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De maneira direta

De maneira direta

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Vou colocar as coisas de maneira simples e direta.

Acompanho, de forma próxima, as decisões do STF e do STJ, as alterações legislativas, as manifestações de muitos membros das diversas carreiras jurídicas, as opiniões dos jornalistas.

Vejo manifestações na seara penal, umas mais, outras menos favoráveis ao rigor.

Há quem se torne torcedor desse ou daquele julgador, de uma ou outra tese, como se eles fossem capazes de resolver todos os problemas do Brasil.

Sou menos maniqueísta. Consigo enxergar e entender posições distintas e respeitá-las. Excessos e radicalismos, confesso, me incomodam, mas, quase sempre, deixo passar.

Todavia, existe uma coisa que me chateia e muito, e acho que isso permeia quase todas as minhas manifestações sobre os processos que acompanho na Defensoria Pública da União: a seletividade.

Sempre que eu avalio um julgador, um entendimento, ou que alguém me pergunta o que eu acho do Ministro A ou B, eu faço essa ponderação mental.

Respeito os mais severos e os mais libertários, desde que haja coerência, o que, muitas vezes, não acontece.

Certas contradições então são muito consolidadas, sendo endossadas por quase todos os julgadores, praticamente sem questionamento.

Definitivamente, não compreendo a eleição de alguns crimes como os mais graves do mundo em detrimento de outros que, em meu sentir, são bem mais danosos e geram poucas consequências para seus autores. Exemplo clássico disso é a comparação entre o pequeno descaminho e a sonegação fiscal. Outro exemplo está no rigor com que se invocam a hierarquia e a disciplina para um rapaz que presta serviço militar obrigatório e fumou maconha; severidade que não aparece ao se julgar um político que surrupiou milhões dos cofres públicos. Ah, o uso de maconha pelo jovem conscrito ofende as Forças Armadas. E o uso de um alto cargo político para “roubar” (roubar aqui em sentido leigo, não só em termos de crime, mas de quem gasta dinheiro público de forma desmedida), não ofende a administração pública do país?

Quando questiono isso, sempre ouço duas respostas: um crime não justifica o outro e não há como comparar. Sim, um crime não justifica o outro e, por enquanto, vamos punindo apenas algumas classes de pessoas. E realmente não há como comparar, sendo um crime de um político bem mais grave que um furto de gêneros alimentícios, por exemplo. Ah, mas seu assistido já furtou outras 3 vezes, é reincidente. Responda rápido: por que políticos com mais de 10 inquéritos nunca se tornam reincidentes?

Mesmo quando o bem jurídico protegido é o mesmo ou próximo, as coisas são diferentes. Recentemente, perdi alguns habeas corpus no STF em que pescadores foram flagrados com material de pesca em época de defeso, mesmo que ainda não tivessem retirado uma espécie sequer da água. Seguindo esse rigor, imagino que os responsáveis pelo desastre de Mariana estejam condenados a anos de prisão em regime inicial fechado. Acertei?

Pois é. Eis o que me incomoda.

Brasília, 28 de outubro de 2017

Um resumo das minhas reclamações

Um resumo das minhas reclamações

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Considero o RHC 147044, desprovido monocraticamente pelo Ministro Dias Toffoli, uma ótima síntese de várias dos questionamentos que tenho feito quanto à postura do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos habeas corpus e dos recursos ordinários em habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública da União.

O recorrente foi condenado pela suposta prática do chamado tráfico privilegiado a 2 (dois) anos de reclusão no regime inicial semiaberto, vedada a substituição da pena privativa de liberdade.

O mencionado recurso buscava obter a concessão do regime aberto para o início do desconto da pena e a substituição da pena imposta pela restritiva de direitos.

