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Em defesa dos mais frágeis

Em defesa dos mais frágeis

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A Segunda Turma do STF negou provimento, na sessão de 05/12/2017, ao agravo interno interposto pela assistida da Defensoria Pública da União contra decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli, relator do HC 145485, que havia negado seguimento ao writ por entender que a impetração voltava-se contra decisão monocrática de Ministro de Corte Superior, pelo que não teria sido esgotada a instância antecedente.

O tema de fundo do mencionado habeas corpus é dos mais relevantes, pelo que formalidades, notadamente em se tratando de uma ação cujo objetivo é a tutela do direito de locomoção, deveriam ser deixadas em segundo plano.

A paciente tem contra si duas condenações em primeiro grau por tráfico de drogas, que totalizam 12 anos e 7 meses de reclusão em regime fechado, ambas em fase de recurso.

Discutia-se, no caso, a possibilidade de concessão de prisão domiciliar à paciente do HC em questão, que, quando da impetração, bem como da decisão singular no STF, estava grávida.

Durante o trâmite processual ela veio a dar à luz, sendo mantida, até a presente data, em estabelecimento prisional no Estado do Paraná.

Dois foram os fundamentos, pelo que entendi do julgamento, uma vez que ainda não foi publicado o acórdão, invocados pela Turma para se manter a decisão agravada: a supressão de instância e a adequação do estabelecimento em que se encontra a agravante.

O autor do presente, que acompanhou todo o trâmite do writ após sua impetração junto ao STF, feita por um colega, agravou da decisão monocrática, apresentou memorial, acompanhou a sessão e pediu destaque no julgamento. Em suma, o processo foi cuidado de perto.

A impetração no STJ não fora conhecida em razão de a matéria não ter sido apreciada pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Segundo a decisão proferida naquele Tribunal, teria havido supressão de instância.

Cumpre, todavia, tecer algumas considerações. O habeas corpus foi impetrado de forma manuscrita na Corte Superior. Intimada a Defensoria Pública da União, foi apresentada manifestação em favor da paciente em que se pediu expressamente a concessão da prisão domiciliar.

De nada adianta a aceitação de pedidos feitos de próprio punho se, mesmo diante de ilegalidades claras e da complementação técnica feita pela Defensoria, questões processuais forem invocadas para não se adentrar no mérito, principalmente em discussões de tamanha relevância.

Por outro lado, não se nega que a impetração perante o STF deu-se contra decisão singular. Todavia, sequer se trata de invocação do verbete da súmula 691 da Corte, uma vez que não se discutia indeferimento de mera liminar. A urgência na apreciação do pedido parece saltar aos olhos.

Em resumo, cuidando-se de gestante ou mãe de recém-nascido, questões processuais em uma das mais democráticas formas de acesso à Justiça deveriam ser colocadas em segundo plano, enfrentando-se o mérito.

Já no que concerne ao tema de fundo, a solução encontrada também não foi a melhor, com o devido respeito. Quando indeferido o pedido pelo Ministro Dias Toffoli, faltava uma semana para a paciente dar à luz. Ela continua recolhida. Entendeu-se, no julgamento do agravo, que o presídio onde se encontra mantém condições adequadas para mãe e bebê. Todavia, informações prestadas pelo Juízo de origem esclarecem, conforme documento extraído dos autos eletrônicos do HC 145485:

“Em diversas inspeções realizadas por este juízo junto à Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) constatei que todas as crianças possuem os cuidados necessários para seu desenvolvimento físico, psíquico e emocional dentro da creche “Cantinho Feliz”, local separado das celas aonde as mães dormem”. (trecho do ofício da lavra do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais de Curitiba/PR) grifo nosso

Em suma, as mães não podem dormir próximas a seus filhos. A presença da mãe é essencial para uma criança de tão tenra idade. As demandas dos recém-nascidos (o bebê nasceu preso) não têm hora, pelo que a simples separação do filho e da mãe durante o período noturno deveria ser considerado. A situação fica ainda mais díspar se comparada com domiciliares recentemente concedidas pelos Tribunais pátrios.

Confesso ter ficado bastante decepcionado com o desfecho. Há várias decisões concedendo recolhimento domiciliar mesmo em caso de supressão de instância. Também não faltam pessoas condenadas a penas ainda maiores que as da paciente respondendo soltas a seus processos. Não se trata de direito absoluto, é bem verdade, mas aspectos processuais e um presídio que deixa um recém-nascido longe da mãe durante a noite não me parecem motivos para afastá-lo.

