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Sincronicidade

Sincronicidade

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A vida tem mesmo algumas coincidências impressionantes. Estava me preparando para fazer duas sustentações orais perante a Segunda Turma do STF e relendo o roteiro que tinha elaborado no dia anterior à sessão.

Fiz uma introdução que serviria para os dois habeas corpus que seriam julgados, falando que em tempos de crise são justamente os mais pobres, os mais frágeis, os primeiros a sofrer todos os tipos de mazelas.

Em um dos casos, pedia-se a aplicação da minorante do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06 ao paciente, sem antecedentes, flagrado com menos de 28 gramas de cocaína. No outro, impugnava-se a prisão cautelar de acusado de homicídio qualificado tentado, fundamentada, no entender da Defensoria, de forma bastante genérica. Neste segundo feito, a prisão já se arrasta há mais de um ano e consta dos autos ofício assinado pela Magistrada em que ela afirmou textualmente: “Em virtude da falta de estrutura, é impossível o cumprimento dos prazos processuais, sendo necessária a instalação das três varas previstas na LOJ.” (documento acostado aos autos eletrônicos do HC 128676/STF)

Pouco mais de duas horas antes da sessão se iniciar, vejo um “tuíte” do colega de Defensoria, Caio Paiva, indicando entrevista com a renomada escritora e professora Flávia Piovesan, no site “justificando.com”, cujo título já diz muito: “Flávia Piovesan: uma das consequências da crise brasileira é o recrudescimento penal”.

Comecei as sustentações justamente com a observação que tinha preparado, chamando a atenção para a companhia ilustre e qualificada que tinha acabado de descobrir para a minha linha de argumentação.

Infelizmente, perdi os dois habeas corpus por unanimidade. Afinal, em tempos de crise…

Brasília, 4 de setembro de 2015

 

O que realmente importa na questão da saúde

O que realmente importa na questão da saúde

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A questão nodal discutida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 855178, envolvendo a prestação adequada dos serviços de saúde pelo Estado, através de hospitais em condições dignas e do fornecimento de medicamentos, é bastante simples: para o cidadão importa receber o tratamento adequado, seja ele custeado por qual Ente Público for, em tempo hábil.

A premissa acima resume uma das maiores preocupações que atingem a Defensoria Pública da União, responsável pelo atendimento de milhares de pessoas que buscam a Instituição diuturnamente à procura de assistência para a obtenção de medicamentos ou intervenções hospitalares.

Prevalece no Supremo Tribunal Federal, entendimento reafirmado no julgamento do RE 855178, com repercussão geral reconhecida, que União, Estados e Municípios são responsáveis solidários pela prestação dos serviços de saúde. Feita a afirmação jurídica, cabe traduzi-la para o aspecto prático. A solidariedade significa para o cidadão poder demandar qualquer dos Entes Públicos para receber o tratamento de que precisa. Ajuizando ação contra o Município, o Estado em que mora e a União, qualquer um deles poderá ser compelido a prestar o medicamento. Essa possibilidade traz diversas vantagens para o requerente. Em primeiro lugar, afasta o já conhecido jogo de empurra, tão praticado pela administração pública brasileira. Em seguida, evita a alegação dos Estados e, principalmente, dos Municípios pequenos de falta de verbas. Mais ainda, impede a confusão por parte do Magistrado em saber quem é o responsável por cada tipo de prestação. Há também outros aspectos, como pedidos que poderiam ser divididos, caso não prevalecesse a solidariedade, entre Justiça Federal e Estadual, burocratizando o acesso ao medicamento.

A reiteração parece despiscienda, mas as sucessivas notícias de descaso com a saúde exigem a repetição: saúde pública deve ser a prioridade primeira do Estado e tem urgência presumida na maior parte dos casos. Em incontáveis situações, a simples demora é sinônimo de uma sentença de morte. Embora não seja médico, invoco o exemplo da apendicite, que tratada a tempo e modo não costuma gerar consequências, mas sem atendimento, pode levar a óbito.

As notícias com gastos de menor importância, bem como de verdadeiras fortunas desviadas por servidores públicos corruptos também indicam que o problema não é exatamente falta de verba, mas sim investimento errado ou a prática de crime. Quanto ao primeiro aspecto, cabe lembrar que a discricionariedade do administrador público é sempre limitada, vez que ele nunca está dispensado de buscar precipuamente o atendimento ao interesse público, sendo que nada pode ser mais essencial que o atendimento de qualidade nos serviços de saúde.

Deve ainda ser rechaçada a alegação de que o momento de dificuldade financeira experimentado pelo país justificaria a imposição de limites nos gastos na área. A conclusão deve ser exatamente contrária a essa. Em tempos de escassez, arrocho, aumenta a responsabilidade estatal no fornecimento de bens essenciais, capazes de manter a dignidade humana. Em época de crise, exclui-se o supérfluo, sem se descurar do essencial. Nada é mais inadiável que a saúde.

Portanto, o que busca a DPU, em diversas ações tratando de medicamento, é que a assistência seja integral, gratuita e de qualidade, sendo colocada como prioridade absoluta pelo Estado Brasileiro. A solidariedade, discutida no RE 855178, julgado pelo Plenário Virtual do STF, e agora atacado por embargos de declaração da União, é um desses aspectos que a Instituição reputa essencial para que a qualidade na prestação da saúde não piore ainda mais. Todos os Entes Públicos são solidariamente responsáveis, sem ressalvas. O que verdadeiramente importa é que os medicamentos e os tratamentos adequados cheguem o mais rapidamente possível a seus destinatários. Todo o restante é secundário. Chega de pessoas tomando soro no chão, grávidas em macas espalhadas pelos corredores de hospital e crianças esperando meses para obtenção de fármacos urgentes. A saúde é prioridade. Essa é a bandeira da Defensoria Pública, é a nossa luta.

Brasília, 19 de agosto de 2015

Comentários sobre a estrutura e a autonomia da DPU

Comentários sobre a estrutura e a autonomia da DPU

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Há algum tempo vinha pensando em escrever breves linhas sobre questões atinentes à estruturação e à autonomia da Defensoria Pública da União.

Estimulado pela decisão favorável proferida na Suspensão de Tutela Antecipada 800, pelo Ministro Presidente do STF, em que a DPU pedia a suspensão dos efeitos de determinação judicial para que a Instituição prestasse atendimento em determinada subseção judiciária, tecerei alguns comentários sobre o assunto. Aliás, a matéria em destaque no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, na tarde de 10 de agosto de 2015, tratava justamente do deferimento do pleito defensorial, suspendendo decisão proferida pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul em ação civil pública, o que está a demonstrar seu relevo.

