Regime prisional adequado
(PSV 57 e RE 641.320)
Gustavo de Almeida Ribeiro
Importância da decisão quanto ao regime prisional
O Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente dois processos tratando da colocação de pessoas no regime prisional adequado.
Como participei ativamente, pela Defensoria Pública da União, das manifestações produzidas nos dois feitos, acho pertinente tecer alguns comentários, até em decorrência do que li sobre o tema.
Em primeiro lugar, por mais óbvio que possa parecer, o pedido formulado pela Defensoria, tanto na Proposta de Súmula Vinculante (PSV 57), quanto no RE 641.320, com repercussão geral reconhecida, era no sentido de que ninguém deve ser mantido em regime prisional para o cumprimento de pena mais gravoso do que o imposto na condenação, ou ter a progressão de regime obstaculizada pela falta de vagas.
O pleito principal era, portanto, bastante simples e direto, com o objetivo claro de que ninguém suporte condição mais severa em decorrência da inércia estatal em adequar os estabelecimentos prisionais à, infelizmente, crescente demanda.
Não havia pedido, calha esclarecer, de extinção do regime fechado, de progressão automática em qualquer situação, de concessão de prisão domiciliar de forma indistinta. O objetivo é bem mais simples: que a individualização da pena seja verdadeiramente implementada e cumprida, nos exatos termos do que dispõe a Constituição da República, ou seja, que a pessoa condenada desconte sua pena na forma adequada e, não havendo vaga para tanto, que não tenha sua situação piorada pelo descaso do Estado (mais um entre tantos, frise-se).
As explicações óbvias tecidas acima têm como objetivo refutar afirmações de excesso de liberalidade da Corte, ou de “agora ninguém mais fica preso”. O Estado cumprindo sua obrigação de manter estabelecimentos prisionais adequados, as decisões prolatadas no recurso extraordinário e na súmula vinculante tornam-se inaplicáveis.
A individualização da pena só existe na prática quando passa por todas as suas fases: a legislativa, com a fixação de limites diferentes para cada crime e parâmetros distintos dentro de cada conduta, a judicial com a fixação da pena, do regime e a análise da possibilidade de conversão e, por fim, a executória, com o efetivo cumprimento da reprimenda. Se não implementada efetivamente, a individualização torna-se letra morta para ser apenas um idealismo distante da realidade. O regime adequado é parte essencial da fixação da pena, na verdade, é uma de suas facetas mais sensíveis para o cidadão.
Por outro lado, também li alguns comentários no sentido de que as decisões foram menos diretas e assertivas do que deveriam. Sem discordar de tal entendimento, destaco que o avanço obtido, de qualquer maneira, foi muito relevante, um verdadeiro marco na busca pela dignidade das pessoas condenadas. Ainda que não tenha sido formulada a redação ideal na proposta de súmula, firmou-se entendimento pela vedação do regime mais gravoso, o que é bastante significativo.
Assim, penso que o STF acertou e promoveu avanço em favor do respeito aos direitos humanos, notadamente no que concerne à individualização da pena e à não colocação de pessoas em presídios abarrotados, destacadamente quando autoras de condutas menos graves. Critico quando necessário, mas acho que foram dados passos, mesmo que menos largos que o desejado, no sentido de que o encarcerado não deve perder sua dignidade.
Feitas tais considerações, comento agora a atuação da Defensoria Pública da União tanto no RE 641.320, quanto na PSV 57.
Atuação da DPU na PSV 57 e no RE 641.320
A Proposta de Súmula Vinculante 57 foi apresentada pela Defensoria Pública da União, em decorrência de provocação levada ao Defensor Público-Geral Federal pela ANADEF – Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais e pela Pastoral Carcerária, em fevereiro de 2011.
Sua apreciação teve início em março de 2015, oportunidade em que o Defensor Geral proferiu sustentação oral no Plenário do STF. O Ministro Ricardo Lewandowski, Presidente, votou pelo acolhimento da proposta tal como apresentada pela DPU (de minha lavra, aliás). Em seguida, o Ministro Roberto Barroso, após fazer relevantes considerações, pediu vista.
Com base nessas ponderações do Ministro, eu, um colega e o Defensor Geral elaboramos petição em que procuramos ajudar a Corte a estabelecer critérios para a colocação de presos em regime menos gravoso em caso de falta de vaga, acostada tanto à PSV 57, quanto ao RE 641.320. Cabe dar um exemplo de sugestão: havendo apenas uma vaga no semiaberto e duas pessoas para ocupá-la, deve receber o regime aberto ou domiciliar aquele que estiver mais próximo de obter o próximo benefício.
Meses depois, em dezembro de 2015, teve início a apreciação do RE 641.320, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes. O pedido de ingresso da DPU no feito foi redigido por mim. O tema discutido no citado apelo extremo também cuidava da questão do regime prisional adequado. Novamente, o Defensor Geral Federal manifestou-se no Plenário, em atuação articulada com o Defensor Público do Rio Grande do Sul.
Aliás, a DPU já tinha sido ouvida na audiência pública promovida pelo Ministro Relator em que discutidas as condições prisionais do Brasil.
Após o voto do Ministro Gilmar Mendes, dando parcial provimento ao recurso ministerial, acompanhado pelo Ministro Edson Fachin, pediu vista o Ministro Teori Zavascki.
Em maio de 2016, a vista foi devolvida, restando parcialmente provido o recurso, fixando-se, entretanto, as condições para se evitar o cumprimento de pena em condição mais gravosa do que a condenação, nos termos abaixo transcritos:
“Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, deu parcial provimento ao recurso extraordinário, apenas para determinar que, havendo viabilidade, ao invés da prisão domiciliar, observe-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada do recorrido, enquanto em regime semiaberto; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao recorrido após progressão ao regime aberto, vencido o Ministro Marco Aurélio, que desprovia o recurso. Em seguida, o Tribunal, apreciando o tema 423 da repercussão geral, fixou tese nos seguintes termos: a) a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso; b) os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequados a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola, industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento adequado” (regime aberto) (art. 33, §1º, alíneas “b” e “c”); c) havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado. Ausente, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 11.05.2016.” (fonte: sítio eletrônico do STF)
Em junho de 2016, a PSV 57 voltou à pauta, sendo aprovada, não mais com a redação original, mas com as indicações formuladas quando do julgamento do RE 641.320:
“A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS” (Súmula Vinculante 56)
Em suma, houve relevante participação da DPU nos dois feitos que podem conduzir a uma situação mais humana para os condenados. Se o resultado não foi perfeito, foi bastante satisfatório para que as pessoas não sejam deixadas indefinidamente em condições ainda piores do que aquelas que decorrem das condenações. Eu diria que foi, sim, uma grande vitória da dignidade e da cidadania. Um dia de cada vez.
Brasília, 4 de julho de 2016