Brasília, 10 de dezembro de 2017

 

 

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – IV

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – IV

 

Segue, abaixo, o primeiro tópico da manifestação apresentada no HC 143641/STF pela DPU

Brasília, 18 de agosto de 2017

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

DA REVOGAÇÃO DA PREVENTIVA OU DA CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR PARA MÃES, GESTANTES E SUAS CRIANÇAS

 

Quanto ao mérito, a impetração busca a revogação da prisão ou a concessão de prisão domiciliar para gestantes e mulheres com filhos pequenos, nos termos do disposto no artigo 318, IV e V do CPP.

O ponto de partida para a apreciação do pleito veiculado na inicial deve ser a compreensão do fim desejado pela norma em questão. A análise do artigo 318 do CPP em seu conjunto não deixa margem para dúvidas no sentido de que o objetivo da norma é proteger a criança, já nascida ou ainda no ventre da mãe. O inciso VI do mencionado artigo reforça o entendimento ao estabelecer a prisão domiciliar ao homem que for o único responsável pelo filho de até 12 (doze) anos.

No que concerne à gestante, são desnecessárias longas discussões. O ambiente completamente insalubre do cárcere brasileiro, em sua grande maioria, é danoso ao ser humano mais saudável e sem exigência de qualquer cuidado especial. Já as gestantes estão em um momento especial de suas vidas que demanda acompanhamento próximo. Tal cuidado já fica a desejar em se tratando da população carente, que sofre para conseguir atendimento médico tempestivo, sendo ainda mais desastroso em se tratando de mulheres presas.

Mas não só. Até mesmo o parco espaço físico que confina as pessoas no presidio é incompatível com o estado gravídico.

Infelizmente, apesar da situação excepcional experimentada pelas grávidas, muitas delas não só são mantidas em condições precárias, como notícias há de partos com as gestantes algemadas.

Reitera-se, a preocupação maior é com o bem-estar da criança, com o ser que virá ao mundo, com a geração futura do Brasil, com o ser humano em seu estágio mais frágil.

O mesmo cuidado repete-se em se tratando da mãe de criança pequena que demande acompanhamento e atenção. Lamentavelmente, a prisão cautelar é, no Brasil, a preferida das medidas processuais penais. Deveria ser exceção, mas está longe disso, mesmo em se tratando de crimes praticados sem violência ou grave ameaça, sendo o exemplo mais corriqueiro o das chamadas “mulas” do tráfico.

A prisão processual, muitas vezes imposta sem existir nem mesmo condenação recorrível, deveria ser utilizada com mais parcimônia e por tempo mais curto, o que, lamentavelmente não se constata na análise da prática judiciária. A situação agrava-se quando recai sobre uma mãe, deixando à mingua seus filhos, ou o que é pior, encarcerando um bebê.

Não se trata de ilação ou situação esporádica. As prisões estão repletas de mulheres acusadas de tráfico que, ao final, acabam condenadas a penas restritivas de direito, tendo cumprido longas segregações cautelares.

O dano gerado nessa criança é irreversível. A mácula, a ausência, o abandono de quem muitas vezes já não tem o pai presente são indeléveis.

São inúmeros os males causados a uma criança que experimenta o nascimento e a vivência no cárcere. Mostra-se fundamental, para a reflexão, enumerar alguns deles:

1 – adoção de crianças de mães presas à revelia destas;

2 – permanência da criança no cárcere;

3 – atraso na realização do registro civil da criança;

4 – falta de atendimento médico adequado à gestante e à criança;

5 – falta de atividades psicopedagógicas para as crianças;

6 – formação nas crianças de atitudes relacionadas ao aprisionamento, como posição de revista.

Engana-se quem pensa ser esse um problema apenas dos envolvidos. A maior vítima é a criança e a norma veio em seu socorro. Todavia, mesmo quem não se importa com a situação deve refletir sobre a consequência óbvia de qual sociedade, qual cidadão está se formando.

É ilusório acreditar que a pessoa criada no abandono e na violência não passará a vivenciar tais situações como normais.

Impende proteger a juventude, reduzir o encarceramento feminino em benefício das crianças e da própria sociedade, principalmente em sede cautelar, seja com a revogação das prisões preventivas ou com sua conversão em domiciliar.