Com quase quatorze anos de carreira, não posso negar que a Instituição experimentou razoável crescimento em diversos aspectos nesse período. Em outros, entretanto, a evolução foi lenta ou, a bem da verdade, quase inexistente.

Começo com um exemplo da última situação descrita acima. Até a presente data, a Defensoria não tem quadro de apoio próprio. Ao contrário do que ocorre no Poder Judiciário Federal ou no Ministério Público da União, contamos com alguns cargos do chamado Plano Geral do Poder Executivo e, principalmente, com servidores cedidos por outros órgãos públicos. Em suma, passada mais de uma década desde que tomei posse, a DPU continua sem quadro próprio, o que faz com que o rendimento do trabalho caia enormemente, apesar de reconhecer a grande ajuda de muitos dos servidores oriundos de outros entes.

Poderia enumerar incontáveis situações bizarras que a falta de quadro de apoio me fez passar, mas duas delas bastam. Após algum tempo de estabilidade no gabinete, contando com servidores cedidos que ficaram por mais de um ano, em um período de seis meses experimentei três ou quatro trocas de pessoas que mal conseguiam aprender o trabalho e pediam para sair, por razões diversas – uma delas, por exemplo, formada em odontologia, tinha dificuldade natural em fazer qualquer atividade relacionada ao Direito. Certo é que entre a chegada e a saída de um desses servidores ficou trabalhando comigo apenas uma estagiária que tinha, na oportunidade, duas semanas de casa. Como costumo brincar, ela mal sabia onde estavam os interruptores e sequer tinha alguém, além de mim, para lhe ensinar qualquer coisa. Em suma, quando eu tinha que sair para realizar atividade externa, o gabinete ficava por conta de uma pessoa não só inexperiente em termos profissionais, mas sem qualquer conhecimento da Instituição.

O crescimento do número de membros, por sua vez, é inegável, mas não na velocidade necessária para o cumprimento da missão constitucional confiada à DPU. Por isso, ações civis públicas para se colocar Defensores em todos os locais em que haja sede da Justiça Federal, mais que inócuas, são contraproducentes, vez que desestruturam o planejamento da Instituição. Aliás, durante algum tempo, ajudei o Defensor Público-Geral Federal a redigir e ajuizar os pedidos de suspensão das decisões proferidas em ACPs, lembrando-me de uma em especial que chegava ao cúmulo de impor multa pessoal ao Defensor-chefe de Manaus, caso não instalada unidade da DPU em Tabatinga/AM. Ora, o Defensor-chefe apenas administra seu núcleo, não tendo qualquer ingerência sobre os locais em que serão instaladas novas sedes, além disso, as distâncias amazônicas impedem qualquer deslocamento periódico.

A estruturação material também experimentou incremento, não se pode negar, mas está longe do ideal, principalmente em localidades menores. Em algumas faltam coisas básicas, simples, cuja aquisição se arrasta por falta de servidores e quadro de apoio adequado. Em suma, as carências se somam e se auto-alimentam.

Por todas as razões acima, as falas contra a autonomia da DPU devem também ser rechaçadas. Em primeiro lugar, porque em alguns aspectos não houve o mínimo interesse por parte do Poder Executivo em estruturar a Instituição, como já narrado.

Em seguida, mesmo no que aparentemente só importaria aos membros, refiro-me especificamente à remuneração, a questão é bem mais complexa do que parece após uma leitura rápida.

A imensa discrepância remuneratória existente entre Juízes e Membros do Ministério Público de um lado e Defensores de outro traz consequências nefastas para a carreira. Lamentavelmente, cria desrespeito por parte de alguns que veem no contracheque o indicativo único da relevância da atividade. Em seguida, faz com que muitas pessoas vocacionadas acabem saindo à procura de vencimentos melhores, esvaziando os quadros da Instituição. Outros permanecem, mas infelizes, insatisfeitos com o tratamento desrespeitoso por parte do Estado e acabam por se dedicar menos, ter menos empenho no exercício de suas funções.

Neste ponto, impende afastar argumentos lamentáveis, para se dizer o mínimo, como: quem está insatisfeito tem é que estudar para outro concurso, se não está bom saia ou na iniciativa privada é ainda pior. Ora, a comparação a ser feita é com outras carreiras jurídicas de Estado que exigem os mesmos requisitos para ingresso e exercício. O abismo remuneratório em nada se justifica. Com relação à iniciativa privada, a comparação é impossível e tal conclusão dispensa maiores digressões. Duvido sinceramente que qualquer autoridade pública, principalmente aquelas que são eleitas pelo voto popular, tivesse coragem de justificar em rede nacional de televisão que acha correto que o membro do Órgão de acusação receba mais do dobro daquele que defende os direitos dos mais frágeis – em matérias penais e extrapenais.

Em suma, não se trata apenas de “diferença” remuneratória, mas sim de um verdadeiro fosso que acaba por desvalorizar o trabalho do Defensor Público. Por fim, o título a que é paga a verba pouco importa na prática (indenizatória, cumulação, auxílio, etc.), pelo que justificativas nesse sentido servem mais para irritar que para explicar.

Por isso, as tentativas de se minorar as discrepâncias remuneratórias, muito além de significarem exclusiva defesa dos interesses dos membros, representam também a valorização da carreira em si. Não sou hipócrita a ponto de dizer que não interessa a cada Defensor ganhar bem, mas importa também a quem é por ele atendido. Valorização, no sistema capitalista, passa inequivocamente pela remuneração. Os Defensores Públicos não obtêm descontos em suas contas pela nobreza da função.

São igualmente irritantes as falas no sentido de se defender os ajustes fiscais, a contenção de gastos, as contas públicas para se justificar o tratamento dado aos Defensores. Os mesmos argumentos foram ignorados, ao que parece, no momento da aprovação e concessão de aumento nos subsídios, adicional por substituição e auxílio-moradia para Magistrados e Membros do Ministério Público. A memória seletiva não me convence.

Por todas as razões acima, a autonomia da Defensoria Pública da União deve ser mantida (sofre impugnação, aliás, através de ADI ajuizada perante o STF pela Presidente da República), consolidada e efetivada em todos os seus aspectos. Isso interessa aos Defensores, é verdade, mas também a todos os que são por eles atendidos. Desculpas e simplificações não resistem a uma análise minimamente detida.

Brasília, 11 de agosto de 2015

 

 

STF pode encerrar debate sobre legitimidade da União em ações de saúde

A notícia abaixo foi extraída do sítio eletrônico da Defensoria Pública da União. Importa reproduzir dada a relevância do tema.