O assistido da Defensoria, atendido pela Defensoria Estadual de Santa Catarina e pela DPU, foi acusado de possuir, para venda, 10 gramas de cocaína (segundo informação do Desembargador relator, pois, pelo laudo pericial, entendi que seria até menos). Foi reconhecido como primário e possuidor de bons antecedentes, tanto que a pena-base foi fixada no mínimo legal, sendo aplicada, na 3ª fase, a redutora do §4º do artigo 33 da Lei 11.343.06 na fração de 3/5.

A vedação do regime mais brando, bem como da substituição, deu-se, exclusivamente, com base na natureza da droga apreendida, reitera-se: cocaína.

O pedido da Defensoria encontra esteio em dois julgados emanados do Plenário do STF:

HC 97256, rel. Min. Ayres Britto. Foi reconhecida a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos no crime de tráfico de drogas.

HC 111840, rel. Min. Dias Toffoli. Foi reconhecida a possibilidade de se iniciar o cumprimento de condenação por crime hediondo ou equiparado em regime mais brando que o fechado.

Ao ler os julgados acima, bem como outros diversos que seguiram os precedentes, não notei qualquer vedação à sua aplicação quando a acusação é de tráfico de cocaína.

Por isso, com a devida licença, a posse de 10g de cocaína não me parece ser justificativa suficiente para obstaculizar a substituição da pena e o regime inicial mais brando.

Por fim, surge aqui minha última insatisfação: o julgamento monocrático. Claro que agravei da decisão singular, mas não terei como sustentar oralmente o recurso. Não me parece ser o entendimento esposado pelo relator tema consolidado, ao contrário, parece ir de encontro aos precedentes do Plenário do STF. Repiso: paciente primário, sem antecedentes, quantidade ínfima de droga, tanto que reduzida a pena para 2 (dois) anos. Gostaria de ser ouvido, o que não será possível.

Essas situações, em meu sentir, servem para aumentar a insegurança jurídica e o volume de processos. Fosse o recurso ordinário julgado na Turma, eu me conformaria com o resultado, ainda que dele discordasse, da decisão monocrática só me restou agravar.

Brasília, 10 de outubro de 2017

 

 

Eu queria voltar a ser ouvido

Eu queria voltar a ser ouvido

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

São cada vez mais comuns os julgamentos monocráticos dos habeas corpus e dos recursos ordinários em habeas corpus, por parte dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, em detrimento dos julgamentos colegiados[1].

Em caso de inconformidade da parte, resta a possibilidade do agravo interno, julgado em meio virtual ou em lista.

Sei que essa medida decorre da profusão de habeas corpus impetrados diariamente no STF, todavia, cabe tecer algumas considerações que vão além dos números.

Em primeiro lugar, muitas ações constitucionais que chegam ao Supremo não têm qualquer chance de prosperar: não estão instruídas, voltam-se contra autoridades coatoras cujo julgamento não cabe ao Tribunal ou, ainda, são incompreensíveis. Tais processos fazem volume, mas são resolvidos rapidamente.

Além disso, compreendo que temas estritamente de direito, com pouca influência da situação fática em questão, possam ser apreciados de forma monocrática, desde que a matéria neles veiculada já esteja consolidada.

Todavia, o que tenho notado recentemente é a opção pelo julgamento monocrático em temas ainda não pacificados e, pior, por vezes, para se chegar à resultados distintos do precedente firmado por um colegiado.

Se o julgamento em lista que advém da interposição do agravo já não é o ideal, aquele que ocorre em ambiente virtual torna-se ainda mais questionável.

A situação fica pior ao se indeferir pedido de retirada do julgamento do sistema virtual, passando-o para a forma presencial, sob o fundamento de que o tema está consolidado sem, para tanto, se indicar um precedente sequer.

Patrocino uma série de HCs e RHCs perante o Supremo Tribunal Federal já há bastante tempo, pelo que vivenciei de perto as mudanças ocorridas na Corte. Como falei, sou capaz de compreender algumas, mas, penso que outras são exageradas e, pior ainda, por vezes, geram sensação de tratamento diferenciado.

