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Coleta e produção de provas pelo juízo

Coleta e produção de provas pelo juízo

 

Comentei durante a semana o caso em que um juiz fez pesquisa sobre a vida de um acusado e juntou a documentação obtida aos autos sem, sequer, dar oportunidade às partes de se manifestarem sobre o material.

O tema gerou bastante interesse.

Colocarei no corpo do texto as alegações do agravo regimental interposto em face da decisão monocrática da Ministra Rosa Weber que negou seguimento ao habeas corpus (HC 157560/STF).

Em anexo, para consulta, disponibilizarei a mencionada decisão monocrática e o parecer da Procuradoria Regional da República da 4ª Região.

Brasília, 30 de janeiro de 2021

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

DAS RAZÕES RECURSAIS 

O presente agravo volta-se contra a r. decisão monocrática que negou seguimento ao habeas corpus, sob o fundamento de que inexistiria flagrante ilegalidade passível de correção, pois as provas coletadas de ofício pelo Juízo sentenciante não teriam sido utilizadas para apoiar o decreto condenatório.

Transcreve-se, abaixo, a ementa da r. decisão agravada:

“Habeas corpus. Crime de uso de documento falso. Condenação penal com trânsito em julgado. Não se conhece, em regra, de writ utilizado como sucedâneo de recurso ou de revisão criminal. Precedentes. Provas produzidas de ofício pelo magistrado sentenciante. Violação ao princípio do contraditório. Inocorrência. Elementos não utilizados para a formulação do juízo condenatório. Ausência de prejuízo. Princípio pas de nullité sans grief. Negativa de seguimento.” (grifo nosso)

Inicialmente, calha destacar aspecto incontroverso do caso em exame: o magistrado sentenciante, por iniciativa própria, realizou longa pesquisa a respeito do acusado, acostando farta documentação aos autos quando da prolação da sentença, sem dar às partes oportunidade de manifestação sobre o material por ele juntado.

A conduta do julgador, inequivocamente, ofendeu o sistema acusatório, o contraditório e a imparcialidade, conforme será amplamente demonstrado a seguir.

A sentença foi lançada no evento 211 do sistema da JFPR. Só de documentos, foram acostados pelo Magistrado sentenciante, além da sentença, 116 (cento e dezesseis) páginas. Nada pode indicar mais atividade investigativa e persecutória que isso.

Ninguém busca provas por mero acaso ou diletantismo. Busca com objetivo, com intenção, pelo que a imparcialidade já se mostra, da parte de quem tomou tal atitude, completamente abandonada.

Pior ainda, os documentos encontrados pelo Magistrado sequer foram submetidos à defesa para que sobre eles se manifestasse, pelo que o contraditório foi completamente vilipendiado.

 Processo penal não é vale tudo em busca da condenação e da prisão. Não cabe ao Magistrado substituir o Ministério Público e buscar dados que justifiquem a prisão ou a condenação do acusado. O absurdo é flagrante. As mudanças implementadas no Código de Processo Penal Brasileiro, desde a promulgação da Constituição de 1988, são todas no sentido de se afastar do sistema inquisitório em direção ao sistema acusatório, mais consentâneo com a imparcialidade do julgador e, portanto, com um processo mais justo e equilibrado.

 Não há controvérsia a respeito da conduta do Magistrado de Primeiro Grau. A discussão cinge-se a se sua busca por elementos desfavoráveis ao acusado deve gerar nulidade. Com a devida licença, é completamente inverossímil que alguém que tome tal atitude seja imparcial, não tenha objetivo claro. Não são esses o papel e a postura que se espera de um julgador.

Há mais. Reforça essa intenção o fato de que os documentos buscados sequer terem sido submetidos à defesa. O juízo produziu provas e julgou em seguida, sem ouvir ninguém.

 O Julgador, ao se utilizar de documentos coletados de ofício para embasar sua decisão (tanto pela condenação como pela prisão preventiva do recorrente), feriu claramente o artigo 155 do Código de Processo Penal, conforme se constata da simples leitura do dispositivo:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.   