 

Precedentes – domiciliar para gestantes e mães

São vários os julgamentos colegiados do Supremo Tribunal Federal concedendo prisão domiciliar para gestantes e mães, além de decisões monocráticas, definitivas e liminares. Cabe ler as ementas abaixo transcritas:

“Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Paciente em estágio avançado de gravidez. Pedido de substituição da prisão preventiva por domiciliar. 3. Ausência de prévia manifestação das instâncias precedentes. Dupla supressão de instância. Superação. 4. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 5. Concessão da ordem, confirmando a liminar deferida.” (HC 133177, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 17/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016)

“Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Prisão preventiva. 3. Paciente lactante. Revogação da prisão cautelar e, subsidiariamente, concessão de prisão domiciliar. Possibilidade. 4. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 5. Súmula 691. Manifesto constrangimento ilegal. Superação. 6. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 7. Ordem concedida, de ofício, confirmando a liminar previamente deferida, para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar.” (HC 134069, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 21/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016)

“Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Prisão preventiva. 3. Paciente lactante. Pleito de revogação da prisão cautelar e, subsidiariamente, de concessão da prisão domiciliar. Possibilidade. 4. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 5. Segregação cautelar mantida com base na gravidade abstrata do crime. Ausência de fundamentação idônea. Decisão contrária à jurisprudência dominante desta Corte. Constrangimento ilegal verificado. 6. Decisão monocrática do STJ. Ausência de interposição de agravo regimental. Não exaurimento da jurisdição e inobservância do princípio da colegialidade. 7. Ordem concedida de ofício, confirmando a liminar previamente deferida, para determinar a substituição da prisão preventiva domiciliar.” (HC 130152, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016)

“Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Paciente em estágio avançado de gravidez. Pedido de substituição da prisão preventiva por domiciliar. 3. Ausência de prévia manifestação das instâncias precedentes. Dupla supressão de instância. Superação. 4. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 5. Concessão da ordem, confirmando a liminar deferida.” (HC 131760, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-097 DIVULG 12-05-2016 PUBLIC 13-05-2016) 

“Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas, associação para o tráfico e corrupção de menores. Prisão preventiva. 3. Paciente gestante. Pleito de concessão da prisão domiciliar. Possibilidade. 4. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 5. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP 6. Segregação cautelar mantida com base apenas na gravidade abstrata do crime. 7. Ausência de fundamentação idônea. Decisão contrária à jurisprudência dominante desta Corte. Constrangimento ilegal configurado. 8. Súmula 691 do STF. Manifesto constrangimento ilegal. Superação. 9. Ordem concedida de ofício para substituir a prisão preventiva da paciente por prisão domiciliar.’ (HC 134104, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02/08/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 18-08-2016 PUBLIC 19-08-2016)

“Habeas corpus. 2. Tráfico ilícito de entorpecentes. Paciente em estágio avançado de gravidez. Pedido de substituição da prisão preventiva por domiciliar. 3. Ausência de prévia manifestação das instâncias precedentes. Dupla supressão de instância. Superação. 4. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 5. Concessão da ordem, confirmando a liminar deferida.” (HC 128381, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 09/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128 DIVULG 30-06-2015 PUBLIC 01-07-2015) 

Até mesmo nas extradições, em que, até a presente data, prevalece o entendimento no sentido de que a prisão é condição de procedibilidade, o STF tem abrandado o rigor de tal posicionamento para conceder prisão domiciliar como proteção à criança. Vale invocar, como exemplo do ora afirmado, a decisão prolatada na Prisão Preventiva para Extradição (PPE) 717, pela Ministra Rosa Weber:

  1. Na espécie, a Extraditanda é genitora de uma criança brasileira nata, de 2 (dois) anos de idade, nascida prematuramente, com atraso no desenvolvimento psicológico e motor e em regime de aleitamento materno, nos termos da defesa e segundo comprovado nos documentos acostados aos autos. Alega-se, ainda, que a Extraditanda, residente há mais de 5 (cinco) anos no Brasil, exerce ocupação lícita e que imensa a dificuldade de se cuidar do filho no local em que se encontra recolhida, em especial quanto ao aleitamento materno. Acresce que, após a prisão preventiva para fins de extradição, a criança perdeu peso e possui alterações comportamentais, conforme parecer médico. Nesse contexto, em juízo preliminar, entendo caracterizada, presentes os valores em jogo, em extradição instrutória, situação excepcional a afastar a razoabilidade e proporcionalidade da segregação preventiva, consideradas as sérias consequências psicológicas e físicas dela advindas a criança de dois anos.