A cada semana que passa existem cada vez menos processos julgados de forma presencial e colegiada no que respeita à Defensoria Pública da União. Cheguei a ver quase vinte serem julgados em uma só sessão da Segunda Turma, enquanto hoje, muitas sessões não têm sequer um, apesar do grande número de impetrações com temas diversos.

Com mais de dez anos de militância perante a Corte, posso dizer com tranquilidade da enorme diferença entre o julgamento original, em que a defesa, se entender necessário, pode usar da palavra, do mero julgamento de agravo. Nunca virei um agravo interno contra o voto do Ministro relator; em julgamentos diretos, já ganhei vários após a sustentação oral contra o voto do relator original.

Não pretendo e, em verdade, nunca agi assim, sustentar em todos ou em uma profusão de feitos, mas gostaria de poder falar em algumas situações recorrentes ou cuja interpretação do STF precisa ser repensada. Muitas vezes, quando sustento um habeas corpus, estou falando por milhares de pessoas, vide as questões envolvendo execução penal, relevantes para um sem número de casos.

Aliás, o Tribunal tem adotado a postura de pedir a dispensa da sustentação oral quando vai conceder a ordem. Claro que consinto, sem, contudo, deixar de lamentar em certas oportunidades, uma vez que sustento a tese.

Ainda não vislumbrei solução, sendo o presente apenas um lamento, de qualquer modo, não desisti de pensar, nem de incomodar. Muitos dependem disso.

Brasília, 22 de setembro de 2017

 

[1] Exceção feita ao Ministro Marco Aurélio que não adota a prática dos julgamentos monocráticos.

Insignificante é o fato

Insignificante é o fato 

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Aproveito os minutos finais aqui na DPU nesse final de sexta imprensada no feriado para iniciar um texto sobre assunto já repetido à exaustão: o princípio da insignificância deve observar o fato e não seu autor, sob pena de se cair em situações que beiram o ridículo, como as duas que exporei abaixo.

Friso que são apenas exemplos e que poderia invocar casos semelhantes aos borbotões. Quem quiser fazer o teste, basta colocar na pesquisa de jurisprudência do STF: furto, insignificância e Defensoria (incluindo as decisões monocráticas).

No HC 122.052, o paciente, por ter registro criminal, chegou a ser preso preventivamente por um furto simples de uma faca no valor de R$ 1,99, devidamente restituída. A ordem só foi concedida pelo Ministro Teori Zavascki após passar por todas as instâncias e chegar ao STF. A decisão está disponível no site do Tribunal.

Já no HC 132.203, a 1ª Turma do STF concedeu a ordem em caso envolvendo militar por entender que, considerando-se que o paciente possuía 0,02g de maconha para uso próprio, tal quantidade seria apenas um resquício. Calha transcrever o voto do Ministro Roberto Barroso:

“O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Presidente, portanto, era um jovem que prestava serviço militar obrigatório e, no momento em que foi surpreendido, não estava de serviço, não portava arma, não desempenhava função sensível à organização militar e a quantidade era ínfima: 0,02 g de maconha. Não dá nem para acender (a informação é de que não dá nem para acender). Portanto, o crime é impossível. Consequentemente, não há como a condenação. Portanto, eu estou acompanhando o Relator.”

O mero registro criminal ou o fato de o rapaz prestar serviço militar obrigatório (o que o coloca sob rigor do Código Penal Militar, ainda não atualizado quanto a várias questões, inclusive a das drogas) impede a aplicação do princípio da bagatela?

Em caso de resposta positiva ao questionamento acima, algumas situações surgem:

Para quem tem contra si condenação criminal, devo concluir que a subtração de um pãozinho francês é relevante, ainda que seja para saciar a fome. Isso chega todos os dias às minhas mãos, mas quando cai na grande imprensa vira escândalo (lembram-se da moça da limpeza que pegou o bombom?).

