Arquivo da tag: saúde

Um dia de luta

O e-mail abaixo transcrito foi enviado aos meus colegas Defensores Públicos Federais. Ele não contém nada de sigiloso ou que envolva a intimidade de qualquer assistido, pelo que pode ser lido sem restrições por qualquer um.

É o resumo de um dia extremamente cansativo, de lutas, reuniões, sustentação oral, presença no STF, mas igualmente satisfatório pela sensação não só de dever cumprido, mas da luta por uma causa de forma intensa e integral.

Ser Defensor não é fácil em uma série de circunstâncias, mas é extremamente gratificante na maioria delas.

A luta pelos mais fracos nunca é fácil, as vitórias fáceis não têm a menor graça.

Brasília, 16 de setembro de 2015

Gustavo de Almeida Ribeiro

Eis o e-mail:

Colegas, temos tido tantas atividades ultimamente que mal tenho conseguido comentar, mas algumas coisas, que nos dão satisfação e sensação de dever cumprido, eu gostaria de compartilhar com os colegas. Não por vaidade pessoal (talvez um pouco, sou humano – risos), mas principalmente por ver a DPU, problemas remuneratórios à parte, se firmar e ser reconhecida na marra, mesmo apesar das dificuldades que enfrentamos.

1.            Hoje, eu e o Dr. Haman estivemos na CNBB. Particularmente, saí muito satisfeito. Senti interesse por parte dos Bispos, que perguntaram, quiseram mais informações, deram sugestões. Pediram a nossa presença nas dioceses pelo país para o compartilhamento de apoio e atuação. Distribuímos material que tínhamos preparado com o apoio da Imprensa e da Keite Camacho, que hoje trabalha com o Antonio Ezequiel, contendo endereços, informações básicas e quatro processos relevantes no STF para eventual apoio da CNBB.

2.            Mais tarde fui para o STF sustentar o HC 128554, impetrado pela Tatiana Lemos (fico devendo os nomes dos demais colegas) em que se discutia a confirmação da presença do THC em pequena porção de maconha (2 gramas) apreendida com soldado que prestava serviço militar obrigatório para a configuração da materialidade do delito.

Estimulado pelas recentes discussões sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, resolvi subir à tribuna para destacar os ainda maiores discrepância e anacronismo caso prevaleça o entendimento que vai se configurando majoritário no RE 635659 em relação ao ultrapassado artigo 290 do CPM.

Sustentação oral tem umas coisas curiosas e sou bem rigoroso comigo. Já teve dias em que ganhei e pensei: “é, foi bem mais ou menos”. Hoje perdi, mas notei que causei um constrangimento grande principalmente para os Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello. O voto do Ministro Celso de Mello foi tão favorável, que quem perdeu a última frase achou que ele votou pela concessão da ordem (vi duas meninas comentando isso, aliás). Gosto disso. Prefiro ganhar, é claro, mas tirar os Ministros da zona de conforto e fazer um julgamento unânime com apoio em um precedente do Plenário se arrastar por boa parte da sessão sempre me deixa satisfeito. A DPU não aparece para cumprir tabela.

3.            Ultimou-se o julgamento do HC 126315 em que se questionava a consideração de maus antecedentes passado o período depurador de 5 anos, tal como ocorre na reincidência. A Ministra Cármen Lúcia levou voto-vista concedendo a ordem em menor extensão, no que foi acompanhada pelo Ministro Teori Zavascki. O Ministro Celso de Mello acompanhou os votos já proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, sendo a ordem concedida por 3 a 2.

“Decisão: Após o voto do Relator, concedendo a ordem, no que foi acompanhado pelo Ministro Dias Toffoli, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista formulado pela Ministra Cármen Lúcia. Falou, pelo paciente, o Dr. Gustavo de Almeida Ribeiro, Defensor Público Federal. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello. 2ª Turma, 17.03.2015.”

“Decisão: A Turma, por votação majoritária, deferiu o pedido de habeas corpus para restabelecer a decisão proferida pelo TJ/SP nos autos da Apelação n. 0005243-89.2010.8.26.0028, no que diz respeito à quantidade de pena aplicada, e determinou, ainda, ao Tribunal de origem que, afastando o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, proceda a nova fixação do regime inicial de cumprimento de pena, segundo os critérios previstos no art. 33, §§ 2º e 3º do CP, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Senhores Ministros Cármen Lúcia e Teori Zavascki, que deferiam parcialmente a ordem. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Dias Toffoli. Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello. 2ª Turma, 15.09.2015.”