In casu, o juízo sentenciante procedeu à busca acerca da vida pregressa do acusado, mediante pesquisa a internet, utilizando para tanto palavras chaves como o nome do réu e de sua empresa, além de termos relacionados à licitação.

Não é preciso acreditar nas palavras da defesa para se chegar à conclusão de que a condenação deve ser anulada. Para tanto, basta a leitura do voto condutor da apelação na Corte Regional:

“Conforme já ressaltado, as provas coletadas unilateralmente pelo Juízo tinham como objetivo estancar suspeita de reiteração criminosa, elementos estes que foram utilizados essencialmente para fundamentar o decreto de prisão preventiva, constrição que restou mitigada pela concessão da ordem em habeas corpus.

Em que pese efetivamente haja referência em outros pontos da sentença acerca dos elementos coletados de ofício pelo juízo, especialmente nos tópicos referentes à capitulação e autoria delitiva, constata-se que foram utilizados em caráter meramente acessório aos demais elementos de prova já existentes nos autos, não se revestindo de dados principais a amparar a convicção do magistrado, razão pela qual não vislumbro elementos suficientes a configurar qualquer invalidade do decreto condenatório.” (grifo nosso)

O trecho acima, com a devida licença, é reconhecimento expresso de que o juiz se utilizou das provas por ele coletadas para condenar, além de decidir sobre a prisão preventiva, o que, frise-se, já seria grave o bastante.

Portanto, ao contrário do afirmado pela r. decisão agravada, o julgador usou o material coletado para aspectos relacionados à autoria delitiva, repisa-se:

“(…)efetivamente haja referência em outros pontos da sentença acerca dos elementos coletados de ofício pelo juízo, especialmente nos tópicos referentes à capitulação e autoria delitiva(…)

Ou seja, os elementos coletados de ofício foram usados para aspectos relacionados à autoria delitiva. A prova de prejuízo salta aos olhos.

Ademais, além de analisar provas produzidas de ofício, o Juízo sentenciante juntou tais provas em sentença sem que tenha concedido vista às partes. Em suma, procurou prova e sequer às submeteu às partes do processo. São erros graves, em sequência, que devem ser punidos com a nulidade.

O parecer exarado pela Procuradoria Regional da República também deixou clara a situação de nulidade encontrada nos autos, conforme se constata da leitura da ementa:

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. DOCUMENTOS JUNTADOS DE OFÍCIO POR OCASIÃO DA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE SUBMISSÃO AO CONTRADITÓRIO. NULIDADE.

  1. Tendo em vista que a sentença condenatória se utiliza, em prejuízo ao acusado, de provas não submetidas ao contraditório, a decisão deve ser anulada.
  2. O juiz que realiza, de ofício, investigação paralela para sustentar sentença condenatória, assume protagonismo persecutório incompatível com a necessária imparcialidade de julgador.

PARECER PELO PROVIMENTO PARCIAL DA APELAÇÃO, PARA ANULAR A SENTENÇA CONDENATÓRIA.” (grifado no original)

 Sobre a suposta utilização do habeas corpus como revisão criminal, a gravidade do caso fala por si. O julgador buscou provas e as utilizou sem, sequer, ouvir as partes. A situação merecia até mesmo revisão de ofício.

Assim, deve ser provido o agravo, com a consequente concessão da ordem do habeas corpus, anulando a sentença proferida pela violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do juiz imparcial.

Parecer MPF

Decisão monocrática HC 157560

Reavaliação de provas em Habeas Corpus

Reavaliação de provas em Habeas Corpus

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A Segunda Turma do STF iniciou hoje a apreciação do agravo interno no HC 152001. A ordem de habeas corpus havia sido denegada, em decisão monocrática, pelo Ministro Ricardo Lewandowski.

A discussão de mérito de habeas corpus é a possibilidade de aplicação da redutora prevista no §4º, do artigo 33, da Lei 11343/06.

