Extradição e Lei de Migração – contenciosidade limitada
Gustavo de Almeida Ribeiro
Uma reflexão interessante foi trazida pelo colega Gustavo Zortéa, integrante do grupo que atua pela DPU perante o STF: a recente Lei de Migração trouxe mitigação ao sistema de contenciosidade limitada da extradição?
Explico. Vigora nas extradições o entendimento no sentido de que o Supremo Tribunal Federal não ingressa na análise do caso em concreto para deferir ou não a entrega do requerido, apenas verificando se estão preenchidos requisitos previstos na Constituição, na Lei e no Tratado aplicável, como dupla tipicidade, não ter ocorrido a prescrição, segundo a lei mais favorável, a do Brasil ou a do Estado requerente, entre outros. Ou seja, o caso em si não é apreciado: se a pena foi alta ou não, se havia prova, se houve prisão processual indevida no país de origem, se o crime foi mais ou menos grave, são questões que não entram na discussão do pedido. Calha transcrever ementa que exemplifica o entendimento pacificado do STF:
“EXTRADIÇÃO INSTRUTÓRIA. DUPLA TIPICIDADE. DUPLA PUNIBILIDADE. PRINCÍPIO DA CONTENCIOSIDADE LIMITADA. PRESENÇA DOS DEMAIS REQUISITOS. LEI DE MIGRAÇÃO. TRATADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE BRASIL E ARGENTINA. ACORDO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS PARTES DO MERCOSUL. DEFERIMENTO CONDICIONADO À ASSUNÇÃO DE COMPROMISSOS PELO ESTADO REQUERENTE. 1. Presentes a dupla tipicidade e punibilidade, bem como os demais requisitos previstos na Lei de Migração, no Tratado de Extradição entre Brasil e Argentina e no Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul, não se verifica óbice ao deferimento da extradição. 2. Ao Supremo Tribunal Federal não é dado analisar o mérito da acusação ou condenação em que se funda o pedido de extradição, exceto se constituir requisito previsto na Lei 13.445/2017 ou no acordo de extradição, em razão da adoção pelo ordenamento jurídico pátrio do princípio da contenciosidade limitada. 3. A simples alegação de que a extradição importará risco à vida do extraditando não se presta a obstar o acolhimento do pedido, mormente pela inexistência de comprovação idônea de causa excepcional que legitime a recusa, bem como pelo fato de que a garantia da segurança do extraditando em seu território incumbe ao Estado requerente. 4. Pedido de extradição deferido e condicionado à assunção prévia pelo Estado requerente dos compromissos previstos no art. 96 da Lei 13.445/2017, dentre eles o de detração da pena e o de comutação da pena perpétua em privativa de liberdade, respeitado o patamar máximo de 30 (trinta) anos.” (Ext 1460, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-082 DIVULG 26-04-2018 PUBLIC 27-04-2018)
Todavia, a Lei de Migração (Lei 13.445/2017) trouxe, em seu artigo 86, aspecto que pode significar mitigação ao princípio da contenciosidade limitada, ao determinar que, para a concessão de prisão domiciliar ou se permitir que o extraditando responda ao processo em liberdade, devem ser verificadas as circunstâncias do caso:
“Art. 86. O Supremo Tribunal Federal, ouvido o Ministério Público, poderá autorizar prisão albergue ou domiciliar ou determinar que o extraditando responda ao processo de extradição em liberdade, com retenção do documento de viagem ou outras medidas cautelares necessárias, até o julgamento da extradição ou a entrega do extraditando, se pertinente, considerando a situação administrativa migratória, os antecedentes do extraditando e as circunstâncias do caso.” (grifo nosso)
Ora, como o requerido pode não ter processo nenhum em trâmite perante a Justiça brasileira, o caso que terá suas circunstâncias analisadas só pode ser aquele que gerou o pedido de extradição.
Aliás, a Lei de Migração, ao permitir expressamente a concessão de liberdade ao extraditando, mostra-se consentânea com a excepcionalidade da prisão cautelar, afastando entendimento anterior no sentido de ser obrigatória a prisão para extradição como condição de procedibilidade.
Não há sentido, por exemplo, em se manter presa pessoa acusada da prática de estelionato, crime praticado sem violência ou ameaça, que, muitas vezes, é punido no Brasil com penas restritivas de direito, a não ser que existam circunstâncias especiais que justifiquem o recolhimento cautelar, tal como previsto na norma atual.
Essa questão recente foi objeto de despacho feito pelo mencionado colega com o Ministro Alexandre de Moraes na Ext. 1535[1], sendo, em tal caso, deferida a liberdade à extraditanda, pelo que é pertinente transcrever trecho da decisão:
“As circunstâncias concretas do caso, notadamente tratar-se, em tese, de crime com pena máxima de dois anos de detenção (CP, art. 249); bem como os filhos menores terem regressado ao país de origem, sem qualquer notícia de maus-tratos enquanto estiveram com a mãe, autorizam, nos termos do art. 86 da Lei 13.445/17, que a extraditanda responda ao processo de extradição em liberdade.” (STF, Ext. 1535, Relator Min. Alexandre de Moraes, DJe 25/05/2018)
Assim, embora ainda vigore a contenciosidade limitada em se tratando de extradição, os Ministros do STF deverão analisar se o fato que dá ensejo ao pedido justifica ou não a imposição de prisão, o que não deixa de ser uma análise, ainda que pouco aprofundada, do caso em concreto, antes não prevista em lei.
Brasília, 5 de junho de 2018
[1] https://g1.globo.com/pa/para/noticia/dinamarquesa-detida-no-para-deve-recorrer-contra-pedido-de-extradicao.ghtml