos os que são por eles atendidos. Desculpas e simplificações não resistem a uma análise minimamente detida.

Brasília, 11 de agosto de 2015