A primeira e a segunda instância, como se verá no corpo do agravo abaixo colacionado, entenderam que o paciente do habeas corpus não integrava organização criminosa, fazendo jus à causa de diminuição de pena.

Por discordar de tal entendimento, o STJ proveu apelo especial ministerial, decotando a redutora.

Hoje, ao iniciar o julgamento do agravo, houve discussão sobre reavaliação de provas em sede de habeas corpus. Mas em sede de recurso especial tal reavaliação é permitida? Pior, permite-se mera ilação de que o acusado integrava organização criminosa contra manifestação expressa das instâncias ordinárias?

O Ministro Ricardo Lewandowski manteve seu voto pela denegação. Em seguida, os Ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin votaram pela concessão da ordem (ainda que de ofício). O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista da Ministra Cármen Lúcia.

Aguardemos.

O agravo segue abaixo.

Brasília, 19 de fevereiro de 2019

 

 

BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS

O Douto Julgador de primeiro grau condenou o agravante à pena privativa de 02 (dois) anos de reclusão, no regime inicial aberto, e ao pagamento de 200 (duzentos) dias-multa, por incursão no artigo 33, caput, combinado com o artigo 40, inciso I, ambos da Lei 11.343/2006. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direitos.

Em face da sentença, houve a interposição de recurso de apelação pela acusação. O TRF da 1.ª Região negou provimento a esse recurso, mediante acórdão assim ementado:

“PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS. ART. 33 C/C O ART. 40, I, DA LEI 11.343/06. DOSIMETRIA MANTIDA.

  1. Na fixação da pena-base para o crime de tráfico de drogas o juiz deve considerar, preponderantemente, sobre as circunstâncias do art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, além da personalidade e da conduta social do agente. No presente caso, considerando que somente a natureza – cocaína – e a quantidade – 4.055 g – da substância entorpecente apreendida em poder do réu foram consideradas desfavoráveis ao réu, correto o quantum fixado na sentença.
  2. A atenuante da confissão espontânea, por seu caráter objetivo, deve ser aplicada sempre que o réu, de maneira voluntária e sem ressalvas, confessa a prática delitiva, não importando as circunstâncias em que efetivada. Também deve incidir, como na hipótese, em que o interrogatório constituiu fundamento para a condenação.
  3. O acusado que preenche os requisitos do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 – ser primário, de bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas nem integrar organização criminosa – tem direito subjetivo à redução de pena prevista nesse dispositivo. O quantum da redução deve ser fixado pelo Juiz, observando-se as circunstâncias do crime e as condições pessoais do acusado que, na hipótese, justificam a redução pelo patamar máximo.
  4. As penas restritivas de direitos podem ser definidas pelo Juízo da Execução, a teor do que estabelecem os artigos 66, V a, e 180, ambos da Lei nº 7.210/84. Cabe ao Juízo da Execução, por sua maior proximidade com o réu, avaliar a real situação para o cumprimento da pena.
  5. Apelação não provida.” (grifo nosso)

Diante dessa decisão proferida em segundo grau, a acusação interpôs recurso especial, o qual não foi admitido na origem, seguido da interposição de agravo para alçar o feito à superior instância. No STJ, o Ministro Relator, por decisão monocrática, conheceu do agravo para dar provimento ao recurso especial. Houve, então, a interposição de agravo regimental defensivo, o qual teve provimento negado pela Sexta Turma daquele Tribunal Superior, mediante acórdão assim ementado:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA. IMPOSSIBILIDADE. DEDICAÇÃO À ATIVIDADE CRIMINOSA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

