Dosimetria no tráfico e quantidade e qualidade das drogas
Gustavo de Almeida Ribeiro
Há uma questão ainda pouco enfrentada pelo STF, ao menos que seja de meu conhecimento, no sentido de ser ou não possível a cisão da quantidade e da qualidade de drogas na fixação da pena no crime de tráfico em fases distintas da dosimetria.
Em síntese, pode a quantidade ser usada em uma fase (pena-base, por exemplo) e a qualidade em outra (fração da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei 11343/06, p. ex.), ou ambas devem ser consideradas simultaneamente uma vez apenas?
Entendo que as duas deveriam ser analisadas em uma só fase, evitando-se o incremento desproporcional na pena, ainda mais considerando-se que as compreensões do que é grande quantia ou, ainda, sobre a qualidade, variam de acordo com os julgadores. A aplicação em etapas distintas causa majoração exagerada da pena, ofendendo a proporcionalidade.
Transcreverei abaixo, os trechos de duas decisões monocráticas em sentidos opostos de Ministros do STF pertencentes à mesma Turma, o que reforça minha crítica ao excesso de julgamentos singulares, aliás.
A ordem foi concedida pelo Ministro Celso de Mello no HC 141350, nos termos a seguir:
“O art. 42 da Lei de Drogas dispõe que serão considerados, em caráter preponderante, na operação de dosimetria penal, três ordens de fatores: (1) natureza e quantidade da substância ou do produto; (2) a personalidade; e (3) a conduta social do agente.
Vê-se desse conjunto de vetores que cada qual se apresenta de modo autônomo, sendo incindível, por isso mesmo, para os fins e efeitos a que se refere a norma legal mencionada, o fator “natureza e quantidade da substância ou do produto”, a significar que tais elementos (natureza e quantidade), por revelarem-se indecomponíveis, não deverão receber abordagem individualizada, sob pena de ofensa à vedação fundada no postulado “non bis in idem”.
Na realidade, não cabe utilizar, separadamente, nas fases distintas em que se divide o procedimento de dosimetria penal, a natureza da droga na definição da pena-base, para, em momento posterior, considerar-se, de modo isolado, a quantidade dessa mesma droga apreendida.
Disso resulta, portanto, que a natureza e a quantidade da droga apreendida, por constituírem vetor indissociável, devem ser consideradas globalmente, “in solidum”, seja na primeira etapa, seja no terceiro momento, do método trifásico em que se desenvolve a operação de dosimetria da pena.
(…)
Cabe enfatizar, por relevante, que essa orientação jurisprudencial tem destacado que a quantidade e a natureza do entorpecente encontrado em poder do agente constituem, na operação de dosimetria da pena, circunstância única, conforme se observa do seguinte fragmento constante da ementa do julgamento acima mencionado (HC 112.776/MS), realizado pelo Plenário desta Corte” (HC 141350, Relator Min. Celso de Mello, DJe 14/02/2018)
Por sua vez, ao apreciar o HC 148333, o Ministro Dias Toffoli denegou a ordem, adotando o entendimento abaixo reproduzido:
“Pelo que há no julgado proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, não se vislumbra ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia que justifique a concessão da ordem. Pelo contrário, a decisão em questão encontra-se suficientemente fundamentada, estando justificado o convencimento formado.
Ao contrário do pretende fazer crer a defesa, somente opera-se o bis in idem quando o juízo sentenciante considera natureza e a quantidade de droga simultaneamente na primeira e na terceira fase de individualização da reprimenda, o que não é o caso.
Com efeito, como bem conclui o Ministro Joel Ilan Paciornik em seu voto,
“a natureza da droga foi utilizada para exasperar a pena-base, nos termos do art. 42 da Lei n. 11.343/2006, enquanto a quantidade de droga foi utilizada para afastar aplicação do grau máximo de redução do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06, razão pela qual não houve ocorrência de bis in idem”.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, portanto, é consentâneo com a jurisprudência que o Supremo Tribunal firmou na matéria. Confira-se:
“Configura ilegítimo bis in idem considerar a natureza e a quantidade da substância ou do produto para fixar a pena base (primeira etapa) e, simultaneamente, para a escolha da fração de redução a ser imposta na terceira etapa da dosimetria (§ 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006). Todavia, nada impede que essa circunstância seja considerada para incidir, alternativamente, na primeira etapa (pena-base) ou na terceira (fração de redução). Essa opção permitirá ao juiz aplicar mais adequadamente o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF) em cada caso concreto” (HC nº 112.776/MS, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 30/10/14).” (HC 148333, Relator Min. Dias Toffoli, DJe 29/09/2017)
Uma consideração importante quanto à última decisão destacada acima: os precedentes do STF permitiram a aplicação da quantidade e da qualidade da droga na primeira ou na terceira fase da dosimetria alternativamente e não sua cisão para a utilização de cada uma em etapa distinta.
A decisão monocrática no HC 148333 foi impugnada por agravo interno ainda não julgado.
Como mencionado acima, infelizmente, mesmo temas inéditos têm sido apreciados em decisões monocráticas, o que faz com que, muitas vezes, matérias com aspecto apenas jurídico, acabem tendo solução diferente.
Aguardemos o julgamento do agravo e a consolidação do assunto.
Belo Horizonte, 29 de abril de 2018