Brasília, 6 de agosto de 2015

Gustavo de Almeida Ribeiro

<http://www.dpu.gov.br/noticias-nacionais/27295-stf-pode-encerrar-debate-sobre-legitimidade-passiva-da-uniao-nas-acoes-de-saude&gt;

STF pode encerrar debate sobre legitimidade da União em ações de saúde

slide remediosBrasília – A Defensoria Pública da União (DPU) apresentou contrarrazões requerendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) encerre discussão sobre a legitimidade passiva da União nas ações de saúde, entre elas a oferta de medicamento. A questão já foi decidida no Plenário Virtual do STF no sentido de reconhecer a solidariedade dos Entes Federativos na questão, mas a União interpôs embargos de declaração que foram apreciados nesta quarta-feira (5). A decisão foi adiada, entretanto, por pedido de vista do ministro Edson Fachin.

Para o defensor público federal Gustavo Zortéa, que assina as contrarrazões da DPU aos embargos de declaração, o recurso da União é meramente protelatório, porque a decisão do Plenário Virtual do STF reconheceu a existência de ampla jurisprudência dominante da Corte Suprema admitindo a legitimidade passiva da União nas ações de saúde, dada a responsabilidade solidária dos Entes Federativos na questão, o que dispensa a ida desse debate ao plenário.

“A jurisprudência é tão pacificada que, realmente, não é preciso prolongar esse debate. E para o cidadão comum, a decisão é muito importante, porque as garantias de acesso à prestação da saúde ficam muito maiores quando ele pode acionar qualquer um dos Entes em busca do seu direito”, explicou. O STF informa a existência de 75 processos sobrestados a aguardar o trânsito em julgado da controvérsia, que é discutida em sede de repercussão geral no Recurso Extraordinário 855.178/SE.

O Plenário Virtual é um sistema eletrônico criado em 2007 pelo STF que permite aos ministros deliberarem sobre a repercussão geral de um recurso extraordinário e, conforme o Regimento Interno da Casa, também decidir sobre o mérito nos casos em que houver jurisprudência dominante firmada. No caso do RE 855.178/SE, os ministros reafirmaram a jurisprudência quanto à responsabilidade solidária da União, tendo o acórdão sido publicado em 16 de março passado.

Como seis ministros foram favoráveis à reafirmação da jurisprudência dominante e três apenas reconheceram a repercussão geral da matéria (a ministra Cármen Lúcia não votou e o ministro Edson Fachin não havia tomado posse), a União pleiteia que a questão seja levada ao plenário presencial. Além disso, alega que diversas nuances relacionadas ao tema da responsabilidade solidária deixaram de ser debatidas pelo STF.

O defensor Gustavo Zortéa, entretanto, relaciona precedentes de todos os ministros do STF, inclusive dos que votaram apenas pela repercussão geral, no sentido de reconhecer a responsabilidade solidária dos Entes Federativos. Para ele, mesmo que o ministro Edson Fachin, por hipótese, seja contrário, “persistiria, ainda assim, ampla maioria em favor da tese, a justificar a manutenção da deliberação tomada pelo Plenário Virtual e a dispensar novo debruçar sobre o tema pelo Plenário presencial”.

Zortéa argumenta também que a matéria vem sendo discutida pelo STF há muitos anos, inclusive em audiência pública, como a convocada em 2009, que dedicou um dia para debater a responsabilidade dos Entes da Federação. “Diante desse quadro, não se pode imaginar que os votos colhidos em Plenário virtual, a propósito da responsabilidade solidária dos Entes Federativos por prestações de saúde, não tenham sido fruto de longa meditação dos integrantes dessa Suprema Corte”.

DSO/SSG
Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União

Ainda sobre o princípio da insignificância

Ainda sobre o princípio da insignificância

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Na próxima semana, o Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento dos habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública de São Paulo tratando do princípio da insignificância e sua aplicação no crime de furto.

Lamento soar exaustivo quanto ao tema, mas penso serem inevitáveis certas reflexões e questionamentos.

Em primeiro lugar, parece óbvio, mas não custa lembrar, que o mundo jurídico e suas respostas aos problemas e conflitos humanos não são uma realidade à parte, distante do que vivenciamos no dia a dia.

A situação econômica, a falta de educação pública de qualidade, os hospitais superlotados, a impunidade dos delitos chamados de colarinho branco, que durante tanto tempo grassou em nosso país, não justificam a prática de qualquer crime, mas não podem ser ignorados em seu julgamento.

Pior ainda, o desrespeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade é verificável até mesmo por crianças. Se dois filhos de um casal fazem bagunça em casa e o mais novo, tendo feito traquinagem menos grave, recebe castigo mais severo que o primogênito, imediatamente ele questionará a situação, perguntando aos pais por que foi punido mais rigorosamente sendo mais novo e tendo feito coisa mais leve. Ou seja, até crianças têm noção formada sobre os princípios acima. Entretanto, no Brasil, o que se viu historicamente foi a aplicação invertida desses fatores, com o maior rigor e severidade incidindo sobre os menos favorecidos, em todos os níveis, desde a edição da Lei até a execução da pena.

Quanto aos habeas corpus em si, são dois os pontos nodais da controvérsia para a aplicação da bagatela: a questão dos antecedentes do acusado, bem como a possibilidade de sua aplicação aos furtos qualificados.

As impetrações levadas ao Plenário pelo Ministro Roberto Barroso são representativas cristalinas das absurdas condenações que podem prevalecer caso se observe a vida pregressa dos acusados, deixando-se de lado a conduta em si. O HC 123108 trata do furto de chinelos no valor de R$ 16,00. Já o HC 123734 versa sobre o furto qualificado tentado de bombons no valor de R$ 30,00. Há também um terceiro habeas corpus, patrocinado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, de número 123533, em que a paciente foi acusada da suposta prática de furto qualificado de sabonetes íntimos no valor de R$ 48,00.

As notícias tratando do encarceramento em massa, dos presídios cada vez mais superlotados e do crescente aumento da violência apesar disso povoam os jornais veiculados por todos os meios de comunicação. Ou seja, a prisão como resposta estatal única parece não estar sendo eficaz no combate à criminalidade.

Apesar disso, o que tem prevalecido nas Turmas do STF e que, infelizmente, acho que será a tese vencedora no Plenário é que havendo reiteração delitiva ou em se tratando de furto qualificado, resta afastado o princípio da insignificância.

Em primeiro lugar, embora já mencionado à exaustão, cabe dizer que a condição pessoal do acusado não torna o fato materialmente atípico em típico. Aceitar afirmativa em contrário seria perigosa aproximação com o direito penal do autor.