  1. As circunstâncias em que perpetrado o delito de tráfico transnacional de drogas – mais de 4 kg de cocaína trazidos da Bolívia, ocultados em um compartimento costurado dentro da bagagem do agente e transportados por meio de um táxi boliviano – não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica, com certa frequência e anterioridade, a atividades delituosas, no seio dos objetivos de uma organização criminosa, de maneira que não há como aplicar a causa especial de diminuição de pena descrita no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343⁄2006.
  2. Especificamente no caso dos autos, a conclusão pela impossibilidade de incidência da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas não demanda o revolvimento de matéria fático-probatória, procedimento, de fato, vedado em recurso especial. O caso em análise, diversamente, demanda apenas a revaloração de fatos incontroversos que já estão delineados nos autos e das provas que já foram devidamente colhidas ao longo de toda a instrução probatória, bem como a discussão, meramente jurídica, acerca da interpretação a ser dada ao art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343⁄2006. Não há falar, portanto, em incidência da Súmula n. 7 do STJ.
  3. Agravo regimental não provido.” (grifo nosso)

Impetrado habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal em face do acórdão prolatado pela Corte Superior, o Eminente Ministro Relator, em decisão monocrática, denegou a ordem.

No entanto, a decisão singular não merece prosperar, como será demonstrado a seguir.

 

DAS RAZÕES RECURSAIS

No entender do agravante, a decisão proferida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça é ilegal porque reexaminou fatos e provas para afastar as premissas assentadas pelas instâncias ordinárias para chegar a conclusões diferentes daquelas a que chegaram o primeiro e o segundo graus de jurisdição.

No caso dos autos, faz-se essencial o cotejo do quanto firmado pelas instâncias iniciais com a conclusão a que chegou o Egrégio STJ, para que reste inequívoca a realização de revolvimento fático em sede de apelo especial.

Não se trata aqui, calha frisar, de entendimento jurídico diferente em relação ao adotado na origem, mas verdadeiro reexame de fatos e provas. A diferenciação pode parecer tênue, mas nem por isso, deixa de ser constatável.

Com efeito, acerca da incidência da causa de diminuição prevista no artigo 33, §4.º, da Lei 11.343/2006, a sentença registrou as seguintes premissas:

[…] Considerando que o réu é primário, portador de bons antecedentes e não havendo provas de que ele se dedique à prática de atividades criminosas e de que faça parte de organização criminosa, e que ainda auxiliou na identificação de outra pessoa relacionada ao fato, reduzo a pena em 2/3 (dois terços), nos termos do § 4º, art. 33, da Lei 11.343/2006, alcançando-se a pena de 2 (dois) anos e 200 (duzentos) dias-multa. […] grifo nosso

Bem assim, o TRF da 1.ª Região fez constar na ementa do acórdão que o réu não se dedica às atividades criminosas. Além disso, consta do voto proferido pela Relatora do recurso de apelação a seguinte fundamentação:

[…] Também inexiste fundamento jurídico para excluir do cálculo da pena, a causa de diminuição prevista no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006. O réu preenche os requisitos legais, pois é primário, possui bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas, além de não haver prova nos autos de que seja integrante de organização criminosa.

O quantum de redução fixado – 2/3 (dois terços) – deve ser mantido, tendo em vista a plausibilidade do fundamento apresentado pelo Julgador a quo, no sentido de que, além da presença dos requisitos legais, o réu “ainda auxiliou na identificação de outra pessoa relacionada ao fato” (fl. 107v) […] grifo nosso

As conclusões do órgão julgador de segundo grau, portanto, são claras: o réu preenche todos os requisitos necessários para a aplicação da minorante prevista no § 4.º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 em seu grau máximo. E mais do que isso, colaborou com as autoridades para a identificação de outra pessoa relacionada ao fato.

Paradoxalmente, porém, o Ministro Relator do AREsp 1.062.014/MT, bem como os demais Ministros integrantes da Sexta Turma do STJ que participaram do julgamento do agravo regimental, desprezaram as premissas assentadas pelo Juiz Federal sentenciante e pelo TRF da 1ª Região.

A soberania dos órgãos julgadores de primeiro e segundo graus para a análise dos fatos e das provas foi afastada porque, ao sentir do Ministro Relator do AREsp 1.062.014/MT, no presente caso, as circunstâncias em que perpetrado o delito “não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica, com certa frequência e anterioridade, a atividades delituosas, no seio dos objetivos de uma organização criminosa”.

