Arquivo da tag: hediondo

Proposta de Súmula Vinculante 125 – Tráfico e hediondez

Proposta de Súmula Vinculante 125 – Tráfico e hediondez

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Segue, abaixo, a petição inicial da Proposta de Súmula Vinculante 125, apresentada pela Defensoria Pública da União, que pede a edição, pelo Supremo Tribunal Federal, de enunciado consentâneo com o entendimento firmado no HC 118.533, julgado pelo Plenário do STF, afastando a hediondez do chamado tráfico de drogas privilegiado.

A inicial foi ajuizada em 31/01/2017, assinada pelo Defensor Público-Geral Federal e por mim.

Brasília, 1º de fevereiro de 2017

 

EXCELENTÍSSIMA SENHORA PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – MINISTRA CÁRMEN LÚCIA

 

 

O DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL, no uso da atribuição a ele conferida pelo artigo 3º, VI, da Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, regulamentadora do artigo 103-A da Constituição Federal de 1988, vem, respeitosamente, à presença de V. Exa., propor a edição de SÚMULA VINCULANTE, versando sobre o tema detalhado a seguir.

O Supremo Tribunal Federal pacificou sua jurisprudência no sentido de que o chamado tráfico de drogas privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/2006) não tem natureza de crime hediondo. A decisão paradigma foi tomada pelo Plenário da Suprema Corte ao apreciar habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União, tombado sob o número 118.533. Calha colacionar a ementa do julgado:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos. 2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa. 3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90. 4. Ordem concedida.” (HC 118533, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016) grifo nosso

Como se verifica, restou afastado o caráter de hediondez da conduta do pequeno traficante ou traficante episódico, que preencha, segundo análise judicial, os 4 (quatro) requisitos cumulativos estipulados na Lei 11.343/2006: ser primário, de bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas, nem integrar organização criminosa.

A votação foi tomada por larga maioria, com 8 (oito) votos pela concessão da ordem contra 3 (três) por sua denegação, quórum, aliás, exigido para a aprovação de súmula vinculante, nos termos do disposto no artigo 103-A da Constituição Federal de 1988 e no artigo 2º, §3º, da Lei 11.417/2006.

A posição esposada pelo Colegiado Maior foi repetida em julgado oriundo da 1ª Turma, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso, conforme pode ser constatado abaixo:

“EMENTA: DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTROVÉRSIA DECIDIDA COM BASE NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. 1. Para chegar a conclusão diversa do acórdão recorrido, necessária seria a análise da legislação infraconstitucional pertinente, procedimento inviável em recurso extraordinário. Precedentes. 2. O Supremo Tribunal Federal afastou a natureza de crime hediondo ao tráfico ilícito de entorpecentes, na modalidade privilegiado (HC 118.533, Relª. Minª. Cármen Lúcia). 3. Agravo a que se nega provimento.” (RE 937651 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2016, DJe-208 DIVULG 28-09-2016 PUBLIC 29-09-2016) grifo nosso

Com a sedimentação do entendimento, os Eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal passaram a decidir e a aplicar o precedente emanado do Plenário de maneira singular. As diversas decisões monocráticas, parcialmente transcritas abaixo, confirmam o alegado:

HC 138.817, Min. Edson Fachin, DJe 19/12/2016:

“Destarte, com base no art. 192 do RISTF, não conheço da impetração, mas concedo a ordem de ofício para determinar ao Juízo da Execução que analise o pedido de progressão de regime, afastada hediondez equiparada quanto à condenação de tráfico de drogas com aplicação da minorante prevista no art. 33, §4°, da Lei 11.343/06.” 

HC 119.706, Min. Luiz Fux, DJe 02/12/2016:

“Esta Corte, no julgamento do HC 118.533, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 19/9/2016, pacificou o entendimento quanto à classificação jurídica do chamado “tráfico privilegiado”, cujas penas podem ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o réu seja primário, tenha bons antecedentes e não se dedique a atividade criminosa e nem integre organização criminosa, conforme preceitua o artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006.”

