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Reformatio in pejus – maus antecedentes

Reformatio in pejus – maus antecedentes

Um tema que sempre me incomoda em minha vida profissional é a forma como se interpreta o que será considerado reformatio in pejus, quando o tribunal aprecia recurso defensivo.

Muitas vezes, me deparo com uma conclusão tão simplista quanto, em meu sentir, equivocada: se não houve incremento de pena, não há reformatio in pejus.

Ora, não cabe ao tribunal ficar buscando aspectos na decisão recorrida para reduzir menos a pena, ou mesmo não reduzir nada, em caso de recurso da defesa.

Parece-me óbvio que a defesa não devolve o que ganhou. Se o juiz se esqueceu de aplicar uma agravante e não houve recurso do MP, não cabe ao tribunal inserir aquela agravante, ainda que a pena, ao final, seja reduzida em razão de outro aspecto da dosimetria.

O caso que me fez escrever o presente é um desses, em minha opinião. Trata-se do RHC 232954, que teve seu seguimento negado em decisão monocrática do Ministro Nunes Marques.

Conforme se verá nas peças a seguir, o juiz não teceu uma linha sequer sobre os maus antecedentes quanto ao crime de associação para o tráfico, sendo tal circunstância inserida pelo TJSP em sede de apelo defensivo, o que fez a pena ser reduzida aquém do que deveria.

Apresento, abaixo, a decisão monocrática e o recurso interposto.

Brasília, 7 de dezembro de 2023

Gustavo de Almeida Ribeiro

O Tribunal do Júri como ele é

O Tribunal do Júri como ele é

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Ao ter a ideia de escrever o texto abaixo, refleti se deveria tratar dos aspectos mais jurídicos do Tribunal do Júri ou das curiosidades que fazem parte desse procedimento tão peculiar.

Resolvi cuidar mais do caso em si que das discussões jurídicas, embora haja pontos de contato entre os enfoques.

Há quem adore o júri pela participação popular, outros detestam-no pela falta de conhecimento técnico de quem decide. Quanto a este segundo aspecto, penso que ao se fazer a opção pela decisão de acordo com a íntima convicção, dá-se plena liberdade ao julgador, devendo ser respeitada a soberania dos veredictos (CF/1988, artigo 5ª, XXXVIII, “c”). Assim, a apelação com base na contrariedade à prova dos autos sempre me pareceu permitir indevida ingerência do Tribunal togado na decisão dos jurados (CPP, artigo 593, III, “d”). Ninguém chega à conclusão de contrariedade entre a decisão e as provas sem examiná-las de maneira aprofundada[1].

Feita a introdução, vou ao caso. Alguns amigos de faculdade faziam defesas em processos de competência do tribunal júri na Comarca de Belo Horizonte/MG, na condição de estagiários da DAJ – Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, devidamente acompanhados por um professor.

Assistindo o trabalho deles, três acusados de um homicídio ocorrido em uma cidade do interior de Minas ficaram bem impressionados e resolveram contratá-los para sua defesa.

Eles, colegas e professor, aceitaram a empreitada.

No caso, os acusados, pai e dois filhos, tinham sido denunciados pelo homicídio de um homem em sua cidade.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia anulado o primeiro julgamento em razão de vício na quesitação. Já no segundo, o conselho de sentença votou pela absolvição de todos. Interposta apelação pelo Ministério Público, o TJMG acolheu a tese de contrariedade à prova dos autos, determinando a submissão dos apelados a um terceiro julgamento, que ocorreria 10 anos após a morte da vítima.

Nesse ponto entraram em cena os colegas.

Eles se prepararam, foram para o interior, e lá atuaram com grande desenvoltura, obtendo nova absolvição dos acusados.

A nota curiosa veio ao final. Já na saída do fórum, após encerrados os trabalhos, um jurado chamou um dos meus amigos e disse:

“Doutor, nós sabemos que os seus clientes mataram a vítima. Aqui não tem bobo não. Nós votamos pela absolvição porque achamos que eles fizeram um favor para a nossa cidade.”

Brasília, 2 de agosto de 2019

 

 

[1] Já tinha em mente escrever o presente, quando li, no site do STF, a decisão do Min. Celso de Mello proferida no RHC 117076, versando sobre tema bastante semelhante: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=418063>

De maneira direta

De maneira direta

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Vou colocar as coisas de maneira simples e direta.

Acompanho, de forma próxima, as decisões do STF e do STJ, as alterações legislativas, as manifestações de muitos membros das diversas carreiras jurídicas, as opiniões dos jornalistas.

