Ainda sobre o princípio da insignificância

Ainda sobre o princípio da insignificância

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Na próxima semana, o Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento dos habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública de São Paulo tratando do princípio da insignificância e sua aplicação no crime de furto.

Lamento soar exaustivo quanto ao tema, mas penso serem inevitáveis certas reflexões e questionamentos.

Em primeiro lugar, parece óbvio, mas não custa lembrar, que o mundo jurídico e suas respostas aos problemas e conflitos humanos não são uma realidade à parte, distante do que vivenciamos no dia a dia.

A situação econômica, a falta de educação pública de qualidade, os hospitais superlotados, a impunidade dos delitos chamados de colarinho branco, que durante tanto tempo grassou em nosso país, não justificam a prática de qualquer crime, mas não podem ser ignorados em seu julgamento.

Pior ainda, o desrespeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade é verificável até mesmo por crianças. Se dois filhos de um casal fazem bagunça em casa e o mais novo, tendo feito traquinagem menos grave, recebe castigo mais severo que o primogênito, imediatamente ele questionará a situação, perguntando aos pais por que foi punido mais rigorosamente sendo mais novo e tendo feito coisa mais leve. Ou seja, até crianças têm noção formada sobre os princípios acima. Entretanto, no Brasil, o que se viu historicamente foi a aplicação invertida desses fatores, com o maior rigor e severidade incidindo sobre os menos favorecidos, em todos os níveis, desde a edição da Lei até a execução da pena.

Quanto aos habeas corpus em si, são dois os pontos nodais da controvérsia para a aplicação da bagatela: a questão dos antecedentes do acusado, bem como a possibilidade de sua aplicação aos furtos qualificados.

As impetrações levadas ao Plenário pelo Ministro Roberto Barroso são representativas cristalinas das absurdas condenações que podem prevalecer caso se observe a vida pregressa dos acusados, deixando-se de lado a conduta em si. O HC 123108 trata do furto de chinelos no valor de R$ 16,00. Já o HC 123734 versa sobre o furto qualificado tentado de bombons no valor de R$ 30,00. Há também um terceiro habeas corpus, patrocinado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, de número 123533, em que a paciente foi acusada da suposta prática de furto qualificado de sabonetes íntimos no valor de R$ 48,00.

As notícias tratando do encarceramento em massa, dos presídios cada vez mais superlotados e do crescente aumento da violência apesar disso povoam os jornais veiculados por todos os meios de comunicação. Ou seja, a prisão como resposta estatal única parece não estar sendo eficaz no combate à criminalidade.

Apesar disso, o que tem prevalecido nas Turmas do STF e que, infelizmente, acho que será a tese vencedora no Plenário é que havendo reiteração delitiva ou em se tratando de furto qualificado, resta afastado o princípio da insignificância.

Em primeiro lugar, embora já mencionado à exaustão, cabe dizer que a condição pessoal do acusado não torna o fato materialmente atípico em típico. Aceitar afirmativa em contrário seria perigosa aproximação com o direito penal do autor.

Embora não possa, obviamente, ter certeza do que afirmo, fico com a impressão de que os feitos escolhidos como paradigmas, levados ao Plenário do STF pelo Ministro Roberto Barroso, tiveram como objetivo justamente mostrar que uma conduta ridícula, ínfima, não pode levar à condenação penal pelo simples fato de a pessoa ter contra si fato anterior. A subtração de um chinelo, cujo valor é inferior a R$ 20,00, justifica realmente a imposição de condenação com todos os seus efeitos deletérios? Pior, muitas vezes deve pena a ser cumprida na forma privativa de liberdade, oportunidade em que um furtador de quinquilharias será pós-graduado na escola do crime.

Se a vida pregressa justifica a imposição de pena por si só, a subtração de um lápis deverá culminar na condenação penal, caso a pessoa seja considerada reincidente. O mesmo resultado deverá sobrevir se o acusado subtrair uma bala ou um clipe de papel de um grande estabelecimento, afinal, o que importará será apenas sua vida anterior, sendo ignorados todos os demais fatores. Minha experiência de anos atuando perante a Suprema Corte demonstra que os exemplos que acabo de citar estão longe de inverossímeis ou mesmo raros. Já vi habeas corpus em que foram discutidas subtrações no valor de R$ 4,00 e R$ 6,00, ambos concedidos, mas tão somente após chegarem ao STF.

Em um país que ainda se destaca pela desigualdade social, pela falta dos serviços básicos que devem ser prestados pelo Estado ao cidadão, em que a punição aos poderosos ainda é completamente incipiente, parece inacreditável que um furto de R$ 4,00 leve alguém à prisão, mas é exatamente o que restará consolidado caso o STF denegue os habeas corpus afetados ao Plenário.

Também é preciso afastar a conclusão falsa de que todo furto qualificado é grave, por isso incompatível com a insignificância. Calha lembrar que o simples concurso de duas pessoas qualifica o furto, pelo que mãe e filha que, famintas, subtraiam um pacote de pão de um grande supermercado já terão cometido o crime na forma qualificada. Reitero que a mera qualificadora não é o bastante para se afastar a bagatela, como o exemplo mencionado bem demonstra.

Sei que ainda que sobrevenha a denegação das ordens, essas reflexões inevitavelmente passam pelo pensamento dos Ministros.

Temo pelo resultado, embora sinta que as ponderações acima foram observadas pelo Ministro Roberto Barroso na escolha dos feitos levados ao Plenário do STF. A insignificância não deve ser vedada de plano, sem análise do caso concreto. A proibição apriorística da aplicação do princípio da bagatela acabará por gerar absurdos como os narrados anteriormente, que estão longe de terem surgido apenas da imaginação do Defensor autor deste texto. São casos diários, frutos de fatores variáveis: a falta de educação e de oportunidades, a fome, o descaso estatal para com suas obrigações essenciais, e, por vezes, a malandragem, não se ignora isso. O lamentável é que o Brasil parece insistir em dar apenas uma mesma resposta para todas as hipóteses: cadeia. Se o rigor fosse generalizado, já não concordaria com a solução indistinta, mas nem isso ele é. Pior ainda, estamos vendo que a opção adotada está longe de resolver nossa violência cotidiana e nossas mazelas sociais.

Brasília, 1º de agosto de 2015

 

 

Deixe um comentário