O princípio da insignificância é aplicado em crimes sem violência ou ameaça e com pequena ofensividade. É justificável, em um país como o nosso, o enorme gasto de tempo e dinheiro com furtos de comida, roupas, produtos de higiene, abarrotando os Tribunais e atrasando o julgamento de assuntos mais importantes? Claro que à defesa cabe recorrer, sobrevindo condenação, ainda mais em se tratando desse tipo de acusação, o que significa aumento considerável do número de processos.

As condições dos presídios são de todos conhecidas. Vamos abarrotá-los ainda mais com prisões cautelares e definitivas de pessoas acusadas de pequenos furtos, gerando as consequências nefastas de sempre?

É preciso aceitar que o fato praticado é que deve ser considerado insignificante, independentemente da vida pregressa de seu autor.

Claro que a insignificância não está apenas no valor da coisa, mas deve ser olhada de forma detalhada, considerando-se todas as circunstâncias do caso e não fórmulas pré-concebidas. Tal medida pode impedir condenações exageradas que ofendam a proporcionalidade.

Não ignoro a opinião daqueles que dizem que crime é crime e que nada deve ser desconsiderado. Pessoalmente, sou contra excessos libertários e, mais ainda, punitivos, mas ainda que concordasse com a afirmativa acima, deixaria a pergunta: certo, todo crime deve ser punido, mas por que até hoje o Brasil é muito mais rigoroso com alguns que com outros? Aceitar que as coisas são assim mesmo é admitir que o direito penal tem destinatário certo, os pobres, por outro lado, dizer que as coisas já mudaram é ingenuidade. Em suma, enquanto empresários e políticos acumularem inúmeros processos sem conhecerem, por um dia sequer, o lado de dentro da cela, a afirmativa inicial do parágrafo será refutável pela mera análise da realidade.

Seja como for, em furto, descaminho, pesca famélica, rádio comunitária, o que importa é o caso concreto e não o que já tenha feito o acusado anteriormente ou sua condição pessoal. Nosso sistema penal já é desigual o bastante, não precisamos piorá-lo.

Brasília, 9 de setembro de 2017

Despacho do Ministro Ricardo Lewandowski no HC coletivo 143641

Despacho do Ministro Ricardo Lewandowski no HC coletivo 143641

Segue, abaixo, transcrição do despacho do Ministro Ricardo Lewandowski proferido no HC 143641 (gestantes e mães e colocação em prisão domiciliar).

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 21 de agosto de 2017

 

 HC 143641

RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

PACTE.(S):TODAS AS MULHERES SUBMETIDAS À PRISÃO CAUTELAR NO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL, QUE OSTENTEM A CONDIÇÃO DE GESTANTES, DE PUÉRPERAS OU DE MÃES COM CRIANÇAS COM ATÉ 12 ANOS DE IDADE SOB SUA RESPONSABILIDADE, E DAS PRÓPRIAS CRIANÇAS

IMPTE.(S): ELOISA MACHADO DE ALMEIDA E OUTRO(A/S)

ASSIST.(S): DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO CEARA

ADV.(A/S): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DO CEARÁ

ASSIST.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

ADV.(A/S: DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DO PARANÁ

COATOR(A/S)(ES): JUÍZES E JUÍZAS DAS VARAS CRIMINAIS ESTADUAIS

COATOR(A/S)(ES): TRIBUNAIS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS

COATOR(A/S)(ES): JUÍZES E JUÍZAS FEDERAIS COM COMPETÊNCIA CRIMINAL

COATOR(A/S)(ES): TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

Trata-se de habeas corpus coletivo proposto em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.

A Defensoria Pública Estadual do Ceará requereu sua intimação regular para prosseguimento do feito (documento eletrônico 26).

A Defensoria Pública da União ingressou no feito (documento eletrônico 29), aduzindo ser essencial sua participação, seja pelos reflexos da decisão nos direitos de um grupo vulnerável, seja por sua expertise nos temas objeto do presente habeas corpus.