Nesse contexto, bem mais do que mera “revaloração de fatos incontroversos”, houve claríssimo revolvimento do material fático-probatório para alcançar conclusões diferentes daquelas assentadas pelas instâncias ordinárias. Houve, em verdade, ilação, no sentido de que, presentes certas circunstâncias, estará sempre configurada a organização criminosa.

Ademais, além de constituir violação à Súmula 7 do STJ, o argumento de que as circunstâncias do crime não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica a atividades delituosas no seio de uma organização criminosa não constitui mais do que uma suposição, uma mera possibilidade, que não enseja o juízo de certeza que é necessário para amparar o afastamento da minorante aplicada pelas instâncias ordinárias.

O acórdão ora impugnado, portanto, parece uma reafirmação, por via transversa e dissimulada, do velho entendimento segundo o qual a pessoa que exerce a função vulgarmente chamada de “mula” necessariamente integra organização criminosa e por isso não faz jus à minorante prevista no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/2006.

Com efeito, o acórdão ora impugnado faz referência a uma hipotética dedicação a atividades criminosas e a uma imaginária organização criminosa, sem vinculação a nenhum elemento concreto de convicção. Em verdade, a negativa da causa de diminuição de pena em questão se funda tão somente em ilações e conjecturas, de modo a incorrer em vício de fundamentação aferível de plano.

Inicialmente, impende destacar que a mera condição de mula não implica, obrigatoriamente, em participação em organização criminosa ou em dedicação habitual ao crime, conforme entendimento assentado nas duas Turmas do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA Habeas corpus. Penal e Processual Penal. Tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/06). Pena-base. Majoração. Valoração negativa da natureza e da quantidade da droga (2.596 g de cocaína). Admissibilidade. Vetores a serem considerados necessariamente na dosimetria (art. 59, CP e art. 42 da Lei nº 11.343/06). “Mula”. Aplicação da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas. Admissibilidade. Inexistência de prova de que o paciente integre organização criminosa. Impossibilidade de negar a incidência da causa de diminuição de pena com base em ilações ou conjecturas. Precedentes. Percentual de redução de pena: 1/6 (um sexto). Admissibilidade. Fixação em atenção ao grau de auxílio prestado pelo paciente ao tráfico internacional. Ordem de habeas corpus concedida, para o fim de cassar o acórdão recorrido e restabelecer o julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Federal. 1. É pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que a natureza e a quantidade da droga constituem motivação idônea para a exasperação da pena-base, nos termos do art. 59 do Código Penal e do art. 42 da Lei nº 11.343/06. Precedentes. 2. Descabe afastar a incidência da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06 com base em mera conjectura ou ilação de que o réu integre organização criminosa. Precedentes. 3. O exercício da função de “mula”, embora indispensável para o tráfico internacional, não traduz, por si só, adesão, em caráter estável e permanente, à estrutura de organização criminosa, até porque esse recrutamento pode ter por finalidade um único transporte de droga. Precedentes. 4. O paciente, procedente da Venezuela, foi flagrado na posse de 2.596 g de cocaína no aeroporto de Guarulhos, no momento em que se preparava para embarcar em voo para a África do Sul, com destino final em Lagos, na Nigéria. 5. Correta, portanto, a valoração negativa do grau de auxílio por ele prestado ao tráfico internacional, na terceira fase da dosimetria, com a fixação do percentual de redução em 1/6 (um sexto). 6. Ordem de habeas corpus concedida, para o fim de se cassar o acórdão recorrido e de se restabelecer o julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Federal, que redimensionou a pena imposta ao paciente para 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão e 485 (quatrocentos e oitenta e cinco) dias-multa.” (HC 134597, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 28/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-166 DIVULG 08-08-2016 PUBLIC 09-08-2016) grifo nosso 