Rcl 25.694, Min. Gilmar Mendes, DJe 22/11/2016:

“Ante o exposto, com fundamento no artigo 161, parágrafo único, do RISTF, nego seguimento à presente reclamação. Mas concedo habeas corpus de ofício (art. 654, § 2º, do CPP), para determinar à autoridade reclamada que proceda à retificação da Guia de Execução Penal da apenada SHIRLEI ELIENAI MENDES CORREA (PEC 129.555-1, eDOC 5, p. 9-10), observando, portanto, a orientação fixada no HC 118.533/MS, no sentido de que ao condenado por tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não se aplicam os regimes mais severos previstos no art. 5º, XLIII, da CF (equiparação a crime hediondo), no art. 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 (livramento condicional) e no art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990 (progressão de regime).” 

HC 135.568 AgR, Min. Teori Zavascki, DJe 08/11/2016:

“4. No particular, o Superior Tribunal de Justiça sinalou que “A incidência da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não retira o caráter hediondo do delito de tráfico”. Como bem se vê, a decisão está em pleno desacordo com entendimento consagrado recentemente pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento do HC 118.533 (Rel. Min. Cármen Lúcia), que, ao final, afastou o caráter hediondo do tráfico privilegiado de drogas. 5. Ante o exposto, reconsidero a decisão agravada e concedo a ordem de habeas corpus para determinar ao Juízo de origem que não considere a natureza hedionda do delito de tráfico privilegiado (ação 125.08.004489-5, 2ª Vara da Comarca de Itapema/SC).”

Rcl 24.825 AgR, Min. Roberto Barroso, DJe 10/10/2016:

“10. No entanto, no presente caso, verifico que, caso fosse seguido o entendimento desta Corte no HC 118.533, o agravante já faria jus ao benefício do livramento condicional. Dessa forma e considerando a solução adotada por mim nas Rcl 24.935 e 24.936 , a desconsideração da hediondez do crime praticado pela autoridade reclamada configura, a meu ver, ilegalidade flagrante capaz de ensejar a concessão de habeas corpus de ofício. 11. Diante do exposto, concedo a ordem de ofício para determinar à autoridade reclamada que desconsidere a hediondez do crime do art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006 praticado pelo agravante.”

HC 136.762, Min. Ricardo Lewandowski, DJe 11/10/2016:

“Ressalto que há de ser observado, para solução do caso em exame, o que decidido por ocasião do julgamento do HC 118.533/MS.”

As consequências do novo entendimento esposado pelo STF, a partir do julgamento do HC 118.533, foram observadas pelo Eminente Ministro Gilmar Mendes, ao acompanhar a posição da Ministra relatora do writ, em seu voto-vista:

“Além do regime constitucional, há previsões legais que dão ao condenado por tráfico de drogas sanções mais severas do que as comuns. Tenho que ao tráfico privilegiado, tampouco, essas disposições se aplicam. 

No que se refere ao livramento condicional, o parágrafo único do já mencionado art. 44 da Lei 11.343/06 é expresso ao estabelecer que o regime mais severo é aplicável aos crimes mencionados em seu caput: 

“Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.” 

Relembre-se que o § 4º do art. 33 não é mencionado no caput do dispositivo. Logo, a regra mais gravosa quanto ao livramento condicional não se aplica. 

E, no que tange à progressão de regime, o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90 estabelece um regramento mais rigoroso do que o ordinário, aplicável ao tráfico de drogas: 

“Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

§2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.” 

Seguindo a linha aqui defendida, por tráfico de drogas deve ser entendida a conduta que se amolda ao art. 5º, XLIII, da CF. Não é o caso do tráfico privilegiado. Portanto, a regra mais gravosa à progressão de regime de cumprimento de pena não se aplica. 

Ante o exposto, peço vênia à divergência e acompanho a Relatora, para conceder a ordem, assentando que aos incursos no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06 não se aplicam os regimes mais severos previstos no art. 5º, XLIII, da CF (equiparação a crime hediondo), no art. 44, parágrafo único, da Lei 11.343/06 (livramento condicional) e no art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90 (progressão de regime).” grifos nossos

Portanto, estão preenchidos os requisitos exigidos para a tramitação e aprovação de súmula de caráter vinculante pela Corte, o que resultará na maior celeridade em favor do condenado na obtenção de benefícios, bem como na diminuição dos feitos versando sobre o tema.