Embora não possa, obviamente, ter certeza do que afirmo, fico com a impressão de que os feitos escolhidos como paradigmas, levados ao Plenário do STF pelo Ministro Roberto Barroso, tiveram como objetivo justamente mostrar que uma conduta ridícula, ínfima, não pode levar à condenação penal pelo simples fato de a pessoa ter contra si fato anterior. A subtração de um chinelo, cujo valor é inferior a R$ 20,00, justifica realmente a imposição de condenação com todos os seus efeitos deletérios? Pior, muitas vezes deve pena a ser cumprida na forma privativa de liberdade, oportunidade em que um furtador de quinquilharias será pós-graduado na escola do crime.

Se a vida pregressa justifica a imposição de pena por si só, a subtração de um lápis deverá culminar na condenação penal, caso a pessoa seja considerada reincidente. O mesmo resultado deverá sobrevir se o acusado subtrair uma bala ou um clipe de papel de um grande estabelecimento, afinal, o que importará será apenas sua vida anterior, sendo ignorados todos os demais fatores. Minha experiência de anos atuando perante a Suprema Corte demonstra que os exemplos que acabo de citar estão longe de inverossímeis ou mesmo raros. Já vi habeas corpus em que foram discutidas subtrações no valor de R$ 4,00 e R$ 6,00, ambos concedidos, mas tão somente após chegarem ao STF.

Em um país que ainda se destaca pela desigualdade social, pela falta dos serviços básicos que devem ser prestados pelo Estado ao cidadão, em que a punição aos poderosos ainda é completamente incipiente, parece inacreditável que um furto de R$ 4,00 leve alguém à prisão, mas é exatamente o que restará consolidado caso o STF denegue os habeas corpus afetados ao Plenário.

Também é preciso afastar a conclusão falsa de que todo furto qualificado é grave, por isso incompatível com a insignificância. Calha lembrar que o simples concurso de duas pessoas qualifica o furto, pelo que mãe e filha que, famintas, subtraiam um pacote de pão de um grande supermercado já terão cometido o crime na forma qualificada. Reitero que a mera qualificadora não é o bastante para se afastar a bagatela, como o exemplo mencionado bem demonstra.

Sei que ainda que sobrevenha a denegação das ordens, essas reflexões inevitavelmente passam pelo pensamento dos Ministros.

Temo pelo resultado, embora sinta que as ponderações acima foram observadas pelo Ministro Roberto Barroso na escolha dos feitos levados ao Plenário do STF. A insignificância não deve ser vedada de plano, sem análise do caso concreto. A proibição apriorística da aplicação do princípio da bagatela acabará por gerar absurdos como os narrados anteriormente, que estão longe de terem surgido apenas da imaginação do Defensor autor deste texto. São casos diários, frutos de fatores variáveis: a falta de educação e de oportunidades, a fome, o descaso estatal para com suas obrigações essenciais, e, por vezes, a malandragem, não se ignora isso. O lamentável é que o Brasil parece insistir em dar apenas uma mesma resposta para todas as hipóteses: cadeia. Se o rigor fosse generalizado, já não concordaria com a solução indistinta, mas nem isso ele é. Pior ainda, estamos vendo que a opção adotada está longe de resolver nossa violência cotidiana e nossas mazelas sociais.

Brasília, 1º de agosto de 2015

 

 

Não é só mais um processo

Não é só mais um processo

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Como Defensor Público, atuo em dezenas de habeas corpus versando sobre um mesmo tema perante o Supremo Tribunal Federal.

Muitas vezes, a jurisprudência conflitante entre as Turmas ou a relevância do assunto faz com que um processo paradigma seja afetado ao Plenário para a pacificação da controvérsia. Em outras tantas, a Turma interrompe por mais de uma vez o julgamento para decidir questão inusitada, decorrente justamente da maior presença da Defensoria Pública, visto que alguns aspectos do Direito Penal tem ligação quase que exclusiva com os atendidos pela Instituição.

Entretanto, o que ultrapassa meu entendimento, com a devida licença, é a razão pela qual os Ministros, de forma monocrática, continuam julgando processos com temas polêmicos afetados ao Plenário e que apenas começaram a ser julgados, sem qualquer indício de formação de corrente majoritária ou que ainda estão pendentes de apreciação na própria Turma. Pior, inúmeras vezes, mesmo com a interposição do agravo e a demonstração clara de que o tema não está definido, a decisão monocrática é mantida incólume.

Poderia mencionar alguns casos em que vi tal situação ocorrer, mas, em razão de ser um tema que muito me incomoda e que está prestes a ser retomado pelo Pleno do STF, focarei meus comentários na aplicação do princípio da insignificância no crime de furto.

A Corte caminhou, em tempo recente, no sentido da limitação da aplicação do instituto, principalmente a 2ª Turma, bem mais favorável à tese até poucos anos atrás.

Atualmente, passou a limitar a aceitação do crime de bagatela sensivelmente, afastando o princípio quando o paciente do habeas corpus responde a outros processos ou tenha incidido no furto qualquer qualificadora.

Não tecerei linhas e linhas de texto discorrendo sobre a insignificância e a exclusão da tipicidade material, limitando-me a dizer que se determinado fato é atípico, não se torna típico a depender de quem o praticou – o que seria uma perigosa aproximação com o direito penal do autor. Da mesma forma, a subtração de um pacote de biscoitos em um supermercado não passa a ter relevância penal por ter sido praticada por duas pessoas, circunstância qualificadora. Pretendo, quem sabe, retornar a essas ponderações em outra oportunidade.

Antecipadamente, afirmo que não guardo muitas esperanças no julgamento dos 3 habeas corpus sobre a matéria afetados ao Plenário do STF (HC 123108, HC 123734 e HC 123533).

Contudo, enquanto a questão não for definida pelo colegiado maior, parece-me extremamente contraditório, para não dizer capaz de gerar insegurança jurídica, que Ministros apreciem o tema de forma monocrática ou, no máximo, levando processos à Turma pela via do agravo interno.

O julgamento dos habeas corpus pelo Pleno do STF foi iniciado em 10 de dezembro de 2014. Se o tema fosse simples, de fácil decisão, incapaz de gerar maiores reflexões, ele já teria sido encerrado em qualquer metade de sessão. Ao contrário, já foi pautado após seu início e retirado, em clara indicação de que se trata de assunto árduo.

O principal argumento invocado para se negar provimento aos agravos regimentais por mim manejados contra as decisões monocráticas foi a jurisprudência atual da Corte, restritiva, como mencionei acima (vide, como exemplo, os habeas corpus 126618, 126523 e 126273, apreciados em agravo pela 2ª Turma). Reitero a pergunta: por que então afetar a matéria ao Pleno e demorar tanto a julgá-la? Se a linha já está definida, não se explica o atraso, se é controvertida, menos ainda se justificam as decisões monocráticas.