Em suma, a matéria de fundo tem sido agitada perante o STF com frequência cada vez maior, encontrando resposta positiva da Corte, para se preservar a dignidade e a saúde das mães e, sobretudo, das crianças.

 

CONCLUSÃO

Ante o exposto, pugna a Defensoria Pública da União por sua oitiva no presente feito, endossando, pelas razões acima, os pedidos formulados na exordial no sentido da admissão do habeas corpus coletivo e da concessão da ordem quanto a seu mérito.

Requer, desde já, após admitida sua participação no writ em tela, sua intimação para todos os atos do processo, em especial para a sessão de julgamento do processo, oportunidade em que poderá ofertar memoriais e proferir sustentação oral.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Brasília, 14 de agosto de 2017.

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

Defensor Público Federal

 

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – III

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – III

 

Segue, abaixo, o primeiro tópico da manifestação apresentada no HC 143641/STF pela DPU

Brasília, 18 de agosto de 2017

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

DO CABIMENTO DO HABEAS CORPUS COLETIVO

Não se pretende, na presente, fazer longa digressão a respeito do histórico do instituto do habeas corpus no direito brasileiro. Todavia, impende trazer ao debate a chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”, desenvolvida no final do século XIX e início do século XX, sob a liderança de Ruy Barbosa.

Como se sabe, o entendimento esposado pelo célebre jurista baiano era no sentido de que o habeas corpus poderia ser utilizado de forma ampla, não se limitando a garantir a liberdade de locomoção, mas também sendo empregado para a discussão de outros tipos de ilegalidade ou abuso de poder.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal acolheu esse entendimento extensivo em uma série de habeas corpus impetrados por Ruy Barbosa, seguindo posição adotada pelo Ministro Enéas Galvão.

Todavia, passados anos de celeumas e embates entre os defensores da ampliação do espectro do instituto e aqueles que entendiam pela sua restrição a situações em que questionada a liberdade de ir e vir, posicionamento este liderado pelo Ministro do STF, Pedro Lessa, publicou-se, em setembro de 1926, emenda à Constituição de 1891, restringindo o cabimento do mencionado writ às questões atinentes à liberdade de locomoção.

A mencionada emenda constitucional de 1926, limitou o cabimento do habeas corpus, entretanto, já estava consolidado no Supremo Tribunal Federal o entendimento de ser possível a correção de ato de autoridade, desde que ilegal e ofensivo a direito líquido e certo.

Assim surge, em 1934, a figura do mandado de segurança, instituto brasileiro, certamente inspirado nas ideias de Ruy Barbosa, para tutelar outras liberdades individuais.

A gênese do mandado de segurança como um consectário da doutrina brasileira do habeas corpus, inequivocamente, aproxima os dois institutos, no que respeita à tutela de direitos que possam ser verificados de plano, sendo despicienda a dilação probatória, presente ainda situação que demande solução célere.

A narrativa acima presta-se a mostrar que as ações mandamentais, embora tutelando direitos distintos, partem de pressuposto próximo (a existência de direito documentalmente comprovável), possuem escopo semelhante (celeridade na prestação jurisdicional), atacando ilegalidades praticadas pelo poder público.

Com a Constituição da República de 1988, foi criada a figura do mandado de segurança coletivo, posteriormente regulamentado pela Lei 12.016/09, para tutelar direitos coletivos e individuais homogêneos, havendo certa controvérsia quanto aos direitos difusos, embora essa distinção muitas vezes seja feita de forma controvertida a depender do viés a partir do qual se parte (direito ou interesse).

Como já mencionado, a gênese do mandado de segurança advém do habeas corpus, pelo que as evoluções de um instituto devem ser estendidas ao outro, notadamente quando se constata que a diferença entre eles é apenas o tipo de ilegalidade combatido. É claramente possível que direitos envolvendo a liberdade de locomoção sejam também garantidos através de ações coletivas, destacadamente quando as situações impugnadas demandam angusta dilação probatória.

Outra ação constitucional também tem sido admitida como meio de se tutelar direitos coletivos, qual seja, o mandado de injunção. A Lei 13.300/2016 regulamentou o processo individual e o coletivo, estabelecendo ainda, quanto a este último, em seu artigo 12, IV, a Defensoria Pública como legitimada. Duas constatações exsurgem dessa norma recém editada: a primeira, a caminhada das ações constitucionais em direção às soluções coletivas; a segunda, o reconhecimento da representatividade da Defensoria Pública.