Propõe, como sugestão de redação do enunciado a ser adotado pela Corte Suprema, o que segue:

“O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006) não configura crime hediondo, não sendo aplicáveis a ele os parâmetros mais rigorosos previstos no artigo 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 e da Lei 8.072/1990.”

Assim, requer seja apreciada e aprovada a proposta apresentada, com a edição de súmula vinculante.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Brasília-DF, 27 de janeiro de 2017

 

Carlos Eduardo Barbosa Paz

Defensor Público-Geral Federal

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

Defensor Público Federal de Categoria Especial

 

Sobre temas discutidos no twitter (execução penal e tráfico de drogas)

Sobre temas discutidos no twitter (execução penal e tráfico de drogas)

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Nem sempre é fácil explicar as coisas nos limitados caracteres do twitter, mesmo usando o recurso de mandar vários em seguida.

Hoje, participei de um questionamento e fui perguntando em outro, sobre dois temas envolvendo direito penal.

Respondo aqui brevemente.

 

Execução penal, progressão e o Informativo 832 do STF

O Informativo 832 do STF noticiou o julgamento de dois agravos em 2 execuções penais oriundas da ação penal 470, o famoso “mensalão”.

Alguns cuidados devem ser tomados por quem estuda esses precedentes.

Em primeiro lugar, alguns dos crimes imputados aos acusados na citada ação, ocorreram antes da vigência da Lei 10.763/03 que alterou tanto o artigo 33 do CP, a ele acrescendo o §4º, impondo a reparação do dano nos crimes contra a administração pública para a progressão de regime, quanto o preceito secundário dos crimes de corrupção passiva e ativa. Por outro lado, outras condutas já foram posteriores, aplicando-se a elas a novel redação do Código Penal.

Em seguida, pelo que sei, nem todas as acusações foram por crimes contra a administração pública, de forma a incidir o §4º do artigo 33 do CP àqueles praticados após a Lei 10.763/03. Houve acusações sobre as mais variadas condutas.

E, segundo entendo, a exigência do STF, além da reparação do dano, foi o pagamento da multa, ainda que parcelada, ou a demonstração da impossibilidade de fazê-lo. Multa e reparação do dano não se confundem. A leitura do acórdão do EP 12 Prog Reg-AgR parece deixar isso bem claro, ao dizer que a multa pode ser dispensada em caso de falta de condição, a reparação do dano, não:

“25. A exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. Aqui, diferentemente do que assentei em relação ao crime de peculato no precedente já referido (EP 22-AgR, caso João Paulo Cunha) – em que a restituição do dinheiro desviado se mostrou imperativa para a obtenção do benefício –, é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal (“o juiz pode permitir que o pagamento se realize em parcelas mensais”). (EP 22 AgR, Relator Ministro Roberto Barroso, Pleno, julgado em 17/12/2014)

Assim, pelo que entendi, a discussão ocorrida na EP 8 Prog Reg-AgR, noticiada no Informativo 832/STF, foi sobre a necessidade do pagamento de multa para a progressão de regime, não versando sobre reparação do dano.

 

Tráfico, quantidade de droga e hediondez

Esse tema acaba sendo resolvido caso a caso, mas algumas balizas podem ser fixadas, segundo o entendimento prevalecente do STF.

O tráfico privilegiado não é hediondo (aquele em que incide a minorante do artigo 33, §4º da Lei 11.343/06). O HC 118.533, julgado pelo Plenário do STF, continua a ser o paradigma quanto a isso.

O processo escolhido (HC 118.533) e levado ao Pleno para a discussão da hediondez quase nos fez perder a tese em decorrência da quantidade de droga transportada pelos pacientes. Todavia, o que verdadeiramente importava no caso é que as instâncias ordinárias já tinham reconhecido a aplicação da causa de redução de pena para o chamado pequeno traficante. Ou seja, a discussão não era mais essa e sim se, reconhecida essa condição, poderia ser afastada a hediondez da conduta.

Na maioria das vezes, a aplicação ou não da minorante deve ser decidida pelas instâncias ordinárias, por demandar, segundo o STF, revolvimento fático-probatório.