Nem se diga que, após o julgamento do Plenário, novos habeas corpus poderão ser ajuizados em favor dos pacientes a depender do resultado, mesmo que se admita repetição de impetração com o mesmo tema – não pretendo discutir essa possibilidade agora – o fato é que cumprida a pena, o dano está feito, consolidado, principalmente porque, muitas das vezes, ainda que por pouco tempo, tais processos geram, sim, pena de prisão.

Por isso, embora louve a tentativa do STF em reduzir e dar andamento célere aos feitos, entendo que julgar de forma monocrática, e, pior, para denegar a ordem, habeas corpus cujo tema de fundo ainda está a merecer muita discussão por parte do colegiado não parece a melhor solução.

Se o Ministro Relator deseja julgar os habeas corpus a ele distribuídos, evitando um passivo desmedido, que ao menos reconheça quando o mérito estiver longe de ser pacificado e o leve à Turma, possibilitando inclusive a sustentação oral. Meus anos de prática perante a Suprema Corte me ensinaram inequivocamente que o julgamento do writ em si é diferente do mero agravo regimental, além de possibilitar a manifestação oral.

Cada caso, cada processo representa uma vida, uma pessoa, muitas vezes acusada e condenada por furto de coisas de ínfimo valor, mas que ficará estigmatizada e será, quem sabe, encarcerada para que possa graduar-se na escola do crime.

A Defensoria Pública tem essa função precípua, questionar o que ninguém mais faria, em favor de pessoas praticamente invisíveis em nossa sociedade. As vidas importam mais que os números.

Brasília, 23 de julho de 2015

 

 

 

Lista de HCs e RHCs da DPU julgados pelo STF no 1º sem. de 2015

Segue abaixo tabela com a lista de Habeas Corpus e Recursos Ordinários em Habeas Corpus impetrados pela DPU, julgados colegiadamente pela 2ª Turma do STF durante o 1º semestre de 2015.

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Tabela de HCs e RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º semestre de 2015
Número do processo Ministro Relator Resultado Data do Julgamento Tema
HC 124503 Gilmar Mendes Concedido de ofício 03/02/2015 Gravidade em abstrato do crime e dosimetria da pena
HC 125528 Teori Zavascki Negado seguimento 10/02/2015 Prisão cautelar e fundamentação
RHC 125112 Gilmar Mendes Provido o RHC 10/02/2015 Abandono de posto e consunção
HC 123211 Gilmar Mendes Denegado 24/02/2015 Prisão cautelar e fundamentação
HC 124035 Gilmar Mendes Denegado 24/02/2015 Prisão cautelar e fundamentação
RHC 126336 Teori Zavascki Negado provimento ao RHC 24/02/2015 Dosimetria de pena em crime de furto
HC 126592 Cármen Lúcia Concedido 24/02/2015 Rádio comunitária e princípio da insignificância
RHC 123085 Gilmar Mendes Negado provimento ao RHC 03/03/2015 Prisão cautelar e fundamentação
RHC 123894 Gilmar Mendes Negado provimento ao RHC 03/03/2015 Nulidade e vedação da reformatio in pejus
HC 103310 Teori Zavascki Concedido 03/03/2015 Vedação da reformatio in pejus
HC 124489 Teori Zavascki Concedido 10/03/2015 Substituição de pena privativa de liberdade
HC 125433 Gilmar Mendes Denegado 10/03/2015 Homicídio e qualificadora

 

HC 126385 Gilmar Mendes Concedido de ofício 10/03/2015

 

Regime de pena e fixação adequada
HC 126476 Gilmar Mendes Denegado 10/03/2015

 

Recurso e tempestividade
HC 126315 Gilmar Mendes Em julgamento –  pedido de vista 17/03/2015 Maus antecedentes e período depurador
HC 122268 Dias Toffoli Denegado 24/03/2015

 

Descaminho e constituição do crédito tributário
HC 125781 Dias Toffoli Concedido em parte 24/03/2015 Dosimetria de pena em tráfico e regime inicial
HC 125991 Dias Toffoli Denegado 24/03/2015

 

Dosimetria de pena em tráfico de drogas
HC 126242 Dias Toffoli Não conhecido 24/03/2015

 

Dosimetria de pena em tráfico de drogas
HC 125603 Gilmar Mendes Denegado 24/03/2015

 

Dano e insignificância
RHC 120598 Gilmar Mendes Negado provimento ao RHC 24/03/2015 Nulidade em julgamento de crime de Tribunal do Júri
HC 124022 Teori Zavascki Concedido em parte 24/03/2015 Aplicação de minorante no crime de tráfico de drogas
RHC 126919 Dias Toffoli Negado provimento ao RHC 07/04/2015 Falta grave na execução penal e ampla defesa
HC 126963 Teori Zavascki Denegado 07/04/2015

 

Posse de droga por militar
RHC 126763 Dias Toffoli Em julgamento – pedido de vista 14/04/2015 Vedação da reformatio in pejus
HC 127043 Gilmar Mendes Denegado 14/04/2015

 

Prisão cautelar e fundamentação
HC 126520 Teori Zavascki Denegado 05/05/2015

 

Termo de deserção e instrução provisória
RHC 127382 Teori Zavascki Provido em parte o RHC 05/05/2015 Circunstância agravante e dosimetria da pena
HC 126273 Teori Zavascki Negado seguimento 12/05/2015 Insignificância no furto e reiteração delitiva
HC 126523 Teori Zavascki Negado seguimento 12/05/2015 Insignificância no furto e reiteração delitiva
HC 126618 Teori Zavascki Negado seguimento 12/05/2015 Insignificância no furto e reiteração delitiva
HC 126055 Dias Toffoli Denegado 12/05/2015

 

Dosimetria de pena no tráfico de drogas
RHC 127254 Dias Toffoli Negado provimento ao Recurso 12/05/2015 Dosimetria de pena no tráfico de drogas
HC 125589 Celso de Mello Denegado 19/05/2015

 

Regime de pena e circunstância judiciais
HC 123698 Cármem Lúcia Em julgamento – pedido de vista 16/09/2014

26/05/2015

Sursis e concessão de indulto
HC 123827 Teori Zavascki Em julgamento –  pedido de vista 26/05/2015 Sursis e concessão de indulto
HC 123828 Teori Zavascki Em julgamento -pedido de vista 26/05/2015 Sursis e concessão de indulto
HC 123973 Teori Zavascki Em julgamento –  pedido de vista 26/05/2015 Sursis e concessão de indulto
HC 127248 Gilmar Mendes Denegado 19/05/2015

 

Prisão cautelar e fundamentação
HC 127795 Dias Toffoli Negado seguimento 26/05/2015 Insignificância no furto e reiteração delitiva
RHC 126507 Dias Toffoli Negado seguimento 26/05/2015 Competência e supressão de instância
HC 126779 Gilmar Mendes Concedido parcialmente 02/06/2015