4.            Está na pauta do Plenário do STF para amanha o julgamento dos embargos de declaração no RE 855178 em que se discute a solidariedade no fornecimento de medicamentos. Nesse processo a luta foi tão grande, que após o resultado ele merece um e-mail próprio. O Antonio Ezequiel terminou agora à noite os memoriais e recebi, no final da tarde, e-mail da professora da USP, Sueli Dallari, contendo parecer assinado por diversos professores de várias áreas manifestando-se em favor da solidariedade. O contato insistente com a professora foi feito pelo Gustavo Zortéa. Assinam o documento, entre outros:

Sueli Gandolfi Dallari – Advogada, Professor Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; Coordenadora Científica do Núcleo de Pesquisa de Direito Sanitário da USP; Diretora Geral do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA

Fernando Mussa Abujamra Aith – Advogado, Professor Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Vice-Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo / Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA

Dalmo de Abreu Dallari – Advogado, Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo / Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA

Helena Akemi Watanabe – Enfermeira, Professora Doutora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo / Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA

Paulo Roberto do Nascimento – Cientista social, Analista Sociocultural – Secretaria de Estado da Saúde/SP. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo / Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA

Transcrevo a conclusão:

“A competência comum, portanto, enseja a responsabilidade solidária e o dever de todos os entes federativos de cuidar da saúde dos cidadãos de forma universal e integral. Compreender a competência comum e a responsabilidade solidária de maneira diferente seria limitar o direito à saúde em evidente violação às determinações constitucionais. A competência comum para cuidar da saúde, determinada pelo Art. 23, II, da Constituição Federal, configura-se como um cláusula pétrea e fundamental para a proteção do direito social à saúde no Brasil, tal como reconhecido pelos Arts. 6o e 196 da Carta. Nenhuma norma infraconstitucional terá, jamais, o poder de limitar o direito do cidadão ou de coletividades específicas de exigir de qualquer dos entes federativos (inclusive dos três ao mesmo tempo) o cumprimento do dever estatal de garantia do direito à saúde.”

Ainda somos poucos e temos nossas limitações, mas estamos nos tornando adversários mais organizados e experientes.

Abraços,

Gustavo Ribeiro

 

O que realmente importa na questão da saúde

O que realmente importa na questão da saúde

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A questão nodal discutida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 855178, envolvendo a prestação adequada dos serviços de saúde pelo Estado, através de hospitais em condições dignas e do fornecimento de medicamentos, é bastante simples: para o cidadão importa receber o tratamento adequado, seja ele custeado por qual Ente Público for, em tempo hábil.

A premissa acima resume uma das maiores preocupações que atingem a Defensoria Pública da União, responsável pelo atendimento de milhares de pessoas que buscam a Instituição diuturnamente à procura de assistência para a obtenção de medicamentos ou intervenções hospitalares.

Prevalece no Supremo Tribunal Federal, entendimento reafirmado no julgamento do RE 855178, com repercussão geral reconhecida, que União, Estados e Municípios são responsáveis solidários pela prestação dos serviços de saúde. Feita a afirmação jurídica, cabe traduzi-la para o aspecto prático. A solidariedade significa para o cidadão poder demandar qualquer dos Entes Públicos para receber o tratamento de que precisa. Ajuizando ação contra o Município, o Estado em que mora e a União, qualquer um deles poderá ser compelido a prestar o medicamento. Essa possibilidade traz diversas vantagens para o requerente. Em primeiro lugar, afasta o já conhecido jogo de empurra, tão praticado pela administração pública brasileira. Em seguida, evita a alegação dos Estados e, principalmente, dos Municípios pequenos de falta de verbas. Mais ainda, impede a confusão por parte do Magistrado em saber quem é o responsável por cada tipo de prestação. Há também outros aspectos, como pedidos que poderiam ser divididos, caso não prevalecesse a solidariedade, entre Justiça Federal e Estadual, burocratizando o acesso ao medicamento.