Há situações excepcionais, contudo. Por exemplo, o mero afastamento da redutora pela condição de mula do acusado, sem qualquer indício de habitualidade delitiva.

Em resumo, aplicada a redução de pena do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, o tráfico não será hediondo, esse era o cerne do HC 118.533.

A mera quantidade de droga não determina que a redutora será ou não afastada. Todavia, a depender da quantia, ela pode ser um indicativo de habitualidade (nem sempre, por óbvio).

Brasília, 30 de outubro de 2016

 

 

 

 

 

 

 

Hediondez e tráfico privilegiado – primeiras decisões do STF

Hediondez e tráfico privilegiado – primeiras decisões do STF

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

O acórdão do HC 118533, impetrado pela DPU, julgado pelo Plenário do STF, afastando a hediondez do tráfico privilegiado, ainda não foi publicado.

Assim, para ajudar no estudo do tema, destaco duas decisões monocráticas prolatadas pelo Ministro Gilmar Mendes nos HCs 116128 e 116910 das quais fui intimado recentemente.

Interessante observar que o Ministro cita trecho do voto-vista proferido por ele no julgamento do HC 118533, fundamental para a virada que ocorreu no placar do julgamento, favorável à tese defensiva.

Brasília, 2 de agosto de 2016

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4341312

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4373072

 

Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

Tráfico privilegiado e hediondez – após a vitória

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já escrevi uns dois textos tratando da discussão ocorrida no STF a respeito da hediondez ou não do tráfico privilegiado enquanto o assunto ainda pendia de conclusão.

Encerrada a apreciação do HC 118533, impetrado pela Defensoria Pública da União perante a Suprema Corte, com o acolhimento da tese sustentada pela Instituição, qual seja, a de que o tráfico de drogas chamado privilegiado não pode ser equiparado a hediondo, mais que aprofundadas digressões jurídicas, cabe esclarecer questões simples, muitas vezes ignoradas não só por leigos, mas por quem não milita na seara penal.

Li algumas afirmações bastante exageradas, para se dizer o mínimo, muitas vezes capazes de enganar os mais desavisados.

Inicialmente calha explicar o que se define como “tráfico privilegiado”. A Lei 11.343/06, chamada de Lei de Drogas, estabeleceu, em seu artigo 33, §4º, a redução da pena para o acusado de tráfico que preencher, simultaneamente, 4 requisitos, a saber: ser primário, ter bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e não integrar organização criminosa. Impende reiterar, todas as condições devem estar presentes, bastando a ausência de uma delas para se afastar o chamado tráfico privilegiado.

Assim, importa dizer que a decisão tomada pelo STF só é aplicável a essas pessoas, não atingindo àquelas que não preencham os requisitos acima enumerados. Portanto, indivíduo que já tenha condenação, que seja acusado de integrar organização criminosa, que tenha indicação de que pratique crimes com frequência não será beneficiado pelo entendimento firmado, já que não será considerado traficante eventual.

O STF não liberou o tráfico, não reduziu penas, não regulamentou a profissão de traficante. As consequências da decisão serão sentidas por quem já foi condenado, na fase de execução penal. Os prazos para a progressão de regime e livramento condicional passam a ser mais reduzidos, como nos crimes comuns, permitindo-se, ainda, a concessão do indulto para os acusados que preencham os requisitos. Apenas foi reconhecida a distinção entre o traficante usual e o eventual, o grande traficante e o transportador (mula).

Aliás, uma das principais objeções de quem discorda da posição adotada está na situação das chamadas mulas, ou seja, aquelas pessoas quase que descartáveis (na visão de quem as explora, claro) contratadas pelas organizações criminosas para transportar a droga. Segundo os detratores da posição escolhida pelo STF, ela beneficiaria a arregimentação dessas mulas. Em primeiro lugar, aquele que se envolver regularmente com o tráfico não será considerado traficante eventual, mesmo que não tenha sido preso anteriormente. A Justiça Penal tem experiência suficiente para extrair dos elementos de prova carreados ao processo a condição do acusado. Por exemplo, pessoa que se declara pobre mas tem em seu passaporte diversos carimbos de entrada em vários países demonstra que alguém patrocina suas viagens, certamente com objetivos pouco nobres. Por outro lado, indivíduo que, por uma única vez, aceitar ou até mesmo for pressionado a transportar droga para uma organização de forma eventual e, sem nela ter qualquer poder de decisão, pode ser beneficiada pela redutora sem qualquer dificuldade.