Além do próprio mandado de segurança e do mandado de injunção, parece inequívoco o movimento do direito brasileiro no sentido de se resolver as pendências coletivamente, evitando-se uma pletora de feitos ainda maior a abarrotar os Juízos e Tribunais. Diversos institutos criados ou reforçados em tempo recente, como os apresentados acima, confirmam o ora alegado. Além das ações mandamentais coletivas, a ampliação da legitimação para a ajuizamento de ações civis públicas, os institutos da repercussão geral, do recurso repetitivo e do incidente de resolução de demandas repetitivas demonstram nitidamente a busca pela solução multitudinária das demandas, com duas consequências essenciais para o jurisdicionado: maiores celeridade e segurança jurídica.

Se as normas utilizadas primordialmente em ações de natureza cível, recentemente editadas ou alteradas, trazem essa preocupação com a prestação da jurisdição em tempo razoável, ela deverá ser ainda maior na seara penal, em que está em jogo a liberdade do indivíduo, e mais ainda na ação eminentemente libertária, o habeas corpus, ainda mais tendo o mandado de segurança, que pode ser individual ou coletivo, inequívoco parentesco atribuível, como esclarecido acima, à doutrina brasileira do habeas corpus.

 

Preocupação com a identificação de pessoas

Um questionamento levantado por aqueles que se opõem à possibilidade de uma impetração coletiva diz respeito à individualização dos beneficiários (pacientes) da ordem concedida.

Não se discute que várias das situações que podem ser tuteladas pelo habeas corpus dependem de análises individuais incompatíveis com a forma coletiva do remédio.Todavia, tal como ocorre com as ações constitucionais coirmãs, muitos dos casos podem ser resolvidos pela forma coletiva, com amplas vantagens para o Judiciário e o jurisdicionado, como, por exemplo: a diminuição do número de demandas, a celeridade e a segurança jurídica. Tratando-se de impetração que, partindo de igual situação fática, traga apenas questão jurídica, o ajuizamento de dezenas ou centenas de habeas corpus com o mesmo tema servirá apenas para abarrotar o já sobrecarregado Poder Judiciário. Consequência direta disso será sentida no aspecto celeridade, irremediavelmente atingido. Por fim, havendo mais de um prolator de decisões que partam de situação igual, existirá ainda o risco de entendimentos discrepantes, ensejadores de injustiça e insegurança jurídica.

Não é difícil pensar em hipótese em que a solução coletiva traga benefícios mais rápidos e abrangentes. Imagine-se, por exemplo, um diretor de presídio que vede, peremptoriamente e de maneira imotivada, as saídas temporárias. Ora, todas as pessoas ali encarceradas em regime semiaberto são vítimas dessa medida enquanto ela persistir. Se na unidade em questão existirem 200 (duzentos) presos no regime semiaberto serão duas centenas de habeas corpus e, o que é pior, a cada remanejamento, outros terão que ser impetrados em favor daqueles que chegarem.

Em outros casos, a impetração coletiva só será útil para situações com pacientes já identificados, ainda que em grande número.

Em suma, a ação coletiva serve para atacar ilegalidade que pode ter atingidos diversos.

De qualquer modo, impende destacar que no habeas corpus em tela, o Eminente Ministro Relator já determinou ao DEPEN, em decisão datada de 27 de junho de 2017, a prestação de informações precisas sobre o número de mulheres que se encaixem nas condições de ilegalidade atacadas pela impetração. Diante de tais dados fornecidos pela entidade responsável pela gestão da questão penitenciária no Brasil, fica superado o receio de falta de controle e identificação precisa das pessoas beneficiadas pela concessão da ordem.

 

Precedentes – HC coletivo

O tema é ainda novo, todavia, vem sendo enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça com frequência cada vez maior.

Um desses habeas corpus, HC 118.536, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, tramita desde 2013 no STF, tendo sido indeferido o pedido liminar, mas determinado o regular prosseguimento do feito. O parecer da Douta Procuradoria Geral da República neste habeas foi pelo conhecimento da impetração e posterior concessão da ordem. Calha transcrever a ementa:

“HABEAS CORPUS. DIREITO COLETIVO. VEDAÇÃO AO BANHO DE SOL. PRESOS DETERMINADOS. INÉRCIA ESTATAL. NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL. CABIMENTO DO MANDAMUS. AFRONTA A NORMAS LEGAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, À INTEGRIDADE FÍSICA E À SAÚDE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. – Parecer pela concessão da ordem.” 