Quanto às questões de fundo, sustentou, primeiramente, a possibilidade de impetração de habeas corpus coletivo, invocando para tanto o histórico da “doutrina brasileira do habeas corpus”, a existência do mandado de segurança e do mandado de injunção coletivos e a legitimação da Defensoria Pública para a propositura deste último, tudo a demonstrar: (i) “a caminhada das ações constitucionais em direção às soluções coletivas”; (ii) “o reconhecimento da representatividade da Defensoria Pública”.

Acrescentou que, embora seja indiscutível que em várias situações tuteláveis por habeas corpus dependam de análises individuais pormenorizadas, outras há em que os conflitos podem ser resolvidos coletivamente. Citou como exemplo o caso do HC 118.536, em cujo bojo a Procuradoria-Geral da República ofertou parecer pelo conhecimento e pela concessão da ordem.

Em segundo lugar, defendeu ser devido o reconhecimento do direito que assiste às mães de crianças sob sua responsabilidade ou gestantes de não serem recolhidas à prisão cautelarmente, ressaltando ser comum a situação da mulher presa cautelarmente que é, ao final, condenada à pena restritiva de direito, o que não reverte os danos sofridos pela mãe e pela criança.

Enfatizou serem vários os precedentes do Supremo Tribunal Federal em prol da tese constante da inicial.

Requereu seja admitida para atuar no feito e, no mérito, pleiteou o conhecimento do habeas corpus coletivo e da concessão da ordem.

O Departamento Penitenciário do Estado do Paraná apresentou os dados de mulheres presas na Penitenciária Feminina daquele Estado, cumprindo a decisão anterior de minha lavra (documento eletrônico 31).

É o relatório. Decido.

Diante da manifestação da Defensoria Pública da União para atuar no feito, passo a apreciar a questão do cabimento do habeas corpus coletivo, cuja resposta entendo ser positiva.

Com efeito, como já afirmei no Recurso Extraordinário (RE) 612043-PR, as relações sociais tem progressivamente contraposto grupos sociais a organizações burocráticas. Esse é um traço cada vez mais marcante da configuração atual da sociedade. A solução que se afigura possível para garantir acesso à Justiça aos grupos sociais vulneráveis nesse contexto burocratizado é a ação coletiva.

De forma coerente com essa realidade ora narrada, o Supremo Tribunal Federal vem alargando o uso dos institutos para lidar com situações em que os direitos de coletividades estão sob risco de grave lesão. Tem-se admitido ampla utilização da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), assim como do mandado de injunção coletivo.

Com maior razão, deve-se autorizar o uso do habeas corpus na forma coletiva. Honra-se, desta forma, a tradição brasileira de dar a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como “doutrina brasileira do habeas corpus”, que encontrou em Ruy Barbosa um grande defensor. Segundo essa doutrina preconizava, se há um direito sendo violado, deve haver um remédio à altura da lesão.

Numa sociedade burocratizada, a lesão pode assumir caráter coletivo e, neste caso, o justo consiste em disponibilizar um remédio efetivo e funcional para a proteção da coletividade – mormente de coletividades vulneráveis socioeconomicamente.

Foi com semelhante quadro que se deparou a Suprema Corte Argentina no famoso caso Verbitsky. Na Argentina, assim como no Brasil, não existe previsão constitucional expressa de existência de habeas corpus coletivo, mas essa omissão legislativa não impediu o conhecimento do writ pela Corte. Nesse julgamento, o habeas corpus coletivo foi visto pela maioria dos membros da Suprema Corte como compatível com a natureza dos direitos a serem tutelados que, tal como neste caso concreto, diziam respeito a direitos fundamentais de pessoas presas em condições insalubres.

É importante destacar que a Suprema Corte de Justiça recorreu ao direito convencional – sobretudo às Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos – como fundamentação central da decisão tomada, na qual determinou tanto a tribunais que lhe são hierarquicamente inferiores quanto aos Poderes Executivo e Legislativo a tomada de medidas para sanar a situação de inconvencionalidade a que estavam sujeitos os presos.