Parece-me bastante inocente acreditar que a tese firmada pelo STF vai dificultar ou facilitar o trabalho dos traficantes profissionais que arregimentam as chamadas mulas. Seja pressionando, seja oferecendo dinheiro a quem se encontra em situação econômica precária ao extremo, as consequências da consideração do tráfico privilegiado sequer são sopesadas por essas pessoas. É impensável que o pequeno traficante fique ponderando que, não sendo mais crime hediondo, terá direito ao indulto, por exemplo. O mundo real passa bem longe dessas divagações.

Feitas as observações iniciais, é preciso indicar as vantagens da decisão proferida pelo STF.

Em primeiro lugar, ela reduz o encarceramento excessivo de pessoas que tenham praticado condutas menos gravosas e que não tenham outras ocorrências em suas fichas. São reiteradas as notícias das condições da maioria dos presídios brasileiros.

Ao contrário de que possa parecer em uma análise açodada, a prisão excessiva de mulas eventuais ou daqueles que tenham praticado o tráfico para sustentar o próprio vício a ninguém aproveita.

Nem ao próprio condenado, claro, sendo dispensáveis maiores explicações, mas também à sociedade como um todo. Como já esclarecido acima, para que uma pessoa seja condenada pelo tráfico privilegiado, ela tem que preencher 4 requisitos concomitantes. Assim, se for reincidente, contumaz, se participar de grupos criminosos não será acolhida pelo benefício. Logo, o tratamento mais generoso só ocorre para aqueles que não estejam envolvidos de forma plena com o crime. Essas pessoas, mesmo que merecedoras de pena, devem receber tratamento mais brando, inclusive com a possibilidade de indulto e de progressão de regime mais célere.

Nesse ponto, é preciso ainda fazer outra observação. A política de combate às drogas não parece estar sendo exitosa, pelo que se observa nos jornais diários. Não se tem a ilusão de que a decisão do STF irá melhorá-la sensivelmente, mas, ao menos, trará maior isonomia ao tratar o pequeno traficante de forma distinta, buscando evitar, dentro do possível, a perda da pessoa para o mundo da criminalidade profissional.

As interpretações não podem conduzir à desproporção flagrante. Interessante observar que o homicídio simples, no qual é ceifada a vida de uma pessoa e tem pena mínima de 6 anos, não é crime hediondo. É razoável considerar-se o tráfico privilegiado, cuja pena pode chegar a 1 ano e 8 meses, cometido sem violência ou grave ameaça, como crime hediondo? Muitas vezes fico com a impressão de que o rigor contra os pequenos traficantes advém da frustração por não se conseguir encarcerar os grandes.

O afastamento da hediondez no tráfico privilegiado pelo STF pode ter ainda forte influência no abrandamento do crescente encarceramento feminino. Pesquisas indicam que o tráfico de drogas é a principal causa de prisão de mulheres, pelo que as mudanças nos prazos para os benefícios na execução penal podem reduzir o tempo de recolhimento daquelas que tenham praticado a conduta de maneira eventual. As famílias e a sociedade brasileira agradecem. Repisa-se, a reiteração delitiva afasta a aplicação do quanto decidido no HC 118533.

Em suma, endosso a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, respeitando sempre as opiniões em contrário. Quis tecer os esclarecimentos acima apenas para que as pessoas saibam o que foi discutido e quais as consequências do julgamento do habeas corpus já mencionado. Penso que a isonomia prevaleceu.

Brasília, 27 de junho de 2016

 

 

 

 

 

Tráfico privilegiado e crime hediondo

Tráfico privilegiado e crime hediondo

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Ontem, 1º/06/2016, teve prosseguimento, no Plenário do STF, um julgamento muito importante para nossa atuação criminal, que terá, a depender do resultado, efeitos imediatos para os assistidos da Defensoria Pública.