Vejo manifestações na seara penal, umas mais, outras menos favoráveis ao rigor.

Há quem se torne torcedor desse ou daquele julgador, de uma ou outra tese, como se eles fossem capazes de resolver todos os problemas do Brasil.

Sou menos maniqueísta. Consigo enxergar e entender posições distintas e respeitá-las. Excessos e radicalismos, confesso, me incomodam, mas, quase sempre, deixo passar.

Todavia, existe uma coisa que me chateia e muito, e acho que isso permeia quase todas as minhas manifestações sobre os processos que acompanho na Defensoria Pública da União: a seletividade.

Sempre que eu avalio um julgador, um entendimento, ou que alguém me pergunta o que eu acho do Ministro A ou B, eu faço essa ponderação mental.

Respeito os mais severos e os mais libertários, desde que haja coerência, o que, muitas vezes, não acontece.

Certas contradições então são muito consolidadas, sendo endossadas por quase todos os julgadores, praticamente sem questionamento.

Definitivamente, não compreendo a eleição de alguns crimes como os mais graves do mundo em detrimento de outros que, em meu sentir, são bem mais danosos e geram poucas consequências para seus autores. Exemplo clássico disso é a comparação entre o pequeno descaminho e a sonegação fiscal. Outro exemplo está no rigor com que se invocam a hierarquia e a disciplina para um rapaz que presta serviço militar obrigatório e fumou maconha; severidade que não aparece ao se julgar um político que surrupiou milhões dos cofres públicos. Ah, o uso de maconha pelo jovem conscrito ofende as Forças Armadas. E o uso de um alto cargo político para “roubar” (roubar aqui em sentido leigo, não só em termos de crime, mas de quem gasta dinheiro público de forma desmedida), não ofende a administração pública do país?

Quando questiono isso, sempre ouço duas respostas: um crime não justifica o outro e não há como comparar. Sim, um crime não justifica o outro e, por enquanto, vamos punindo apenas algumas classes de pessoas. E realmente não há como comparar, sendo um crime de um político bem mais grave que um furto de gêneros alimentícios, por exemplo. Ah, mas seu assistido já furtou outras 3 vezes, é reincidente. Responda rápido: por que políticos com mais de 10 inquéritos nunca se tornam reincidentes?

Mesmo quando o bem jurídico protegido é o mesmo ou próximo, as coisas são diferentes. Recentemente, perdi alguns habeas corpus no STF em que pescadores foram flagrados com material de pesca em época de defeso, mesmo que ainda não tivessem retirado uma espécie sequer da água. Seguindo esse rigor, imagino que os responsáveis pelo desastre de Mariana estejam condenados a anos de prisão em regime inicial fechado. Acertei?

Pois é. Eis o que me incomoda.

Brasília, 28 de outubro de 2017

Momento curioso

Momento curioso

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Em um dia pesado na 2ª Turma do STF, houve um momento que posso chamar de “divertido”, embora o final não me tenha sido favorável.

A sessão do dia 21 de março de 2017 começou pesada, como noticiaram amplamente os jornais[1] do país.

Após o início tenso, os processos começaram a ser julgados, com sustentações orais diversas, inclusive duas proferidas por meu colega.

Chegou a minha vez de sustentar em um habeas corpus em que se discutia a aplicação da causa de aumento de pena em tráfico de drogas quando a pessoa pratica a conduta perto de estabelecimento prisional sem, contudo, tentar se valer da situação para disseminar mais ainda os entorpecentes (HC 138944).

Após minha fala, votaram pela denegação os Ministros Dias Toffoli, relator, e Edson Fachin. Em seguida, o Ministro Ricardo Lewandowski começou a votar, dizendo que eu ficava tentando criar teses para convencer o tribunal a mudar seu entendimento. Ele falou de forma cortês, como, aliás, é típico dele. Esbocei um leve sorriso pensando: “claro, Ministro, senão como vou convencê-los?”. Ao ver que eu estava com uma cara de riso, ele então completou: “o Defensor sabe que estou falando a verdade, tanto que está sorrindo”. Nisso, os demais Ministros começaram a rir também da situação.

Foi curioso, principalmente em um dia tão pesado, em um ambiente tão formal como o STF.

A ordem foi denegada por unanimidade, infelizmente.

Semana que vem tem mais tese….

Brasília, 23 de março de 2017

 

[1] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gilmar-mendes-faz-criticas-a-vazamentos-de-conteudos-de-investigacoes-sigilosas,70001708494