A reiteração parece despiscienda, mas as sucessivas notícias de descaso com a saúde exigem a repetição: saúde pública deve ser a prioridade primeira do Estado e tem urgência presumida na maior parte dos casos. Em incontáveis situações, a simples demora é sinônimo de uma sentença de morte. Embora não seja médico, invoco o exemplo da apendicite, que tratada a tempo e modo não costuma gerar consequências, mas sem atendimento, pode levar a óbito.

As notícias com gastos de menor importância, bem como de verdadeiras fortunas desviadas por servidores públicos corruptos também indicam que o problema não é exatamente falta de verba, mas sim investimento errado ou a prática de crime. Quanto ao primeiro aspecto, cabe lembrar que a discricionariedade do administrador público é sempre limitada, vez que ele nunca está dispensado de buscar precipuamente o atendimento ao interesse público, sendo que nada pode ser mais essencial que o atendimento de qualidade nos serviços de saúde.

Deve ainda ser rechaçada a alegação de que o momento de dificuldade financeira experimentado pelo país justificaria a imposição de limites nos gastos na área. A conclusão deve ser exatamente contrária a essa. Em tempos de escassez, arrocho, aumenta a responsabilidade estatal no fornecimento de bens essenciais, capazes de manter a dignidade humana. Em época de crise, exclui-se o supérfluo, sem se descurar do essencial. Nada é mais inadiável que a saúde.

Portanto, o que busca a DPU, em diversas ações tratando de medicamento, é que a assistência seja integral, gratuita e de qualidade, sendo colocada como prioridade absoluta pelo Estado Brasileiro. A solidariedade, discutida no RE 855178, julgado pelo Plenário Virtual do STF, e agora atacado por embargos de declaração da União, é um desses aspectos que a Instituição reputa essencial para que a qualidade na prestação da saúde não piore ainda mais. Todos os Entes Públicos são solidariamente responsáveis, sem ressalvas. O que verdadeiramente importa é que os medicamentos e os tratamentos adequados cheguem o mais rapidamente possível a seus destinatários. Todo o restante é secundário. Chega de pessoas tomando soro no chão, grávidas em macas espalhadas pelos corredores de hospital e crianças esperando meses para obtenção de fármacos urgentes. A saúde é prioridade. Essa é a bandeira da Defensoria Pública, é a nossa luta.

Brasília, 19 de agosto de 2015

Um mínimo de sensibilidade

Um mínimo de sensibilidade

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já compartilhei com colegas e amigos, por inúmeros meios, incontáveis julgamentos de habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública da União em que se discutia a aplicação do princípio da insignificância em favor de pessoas acusadas de furtos de itens de ínfimo valor, como espigas de milho, sucata, gêneros alimentícios, peças de roupa.

Há quem discorde da aplicação do instituto, quem diga que ele é um estímulo à criminalidade, em suma, discursos que veem no delito de bagatela um crime como outro qualquer e, portanto, passível de condenação penal.

Certamente influenciado pela minha condição de Defensor Público Federal, não vejo na condenação e no encarceramento de acusados da prática de pequenos furtos qualquer vantagem para a sociedade brasileira, mesmo que pudéssemos – e não podemos – por um instante, olvidar dos direitos do próprio réu.

Mas o excesso punitivo que devasta determinada parcela da população parece não ter limite.

Foi julgado, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 30 de junho de 2015, o HC 120580, impetrado pela DPU, e trazido até Brasília pela atuação da Defensoria Pública Estadual de Minas Gerais. Buscava-se a anulação de condenação imposta ao paciente pela suposta prática de dano qualificado, por ter ele supostamente quebrado a lâmina de vidro de uma porta de um posto de saúde com um pontapé.

O caso merece ser detalhado.

O paciente da impetração citada acima foi acusado da prática de dano por ter, supostamente, chutado a porta de vidro de um centro de saúde em Belo Horizonte/MG. Foi absolvido pelo Douto Juízo de Primeiro Grau. O Ministério Público aviou recurso, provido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A defesa interpôs recurso especial, não admitido, e, em seguida, agravo. O apelo especial teve seu seguimento negado em decisão monocrática lavrada pela Ministra Relatora no Superior Tribunal de Justiça, posteriormente confirmada por sua Quinta Turma, em julgamento de agravo regimental. Segundo a Corte Superior “(…) a conduta praticada pelo Agravante possui expressividade jurídica, na medida em que atenta contra serviço essencial à comunidade, qual seja, a assistência pública à saúde.”