“Ementa: HABEAS CORPUS EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE COCAÍNA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DA PENA. INEXISTÊNCIA DE PROVA DE QUE O RÉU INTEGRE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. 1. A causa especial de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 não pode ser indeferida com apoio em ilações ou em conjecturas de que o réu se dedique a atividades ilícitas ou integre organização criminosa. 2. Sentença de primeiro grau que reconheceu, com apoio na prova judicialmente colhida, o preenchimento de todos os requisitos indispensáveis ao reconhecimento da minorante em causa. 3. Habeas Corpus extinto sem resolução de mérito por inadequação da via processual. 3. Ordem concedida de ofício para restabelecer a sentença de primeiro grau, no ponto específico.” (HC 111309, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 04/02/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 08-04-2014 PUBLIC 09-04-2014) grifo nosso

Razão assiste à Suprema Corte: não é correto o afastamento da causa de diminuição de pena em questão com base em mera conjectura ou ilação de que o réu se dedica a atividades criminosas ou de que tenha colaborado com suposta organização criminosa.

Em julgado recente, a Colenda Segunda Turma da Corte, ao apreciar habeas corpus de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que também conduz o presente writ, assim entendeu: 

“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA. AFASTAMENTO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ATIVIDADE DE ‘MULA’. INTEGRANTE DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. NÃO COMPROVAÇÃO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE. I – No crime de tráfico de drogas, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 a 2/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes e não se dedique a atividades ilícitas nem integre organização criminosa. II – A exclusão da causa de diminuição, prevista no § 4° do art. 33 da Lei 11.343/2006, somente se justifica quando indicados expressamente os fatos concretos comprovando que a denominada “mula” integre a organização criminosa. Precedentes. III – O Código Penal determina que o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto. Sendo o réu primário e com bons antecedentes, requisitos aferidos na sentença condenatória, não há motivos que impeçam a fixação do regime semiaberto para o cumprimento inicial da pena. IV – Não é lícito ao Superior Tribunal de Justiça revolver fatos e provas para desconsiderar a classificação de tráfico privilegiado estabelecidas nas instâncias inferiores. V – Sendo o réu primário e com bons antecedentes, requisitos aferidos na sentença condenatória, não há motivos que impeçam a fixação do regime mais brando para o cumprimento inicial da pena. VI – Ordem concedida em parte.” (HC 139327, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 18/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 31-07-2017 PUBLIC 01-08-2017) grifo nossoA Corte Superior fez exatamente o que foi rechaçado pelo STF no julgado acima, ou seja, a partir da reconsideração de fatos, afastou a minorante concedida ao agravante.

Aliás, com a devida vênia, a própria decisão agravada demonstra claramente a necessidade de revolvimento fático-probatório para o afastamento da causa de diminuição da pena no caso em análise. Transcreve-se:

“Como se vê, a conclusão da dedicação do paciente ao tráfico ilícito de drogas, com participação em organização criminosa, não foi apoiada em meras ilações ou suposições, como se alega. No ponto, a Corte Superior de Justiça destacou as especiais circunstâncias em que o delito foi praticado, demonstrando a forma despretensiosa e ousada com que o paciente carregava 4kg de cocaína trazidos da Bolívia, os quais eram ocultados em um compartimento previamente ajustado dentro de sua bagagem de mão, e transportado por meio de um táxi boliviano. Esses aspectos, a meu sentir, destoam daqueles que normalmente são verificados quando a traficância é praticada pela primeira vez, sem maiores planejamentos. É dizer, esses elementos, de fato, demonstram a dedicação do paciente ao tráfico de drogas e a integração dele em organização criminosa.”

Ora, o procedimento narrado acima é o que usualmente acontece quando há transporte de droga, principalmente em âmbito internacional. A conduta do agravante não desbordou do que normalmente ocorre: acondicionamento, uso de mala, de meio de locomoção.

O tráfico internacional tem punição mais gravosa justamente por sua maior complexidade; por isso, considerar o acondicionamento, ou forma de transporte como participação grupo criminoso, além de demandar reexame de fato, vai de encontro à jurisprudência da Corte.

É de se ver, ademais, que o acórdão impugnado valorou a circunstância composta pelo binômio quantidade e natureza da droga tanto na primeira quanto na terceira fase da dosimetria da pena, em desacordo com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.