 

Vedação do bis in idem na dosimetria do tráfico
HC 123857 Celso de Mello Denegado 02/06/2015

 

Prisão cautelar e novo título prisional
HC 127728 Teori Zavascki Negado seguimento 23/06/2015 Dosimetria de pena no tráfico de drogas
HC 127158 Dias Toffoli Denegado 23/06/2015

 

Dosimetria de pena e continuidade delitiva
HC 125270 Teori Zavascki Concedido 23/06/2015

 

Intimação pessoal da DPU e remessa dos autos
HC 112530 Teori Zavascki Concedido 30/06/2015

 

Correição parcial e cabimento
HC 120580 Teori Zavascki Concedido 30/06/2015

 

Dano e insignificância
HC 126202 Teori Zavascki Concedido em parte 30/06/2015 Dosimetria de pena em roubo
RHC 125435 Teori Zavascki Concedido em parte 30/06/2015 Aplicação de minorante no crime de tráfico de drogas
RHC 127657 Cármen Lúcia Negado seguimento 30/06/2015 Prisão cautelar, fundamentação e prazo
HC 125586 Dias Toffoli Concedido 24/03/2015

30/06/2015

Dosimetria, antecedentes e período depurador

 

 Deferidos total, parcialmente ou de ofício: 16

Julgamentos interrompidos por pedido de vista: 6

Indeferidos: 30

Total dos HCs/RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º sem. de 2015: 52

 

 Gustavo de Almeida Ribeiro

Defensor Público Federal

 

Liellen Santana da Cruz Telhado

Estagiária acadêmica

 

Giulyanna Dias de Oliveira

Estagiária acadêmica


Direito de intervir

Direito de intervir

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Comentário rápido que costumo fazer com amigos a respeito das sustentações orais: trocaria parte do meu tempo de tribuna, 15 minutos, na maioria das situações, pelo direito de tecer comentários em breves segundos após os votos dos Ministros ou a manifestação do Procurador da República.

Claro, após a sustentação, é possível rápida intervenção para esclarecimento de matéria fática, mas não é disso que se trata.

Já ouvi, após proferir sustentação oral perante o STF, algumas considerações invocando questões jurídicas – legislação ou jurisprudência – equivocadas, situação que acho normal, vez que ser humano algum sabe todo o ordenamento jurídico de seu país de cor. No entanto, seria consentâneo com a ampla defesa que certos comentários que não encontram esteio na jurisprudência tal como invocada ou na legislação pudessem ser indicados da tribuna.

Poderia citar alguns exemplos de que me lembro bem, mas ficarei com o último que ouvi. Certo Ministro falou sobre a aplicação de sursis em crime grave. Ora, não cabe sursis em crime grave, pelo que, como o antecedente não existe, menos ainda a consequência a que ele queria chegar como conclusão.

Nenhum dos demais Ministros falou nada a esse respeito e eu fiquei com a língua coçando, mas sabia que intervenção minha naquele momento, além de ser mal vista por todos, não mudaria o voto desfavorável.

Em outra vez, quando um Relator invocou jurisprudência já alterada, não resisti e apontei tal situação. Embora tenha sido informado de que só poderia falar dos fatos, usei a única frase que tinha antes de ser interrompido para simplesmente dizer que a jurisprudência tinha mudado. Deu certo. Um dos outros Ministros ouviu, pediu vista, juntei memoriais com a jurisprudência mais recente e o habeas corpus foi concedido. Confesso, entretanto, que dei sorte, pois se tal Ministro não estivesse prestando atenção, minha única frase antes de ouvir “Doutor, questão de direito, não pode” teria caído no vazio.

Por isso, trocaria, de bom grado, 5 minutos dos meus 15 de sustentação oral por 1 minuto para breves considerações sobre questões trazidas nos votos que, por vezes, destoam da legislação e da jurisprudência.

Quem sabe um dia seja assim!

Brasília, 10 de julho de 2015

Breve resumo

Breve resumo

Gustavo de Almeida Ribeiro

Há aproximadamente um mês e meio fiz um resumo dos principais temas em Direito Penal e Processual Penal levados pela DPU ao STF.

Publico-o agora em meu blog para ajudar quem tem interesse na carreira de Defensor Público.

Brasília, 6 de julho de 2015

 

Matérias mais frequentes no STF decorrentes do trabalho da DPU

 

Insignificância – aspectos gerais

furto – (HC 114723, TZ, 2ªT) – matéria decidida caso a caso, mas cada vez vista de forma mais restritiva

questão da reiteração e do furto qualificado pendentes de apreciação pelo Plenário do STF (HCs 123734 e 123108, RB, julgamento iniciado)

descaminho – diferenciar do contrabando e limite de R$ 20.000,00 no STF (no STJ o limite é R$ 10.000,00) (descaminho HC 126191, DT, 1ªT, favorável – contrabando HC 122029, RL 2ªT, denegado) – a questão da comprovação dos valores subtraídos aos cofres públicos ainda gera controvérsia

uso de droga por militar (HC 103684, AB, Plenário, denegado) – pacificado

contra o meio ambiente (HC 112563, RL>CP, 2ªT, favorável) – RHC 125566, DT, 2ªT, entra e sai da pauta: indício de tema polêmico

contra a administração (HC 107638, CL, 1ªT, favorável) – admitido, mas de forma excepcional – curioso observar que o citado precedente teve como paciente militar

moeda falsa (HC 111266, RL 2ª, denegado) pacificado no sentido no não cabimento da insignificância no crime de moeda falsa

Liberdade provisória

falta de fundamentação (HC 125827, RW, 1ªT; HC 114932, MA, 1ºT; HC 112487, CM, 2ªT – prisão e deserção) – matéria decidida caso a caso – enfrentamos algumas dificuldades decorrentes da condição econômica e/ou da nacionalidade dos nossos assistidos

Tráfico

liberdade provisória (RHC 123871, RW, 1ªT; HC 110844, AB, 2ªT, ambos favoráveis) pacificada a possibilidade, segundo precedente do Plenário do STF, HC 104339, GM

substituição de pena (HC 97256, AB, Plenário, concedido) pacificada a possibilidade

regime inicial mais brando que o fechado em crimes hediondos (HC 111840, DT, Plenário, DPE/ES) pacificada a possibilidade

causas de aumento e diminuição:

  1. transporte público (HC 120624, CL>RL, 2ªT, concedido) pacificado que o mero uso não configura a causa de aumento;
  2. redutora do §4º do artigo 33 (HC 123534, CL, 2ªT, concedido) decidido caso a caso, mas com boa aceitação no STF quando não há fundamentação adequada para afastá-la;
  3. dupla utilização da quantidade de droga em duas fases da dosimetria para aumentar a pena (HC 112776, TZ, Plenário, parcialmente concedido) – tema pacificado no sentido de se vedar a dupla invocação da quantidade de droga, que, entretanto, pode ser utilizada na primeira ou terceira fase da dosagem da pena
  4. internacionalidade e interestadualidade (HC 115893, RL, 2ªT, denegado) matéria bastante pacificada no sentido de se dispensar a ultrapassagem do limite do Estado/País para a configuração da causa de aumento (há um caso pendente de julgamento na 1ªT, HC 122791, vista ao Min. Luiz Fux)
  5. como regra, mula não é integrante de organização criminosa (HC 124107, DT, 1ªT, favorável) – também situação a se verificar caso a caso, mas prevalece o entendimento de que não integra – alguns elementos fáticos, entretanto, podem indicar o contrário (incontáveis carimbos de entrada em diversos países em passaportes de quem se declara pobre, por exemplo).

 Dosimetria de pena e discussão na via do habeas corpus

admitida a discussão, mas em caso de flagrante excesso na fixação da pena (RHC 122469, CM, 2ªT)

Reformatio in pejus – questão atual

enfrentamento da reformatio in pejus (HC 103310, TZ>GM, 2ªT, HC 123251, GM, 2ªT, favoráveis; contrário RHC 123115, GM, 2ªT questão da fundamentação da constrição cautelar não invocada expressamente na sentença, mas supostamente constante da decisão e utilizada pelo Tribunal em recurso exclusivo da defesa)

Estelionato previdenciário

instantâneo para o servidor do INSS, permanente para recebedor do benefício (RHC 107209, DT, 1ªT) tema pacificado

Possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal com a aplicação de circunstância atenuante

 tema pacificado no STF contrariamente ao entendimento da Defensoria para se vedar a aplicação da atenuante caso a pena-base já esteja fixada no mínimo legal (RE 597270, CP, Plenário) – pessoalmente, não me lembro de sequer um voto favorável em qualquer dos nossos incontáveis feitos sobre o tema

Perda de objeto do habeas corpus pela superveniência de nova decisão penal capaz de gerar novo título prisional

 caso a nova decisão não traga fundamento diverso para justificar a prisão cautelar, o habeas corpus não resta prejudicado (HC 119183, TZ, 2ªT, favorável; HC 104954, MA>RW, 1ªT, desfavorável) – como regra, prevalece o prejuízo do habeas corpus com a superveniência de novo título, entretanto, a 2ª Turma por vezes afasta tal entendimento quando a decisão posterior não invoca nenhum fundamento novo para justificar a constrição cautelar

Penal militar*

a. insignificância (HC 107638, CL, 1ªT – peculato-furto, favorável) cada vez menos aceito em favor do militar em qualquer crime

b. competência

b1.carteira de aquaviário(CIR) – a insistência do STM gerou a SV 36 quanto à competência da Justiça Federal comum para julgar a falsificação de carteira de aquaviário

b2. estelionato/furto entre colegas fora de serviço (RHC 123660, CL, 2ªT) prevalece a incompetência da Justiça Militar

b3. falsificação de documentos atinentes às Forças Armadas para a obtenção de empréstimos junto a instituições bancárias (HC 110038, MA, 1ªT, favorável; HC 110249, TZ, 2ªT, desfavorável – o mais bizarro deste caso: um dos pacientes dos dois habeas corpus é o mesmo) – em meu entender, clara insegurança jurídica

b4. competência para julgar civis quando os militares estão em atividade de policiamento (HC 112936, CM, 2ªT, favorável; HC 113128, RB, 1ªT, contrário) – matéria afetada ao Plenário HC 112848, RL

interrogatório ao final da instrução – essa matéria precisa ser novamente afetada ao Plenário do STF por completa divergência das Turmas (HC 121907, DT, 1ªT, favorável; HC 122673, CL, 2ª Turma, desfavorável) – o Min. Dias Toffoli removeu-se para a 2ª Turma recentemente levando seu entendimento favorável à tese, vide liminar concedida no HC 127900 – atualização: o HC 123228 inicialmente afetado ao Pleno do STF sobre o tema continha uma questão processual prejudicial que impediu a análise do mérito da questão

* certamente é a matéria que mais gera insegurança jurídica

Nulidades

 exigência de prova de prejuízo que praticamente torna impossível o reconhecimento de nulidade (vide, nesse sentido, RHC 106461, GM, 2ªT) – o Ministro Marco Aurélio, isoladamente, tem entendimento mais favorável sobre o tema, reconhecendo configurado o prejuízo quando há falhas no curso do processo e sobrevém condenação (vide voto vencido proferido no HC 98434, CL, 1ªT)

Maus antecedentes e inquéritos e ações penais em andamento

 matéria consolidada no RE 591054, com repercussão geral reconhecida, no sentido de se afastar a consideração de inquéritos e ações penais em andamento como maus antecedentes. Participação da DPU no julgamento do RE na condição de amicus curiae

Limitação de 5 anos como período depurador para a consideração de maus antecedentes

 a jurisprudência do STF parece caminhar para a consolidação no sentido de que passados 5 anos do cumprimento ou extinção da pena, a condenação anterior não mais pode ser invocada como maus antecedentes (HC 119200, DT, 1ªT) – em julgamento o HC 126315, relator Min. Gilmar Mendes, 2ª T, com 2 votos favoráveis, dele e do Ministro Dias Toffoli e pedido de vista da Min. Cármen Lúcia – o Min. Celso de Mello proferiu decisão monocrática recentemente acolhendo a tese (HC 123189)

Compensação da atenuante confissão com a agravante reincidência

 embora exista um precedente isolado do Min. Ayres Britto acatando a tese (HC 101909, AB, 2ªT), hoje é completamente pacifico no STF que a reincidência prepondera (HC 105543, RB, 1ªT; HC 112774, RL, 2ªT, ambos desfavoráveis)

situação pouco comum em que o STJ tem entendimento mais favorável que o STF: EREsp 1.154.752 e REsp 1.341.370

Cabimento de habeas corpus 

a. as duas Turmas do STF atualmente restringem a aceitação do habeas corpus voltado contra decisão monocrática de Tribunal Superior (HC 119943, DT, 1ªT; HC 119115, RL, 2ªT) – salvo, claro, situações de flagrante ilegalidade

b. a 1ª Turma do STF exige a interposição de recurso ordinário em habeas corpus contra decisão em habeas corpus, refutando o HC substitutivo (HC 114512, RW, 1ªT) – a 2ª Turma, como regra, é menos rigorosa quanto a isso

c. para a 1ª Turma, contra acórdão em recurso ordinário em habeas corpus só caberia recurso extraordinário e não HC originário (HC 119927, LF, 1ªT) – aqui também, como regra, a 2ª Turma é menos rigorosa

em nosso favor, contrários à exigência da interposição de recurso ordinário: HC 111074, CM, 2ªT; 110270, GM, 2ªT e contra a exigência do recurso extraordinário: RHC 117138, RL, 2ªT

 

Um mínimo de sensibilidade

Um mínimo de sensibilidade

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Já compartilhei com colegas e amigos, por inúmeros meios, incontáveis julgamentos de habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública da União em que se discutia a aplicação do princípio da insignificância em favor de pessoas acusadas de furtos de itens de ínfimo valor, como espigas de milho, sucata, gêneros alimentícios, peças de roupa.