Refiro-me ao HC 118533, em que se questiona a hediondez do chamado tráfico privilegiado.

Até a sessão de ontem estava 4 votos a 2 pela denegação da ordem, tendo sido o julgamento interrompido por pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes.

O Ministro Gilmar Mendes apresentou voto-vista concedendo a ordem. O julgamento prosseguiu e chegou a ficar 6 votos a 3 pela denegação.

Nisso, o Ministro Edson Fachin resolveu repensar seu voto pela denegação, pedindo vista. Outros Ministros, após ele se manifestar, endossaram que também pretendem refletir sobre a questão, pelo que ficamos com a impressão que temos boas chances de virar o resultado.

Foi fantástico. O afastamento da hediondez no tráfico privilegiado interfere na possibilidade de indulto, nos lapsos para progressão e livramento condicional e, destacadamente, no crescente encarceramento feminino.

Tomara tenhamos êxito, será mais uma vitória marcante para a DPU.

Segue, abaixo, a notícia extraída do site do STF.

 

 

“Quarta-feira, 01 de junho de 2016

Suspenso julgamento sobre natureza hedionda do crime de tráfico privilegiado

Pedido de vista do ministro Edson Fachin suspendeu o julgamento de Habeas Corpus (HC 118533) por meio do qual o Supremo Tribunal Federal (STF) discute se o chamado tráfico privilegiado, previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006, deve ser considerado crime de natureza hedionda. Na sessão desta quarta-feira (1º), votaram os ministros Gilmar Mendes, que se manifestou por afastar o caráter de hediondez dos delitos em questão, e os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, que reconheceram como hediondo o crime de tráfico privilegiado.

O tráfico privilegiado prevê que as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

No caso concreto, Ricardo Evangelista Vieira de Souza e Robinson Roberto Ortega foram condenados a 7 anos e 1 mês de reclusão pelo juízo da Comarca de Nova Andradina (MS). Por meio de recurso, o Ministério Público conseguiu ver reconhecida, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a natureza hedionda dos delitos praticados pelos réus. Contra essa decisão foi ajuizado, no STF, o HC em julgamento.

O caso começou a ser julgado pelo Plenáruo em 24 de junho do ano passado, quando a relatora, ministra Cármen Lúcia, votou no sentido de conceder o HC. Para ela, o tráfico privilegiado de entorpecentes não se harmoniza com a qualificação de hediondez do tráfico de entorpecentes, definido no caput e parágrafo 1º do artigo 33 da norma. Ela foi acompanhada pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Naquela ocasião, o ministro Fachin chegou a se pronunciar pelo indeferimento do pedido, ao argumento de que a causa de diminuição de pena, prevista na Lei 11.343/2006, “não parece incompatível com a manutenção do caráter hediondo do crime”. Acompanharam esse entendimento os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux. O julgamento foi interrompido, então, por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Ao se manifestar na sessão desta quarta, o ministro Gilmar Mendes considerou que a Constituição Federal deu ao legislador espaço para retirar do âmbito dos crimes chamados hediondos algumas condutas de transação ilícita com drogas. Para ele, há casos em que não se pode fugir à hediondez, principalmente quando há habitualidade no delito. O caráter isolado do delito, a inexistência de crimes para além de uma oportunidade, por sua vez, salientou o ministro, autorizaria o afastamento da natureza hedionda do crime.

Já o ministro Dias Toffoli decidiu acompanhar a divergência aberta pelo ministro Fachin. O ministro citou, inicialmente, que no caso concreto os réus foram pegos com 772 kg de droga, em um caminhão escoltado por batedores, um indicativo de que estariam atuando para organização criminosa.

Ao votar pelo indeferimento do HC, o ministro lembrou que, apesar de ser a primeira vez que o Plenário do STF analisa o tema, as Turmas do STF têm assentado caráter da hediondez do tráfico privilegiado.

O ministro Marco Aurélio concordou com o ministro Toffoli. Para ele, o reconhecimento da hediondez foi uma opção normativa, pelo legislador, que partiu da premissa de que tráfico é um crime causador de muitos delitos, para chegar a um rigor maior quanto ao tráfico de entorpecentes.