Por sua vez, no Superior Tribunal de Justiça, foi conhecido e concedido habeas corpus coletivo, sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, impetrado em favor de crianças e adolescentes contra os quais foi imposto toque de recolher. Aliás, o Ministro relator do mencionado writ na Corte Superior é um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, norma que é basilar para a compreensão, interpretação e delimitação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. 

“ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. TOQUE DE RECOLHER. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO E ABSTRATO. ILEGALIDADE.

ORDEM CONCEDIDA.

  1. Trata-se de Habeas Corpus Coletivo “em favor das crianças e adolescentes domiciliados ou que se encontrem em caráter transitório dentro dos limites da Comarca de Cajuru-SP” contra decisão liminar em idêntico remédio proferida pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
  2. Narra-se que a Juíza da Vara de Infância e Juventude de Cajuru editou a Portaria 01/2011, que criaria um “toque de recolher”, correspondente à determinação de recolhimento, nas ruas, de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis: a) após as 23 horas, b) em locais próximos a prostíbulos e pontos de vendas de drogas e c) na companhia de adultos que estejam consumindo bebidas alcoólicas. A mencionada portaria também determina o recolhimento dos menores que, mesmo acompanhados de seus pais ou responsáveis, sejam flagrados consumindo álcool ou estejam na presença de adultos que estejam usando entorpecentes.
  3. O primeiro HC, impetrado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, teve sua liminar indeferida e, posteriormente, foi rejeitado pelo mérito.
  4. Preliminarmente, “o óbice da Súmula 691 do STF resta superado se comprovada a superveniência de julgamento do mérito do habeas corpus originário e o acórdão proferido contiver fundamentação que, em contraposição ao exposto na impetração, faz suficientemente as vezes de ato coator (…)” (HC 144.104/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 2.8.2010; cfr. Ainda HC 68.706/MS, Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 17.8.2009 e HC 103.742/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 7.12.2009).
  5. No mérito, o exame dos consideranda da Portaria 01/2011 revela preocupação genérica, expressa a partir do “número de denúncias formais e informais sobre situações de risco de crianças e adolescentes pela cidade, especificamente daqueles que permanecem nas ruas durante a noite e madrugada, expostos, entre outros, ao oferecimento de drogas ilícitas, prostituição, vandalismos e à própria influência deletéria de pessoas voltadas à prática de crimes”.
  6. A despeito das legítimas preocupações da autoridade coatora com as contribuições necessárias do Poder Judiciário para a garantia de dignidade, de proteção integral e de direitos fundamentais da criança e do adolescente, é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria.
  7. A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA. “Ela contém normas de caráter geral e abstrato, a vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas” (REsp 1046350/RJ, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 24.9.2009).
  8. Habeas Corpus concedido para declarar a ilegalidade da Portaria 01/2011 da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru.” (HC 207.720/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2011, DJe 23/02/2012)

Em suma, embora se trata de tema ainda novo, a ser consolidado pelos Tribunais pátrios, parece não só plausível, mas aconselhável a utilização do habeas corpus coletivo quando a coação impugnada for praticada contra múltiplas pessoas, como uma forma de tutelar direitos individuais homogêneos.

 

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – II

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – II

 

Segue, abaixo, o primeiro tópico da manifestação apresentada no HC 143641/STF pela DPU

Brasília, 18 de agosto de 2017

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

DA PARTICIPAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

 

A participação da Defensoria Pública da União no julgamento deste habeas corpus mostra-se essencial na medida em que a decisão nele tomada terá reflexos em considerável parte da população carcerária feminina, sendo muitas dessas mulheres atendidas pela Instituição.

Mas não é esse o único motivo que justifica a admissão da DPU no feito. Além da quantidade, a experiência dos membros da carreira no trato com o tema, a vasta distribuição territorial da Defensoria, presente em todos os Estados da Federação, a atuação maciça para o grupo mais carente da sociedade, normalmente o mais atingido pelas agruras do cárcere e o contato próximo com diversas entidades de defesa dos direitos humanos dão à Instituição conhecimento técnico e prático para intervir no processo.

Aliás, são cada vez mais comuns as participações da Defensoria Pública da União como amicus curiae em ações de controle concentrado e recursos extraordinários em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal em que números, experiências e aspectos jurídicos são levados à Corte para a construção de uma decisão mais consentânea com os ditames da Justiça.