Há quem discorde da aplicação do instituto, quem diga que ele é um estímulo à criminalidade, em suma, discursos que veem no delito de bagatela um crime como outro qualquer e, portanto, passível de condenação penal.

Certamente influenciado pela minha condição de Defensor Público Federal, não vejo na condenação e no encarceramento de acusados da prática de pequenos furtos qualquer vantagem para a sociedade brasileira, mesmo que pudéssemos – e não podemos – por um instante, olvidar dos direitos do próprio réu.

Mas o excesso punitivo que devasta determinada parcela da população parece não ter limite.

Foi julgado, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 30 de junho de 2015, o HC 120580, impetrado pela DPU, e trazido até Brasília pela atuação da Defensoria Pública Estadual de Minas Gerais. Buscava-se a anulação de condenação imposta ao paciente pela suposta prática de dano qualificado, por ter ele supostamente quebrado a lâmina de vidro de uma porta de um posto de saúde com um pontapé.

O caso merece ser detalhado.

O paciente da impetração citada acima foi acusado da prática de dano por ter, supostamente, chutado a porta de vidro de um centro de saúde em Belo Horizonte/MG. Foi absolvido pelo Douto Juízo de Primeiro Grau. O Ministério Público aviou recurso, provido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A defesa interpôs recurso especial, não admitido, e, em seguida, agravo. O apelo especial teve seu seguimento negado em decisão monocrática lavrada pela Ministra Relatora no Superior Tribunal de Justiça, posteriormente confirmada por sua Quinta Turma, em julgamento de agravo regimental. Segundo a Corte Superior “(…) a conduta praticada pelo Agravante possui expressividade jurídica, na medida em que atenta contra serviço essencial à comunidade, qual seja, a assistência pública à saúde.”

Foi impetrado, em seguida, habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, postulando-se a aplicação do princípio da insignificância. Reitera-se, o alegado dano foi ínfimo, em nada prejudicando o atendimento no posto de saúde.

Mais que palavras minhas, cumpre invocar o parecer da Procuradoria-Geral da República, lavrado pela Subprocuradora-Geral Deborah Duprat, disponível no sítio eletrônico do STF, sem a necessidade de qualquer espécie de senha ou assinatura digital para seu acesso:

“Pois bem, a sentença consigna que o réu, insatisfeito por esperar cerca de 8 horas por atendimento de serviço de saúde, desferiu um chute contra a porta do centro de saúde municipal, o que levou ao fragmento de parte de sua lâmina de vidro. Também registra o péssimo estado da porta.

 As circunstâncias que cercam o caso permitem concluir pela sua irrelevância penal. A conduta do agente, se não justificada, ao menos absolutamente compreensível: a espera tão longa por atendimento em situação de doença e/ou dor pode levar muitos de nós ao desespero.

 De mais a mais, chega a ser possível afirmar a ausência de dolo, diante da informação da sentença sobre o estado da porta. O dano, ao que tudo indica, foi muito mais resultado deste do que propriamente da conduta do agente – um chute, e nada mais.

 Ainda que de aplicação excepcional, a hipótese é típica de incidência do princípio da insignificância, razão por que o parecer é pela concessão da ordem.”

Nem se pode dizer, como se faz muitas vezes quando a Defensoria pede a aplicação do princípio da insignificância em favor de acusados de furto ou descaminho, que o increpado escolheu a maneira mais fácil, a via mais rápida para a obtenção de bens. A conduta imputada ao paciente do habeas corpus em tela decorre principalmente da precariedade dos serviços de saúde pública, situação amplamente divulgada em todos os meios de comunicação diuturnamente.

Em resumo, o cidadão carente paga, no país, inúmeras vezes pela mesma exclusão: arca com incontáveis e elevados tributos diretos e indiretos em tudo o que consome e faz, recebe serviços públicos que baixa qualidade – por razões diversas, mas que decorrem da subversão do valor maior da supremacia do interesse público, e, por fim, quando se irrita e se desespera em situação em que sua saúde está debilitada, enfrenta a severidade penal sempre mais implacável contra os mais pobres.

Para os arautos do rigor, que logo gritarão que as mazelas do sistema de saúde pátrio não dão ao cidadão o direito de se rebelar e chutar uma porta, indago se a mesma inflexibilidade por eles pregada volta-se também contra os administradores em geral que, no trato da coisa pública, subvertem completamente as prioridades. Questiono também se a única solução que eles têm para todos os problemas do Brasil é a penal, resposta que, aliás, me parece cada vez mais evidente. Nem se diga que o paciente responde a um processo por furto, vez que as condutas em nada guardam relação.

Não consigo deixar de me perguntar se o membro do Ministério Público que recorreu da decisão absolutória de Primeiro Grau acha mesmo que a obtenção da condenação do paciente do citado habeas corpus traz algum benefício, ínfimo que seja à sociedade, lançando mácula em uma pessoa que se irritou em um momento de extrema fragilidade. A mesma indagação deve ser formulada ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais que proveu o recurso para impor condenação, bem como ao Superior Tribunal de Justiça, que manteve incólume a decisão anterior.

Foi necessário que o feito chegasse ao STF para que restasse restaurada a decisão primeva, com o apoio da Procuradoria-Geral da República, pela absolvição do paciente.

Poderia falar dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mas irei mais longe. Os concursos públicos que selecionam os membros das mais diversas carreiras jurídicas são cada vez mais difíceis e exigentes, indiscutivelmente. Lamento que sensibilidade com a miserável e frágil condição humana não seja mensurável e, ainda que fosse, muitas vezes sequer seria exigida nessas provas. Já afirmei isso antes, mas sempre impressionado com as obras que li de Victor Hugo, escritor francês nascido no início do século XIX, mas que parece viver no Brasil do século XXI, repito: Javert ficaria perplexo com certas coisas que acontecem por aqui.

Brasília, 3 de julho de 2015