Crimes hediondos

Além de serem inafiançáveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto, os crimes hediondos, previstos na Lei 8.072/1990, devem ter penas cumpridas inicialmente em regime fechado, e a progressão de regime só pode acontecer após o cumprimento de dois quintos da pena, se o réu for primário, e de três quintos, se for reincidente.

Dados estatísticos

O presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, trouxe ao debate dados estatísticos relativos aos resultados já alcançados a partir da implantação das audiências de custódia, mas que, nas palavras do presidente, ainda se mostram insuficientes para resolver o problema do sistema carcerário brasileiro. Mantida a proporção e o ritmo do encarceramento que temos hoje no país, disse o presidente, dentro de poucos anos alcançaremos o número de um milhão de presos. Para Lewandowski, é preciso se chegar a uma solução de natureza de política criminal. Nesse sentido, o ministro salientou que uma decisão voltada a conceder o HC no caso em julgamento, reconhecendo a não hediondez do tráfico privilegiado, levaria à soltura de 45% das mulheres presas.

Vista

Diante da complexidade do tema e dos argumentos levantados no debates, o ministro Edson Fachin, que havia se manifestado pelo indeferimento do HC abrindo a divergência, pediu vista dos autos para uma melhor análise do caso.”

As consequências da hediondez

As consequências da hediondez

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Muitas vezes anoto inúmeros temas sobre os quais gostaria de escrever de forma mais detalhada, completa, no entanto, a falta de tempo e o excesso de trabalho fazem com que eu acabe não tendo como tratar do assunto no momento adequado.

Falarei brevemente sobre o julgamento que deve ser terminado no Plenário do STF, quarta-feira próxima, dia 1º de junho de 2016, em que se discute a suposta hediondez do tráfico privilegiado. O tema será analisado no HC 118533, impetrado pela Defensoria Pública da União, cuja apreciação foi iniciada em 24 de junho de 2015. Até agora foram proferidos 6 votos, 4 pela denegação e 2 pela concessão da ordem, sendo a votação interrompida por pedido de vista formulado pelo Ministro Gilmar Mendes.

O que se convencionou chamar de tráfico privilegiado é aquele que preenche os 4 requisitos fixados na Lei 11.343/06, cumulativamente: ser praticado por acusado primário, com bons antecedentes, que não se dedique às atividades criminosas e não integre organização criminosa. A coexistência desses requisitos permite a redução da pena de 1/6 a 2/3.

Em suma, uma pessoa condenada à pena mínima estabelecida para o tráfico (5 anos) e que, preenchendo as exigências acima, fixadas no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, receba a redução em seu grau máximo, sofrerá condenação de 1 ano e 8 meses de reclusão.

A partir dos julgados do STF que permitiram a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos e a fixação do regime inicial mais brando do que o fechado no tráfico de drogas, chega-se à conclusão que uma pessoa condenada a uma pena inferior a 2 anos, em regime aberto, com a pena convolada em restritiva de direitos, não pode ter praticado uma conduta considerada hedionda.

Hediondo, sem grande aprofundamento, deve ser algo que cause repulsa, horror, que apresente gravidade elevada. Parece difícil acreditar que pessoa que venda ínfima quantidade de droga para sustentar seu próprio vício se enquadre em tal definição. A análise dos outros crimes considerados hediondos reforça o ora afirmado: homicídio qualificado, latrocínio, estupro de vulnerável, etc.

São graves as consequências de se considerar um crime como hediondo (ou equiparado): fica vedado o indulto, a progressão de regime e o livramento condicional exigem prazos mais alargados.

O encarceramento é cada vez maior, notadamente o feminino, sendo o tráfico a principal causa de prisão entre as mulheres. São famílias desfeitas por pouco, consequências gravosas para vários que dependem dessas pessoas e também para a sociedade.

Até quando será feita essa interpretação que talvez seja literal, mas está longe de ser sistemática e a que melhor atende à dignidade humana e à proporcionalidade? A resposta que o Estado tem dado até agora não me parece ser a correta. Precisamos punir menos e recuperar mais.

Brasília, 31 de maio de 2016