Também no Superior Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública da União tem sido chamada a intervir apresentando seus argumentos, situação que motivou, inclusive, a alteração do Regimento Interno do Tribunal, com o acréscimo do artigo 65-B[1], ocorrida em 2015, indicando o reconhecimento da relevância das achegas trazidas pelo órgão.

Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 reconheceu a importância da Defensoria Pública para dar voz ao hipossuficiente, determinando sua intimação pelo juiz, em havendo pessoas em situação de hipossuficiência econômica nas ações possessórias, nos termos do disposto no artigo 554, §1º da mencionada Lei[2].

Em suma, a Defensoria passa, cada vez mais, a exercer a função de voz dos vulneráveis, não só em casos individuais ou coletivos em que seja procurada pelas partes ou entidades, mas também provocada pelo próprio Judiciário para contribuir com sua expertise em temas a ela afetos. Importa ainda ressaltar que a hipossuficiência não se limita ao aspecto econômico, embora este seja o mais frequente e conhecido. A vulnerabilidade pode advir de questões diversas, como orientação sexual, identidade de gênero, etnia, situação migratória, religião e questões penais em que os acusados, independentemente de condição econômica, se veem em posição desfavorável e sem meios para discutir temas complexos e arraigados.

Essa missão da Defensoria Pública na atuação em favor de grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade tem sido reconhecida pela doutrina em razão das atribuições a ela outorgadas pela Constituição Federal de 1988[3].

Parece suficientemente demonstrada a relevância da participação da Defensoria Pública da União.

 

[1] Art. 65-B. O relator do recurso especial repetitivo poderá autorizar manifestação da Defensoria Pública na condição de amicus curiae.

[2] Art. 554.  A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.

1oNo caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.

 

[3] Sobre o tema Defensoria como guardiã dos vulneráveis (custos vulnerabilis):

ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017

FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. São Paulo: GEN/Forense, 2017

FILHO, Edilson Santana Gonçalves. Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos. Salvador: Juspodivm, 2016

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – I

HC coletivo e prisão domiciliar para mães e gestantes – I

 

Segue, abaixo, o primeiro tópico da manifestação apresentada no HC 143641/STF pela DPU

Brasília, 18 de agosto de 2017

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

 

BREVE SÍNTESE FÁTICA

 

Advogados integrantes do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos – CADHu impetraram habeas corpus coletivo com pedido liminar. A matéria discutida no mencionado writ tem como escopo a concessão de liminar e a revogação das prisões preventivas em face de todas as mulheres gestantes e mães de crianças, presas cautelarmente no sistema penitenciário nacional.

Em suas razões, os impetrantes apontaram como autoridade coatora os Magistrados das varas criminais estaduais, os Desembargadores dos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, os Magistrados Federais com competência criminal, os Desembargadores Tribunais Regionais Federais e os Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Como ato de ilegalidade foi apontada a manutenção das prisões preventivas de mulheres gestantes, puérperas ou mães de crianças com até 12 anos, bem como dos próprios infantes, recolhidos em péssimas condições de detenção.

Foi determinada a oitiva da Procuradoria Geral da República, que se manifestou pelo não conhecimento do pedido.

O Ministro Relator fez expedir ainda ofício ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) para que este preste informações precisas e detalhadas sobre as mulheres presas preventivamente, gestantes ou com filhos e em quais condições. No mesmo despacho, intimou o Defensor Público-Geral Federal para que este se manifeste quanto ao interesse em atuar no feito.

As Defensorias Públicas Estaduais do Paraná e do Ceará pediram sua admissão como assistentes, sendo nessa condição incluídas no processo.

Há duas questões de relevo que calham ser enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal no presente writ, ambas com reflexos sensíveis na preservação dos direitos individuais dos cidadãos, seja pela facilidade com que permitirão o acesso à prestação jurisdicional, seja pela interpretação que se dará à restrição ao encarceramento feminino.

O primeiro tema diz respeito à possibilidade de impetração de habeas corpus coletivo. O segundo, ao reconhecimento do direito que assiste às mães de crianças sob sua responsabilidade ou gestantes de não serem recolhidas à prisão cautelarmente.

Inicialmente, são tecidas considerações acerca da participação da Defensoria Pública da União no presente feito; em seguida, passa-se a enfrentar os dois aspectos acima mencionados, destacadamente.