Foi impetrado, em seguida, habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, postulando-se a aplicação do princípio da insignificância. Reitera-se, o alegado dano foi ínfimo, em nada prejudicando o atendimento no posto de saúde.

Mais que palavras minhas, cumpre invocar o parecer da Procuradoria-Geral da República, lavrado pela Subprocuradora-Geral Deborah Duprat, disponível no sítio eletrônico do STF, sem a necessidade de qualquer espécie de senha ou assinatura digital para seu acesso:

“Pois bem, a sentença consigna que o réu, insatisfeito por esperar cerca de 8 horas por atendimento de serviço de saúde, desferiu um chute contra a porta do centro de saúde municipal, o que levou ao fragmento de parte de sua lâmina de vidro. Também registra o péssimo estado da porta.

 As circunstâncias que cercam o caso permitem concluir pela sua irrelevância penal. A conduta do agente, se não justificada, ao menos absolutamente compreensível: a espera tão longa por atendimento em situação de doença e/ou dor pode levar muitos de nós ao desespero.

 De mais a mais, chega a ser possível afirmar a ausência de dolo, diante da informação da sentença sobre o estado da porta. O dano, ao que tudo indica, foi muito mais resultado deste do que propriamente da conduta do agente – um chute, e nada mais.

 Ainda que de aplicação excepcional, a hipótese é típica de incidência do princípio da insignificância, razão por que o parecer é pela concessão da ordem.”

Nem se pode dizer, como se faz muitas vezes quando a Defensoria pede a aplicação do princípio da insignificância em favor de acusados de furto ou descaminho, que o increpado escolheu a maneira mais fácil, a via mais rápida para a obtenção de bens. A conduta imputada ao paciente do habeas corpus em tela decorre principalmente da precariedade dos serviços de saúde pública, situação amplamente divulgada em todos os meios de comunicação diuturnamente.

Em resumo, o cidadão carente paga, no país, inúmeras vezes pela mesma exclusão: arca com incontáveis e elevados tributos diretos e indiretos em tudo o que consome e faz, recebe serviços públicos que baixa qualidade – por razões diversas, mas que decorrem da subversão do valor maior da supremacia do interesse público, e, por fim, quando se irrita e se desespera em situação em que sua saúde está debilitada, enfrenta a severidade penal sempre mais implacável contra os mais pobres.

Para os arautos do rigor, que logo gritarão que as mazelas do sistema de saúde pátrio não dão ao cidadão o direito de se rebelar e chutar uma porta, indago se a mesma inflexibilidade por eles pregada volta-se também contra os administradores em geral que, no trato da coisa pública, subvertem completamente as prioridades. Questiono também se a única solução que eles têm para todos os problemas do Brasil é a penal, resposta que, aliás, me parece cada vez mais evidente. Nem se diga que o paciente responde a um processo por furto, vez que as condutas em nada guardam relação.

Não consigo deixar de me perguntar se o membro do Ministério Público que recorreu da decisão absolutória de Primeiro Grau acha mesmo que a obtenção da condenação do paciente do citado habeas corpus traz algum benefício, ínfimo que seja à sociedade, lançando mácula em uma pessoa que se irritou em um momento de extrema fragilidade. A mesma indagação deve ser formulada ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais que proveu o recurso para impor condenação, bem como ao Superior Tribunal de Justiça, que manteve incólume a decisão anterior.

Foi necessário que o feito chegasse ao STF para que restasse restaurada a decisão primeva, com o apoio da Procuradoria-Geral da República, pela absolvição do paciente.

Poderia falar dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mas irei mais longe. Os concursos públicos que selecionam os membros das mais diversas carreiras jurídicas são cada vez mais difíceis e exigentes, indiscutivelmente. Lamento que sensibilidade com a miserável e frágil condição humana não seja mensurável e, ainda que fosse, muitas vezes sequer seria exigida nessas provas. Já afirmei isso antes, mas sempre impressionado com as obras que li de Victor Hugo, escritor francês nascido no início do século XIX, mas que parece viver no Brasil do século XXI, repito: Javert ficaria perplexo com certas coisas que acontecem por aqui.

Brasília, 3 de julho de 2015