Assim, para além de tradições jurídicas similares, temos com a República Argentina também um direito convencional comum que deve levar esta Suprema Corte à reflexão dos instrumentos jurídicos que devem estar disponíveis para superar situações de ofensa ao direito convencional relativo aos direitos humanos.

No Brasil, além da já citada “doutrina brasileira do habeas corpus”, que integra a história do instituto em questão e mostra o quanto ele pode ser maleável diante das lesões aos direitos fundamentais, temos ainda dispositivos legais que encorajam à superação de posicionamento no sentido do não cabimento do writ na forma coletiva.

Nesse sentido, destaco o art. 654, § 2º do Código de Processo Penal, que preconiza a competência de juízes e os tribunais “para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal” (grifei). A faculdade de concessão, ainda que de ofício, de habeas corpus, revela o quanto o remédio heroico é flexível e estruturado de forma a combater, de forma célere e eficaz, às ameaças e lesões a direitos relacionados ao status libertatis do paciente. Indispensável destacar, ainda, que a ordem pode ser estendida a todos que se encontram na mesma situação, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.

Não é por acaso que, episodicamente, o habeas corpus coletivo vem sendo conhecido e provido em outras instâncias do Poder Judiciário, tal como ocorreu no HC 1080118354-9, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos HCs 207.720/SP e 142.513/ES, ambos do Superior Tribunal de Justiça. Neste último, o exercício da faculdade de extensão da ordem todos os que estivavam na mesma situação transformou o referido habeas corpus individual em legítimo habeas corpus coletivo, “substituindo-se a prisão em contêiner por prisão domiciliar, com extensão a tantos quantos – homens e mulheres – estejam presos nas mesmas condições”.

Note-se que, feita a extensão, não se exige a nome de cada paciente, nos termos do art. 654, § 1º, a, do Código de Processo Penal e, por igual razão, não se deve exigir tal requisito no habeas corpus coletivo, lembrando-se que a interpretação do Código de Processo Penal deve ser orientada pelo prisma constitucional.

A existência de outras ferramentas disponíveis para suscitar a defesa coletiva de direitos – notadamente, em casos como o presente, a ADPF, não deve ser óbice ao conhecimento deste habeas corpus. O rol de legitimados dos instrumentos não é o mesmo, sendo consideravelmente mais restrito na ADPF, e o acesso à Justiça em nosso País, sobretudo das mulheres presas e pobres (talvez um dos grupos mais oprimidos do Brasil), por ser notoriamente insuficiente, não pode prescindir da atuação da sociedade civil na defesa de direitos. Deve-se extrair do habeas corpus, instrumento flexível e relevante, sua mais ampla potencialidade, nos termos dos princípios ligados ao acesso à Justiça da Constituição e ao art. 25 do Pacto de São José da Costa Rica.

Considero fundamental que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem referente aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, e passe a fortalecer remédios de natureza coletiva quando os direitos em perigo disserem respeito a uma coletividade, contribuindo, assim, não apenas para maior isonomia e celeridade na cessação de lesões a direitos, mas, sobretudo, para a maior legitimação do sistema político brasileiro.

No caso concreto, essa ratio decidendi fica fortalecida pelo reconhecimento do ‘Estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro, tal como levado a efeito por esta Suprema Corte quando do julgamento da ADPF 347 MC/DF. Naquele julgamento, a qual a narrativa do presente habeas corpus – de insuficiência estrutural específica em relação à situação da mulher presa – foi expressamente abordada.

A despeito do cabimento do habeas corpus coletivo, penso, com a devida venia, que são necessários certos parâmetros em termos de legitimidade ativa, como, aliás, é a regra em se tratando de ações de natureza coletiva. Parece, nesse sentido, que por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo (art. 12, IV, da Lei 13.300/2016), o ideal é reconhecer a legitimidade ativa à Defensoria Pública da União, por se tratar de ação de caráter nacional, e admitir as impetrantes como assistentes, em condição análoga à atribuída às demais Defensorias Públicas atuantes no feito.

Em relação a estas últimas, ficam cientes do procedimento para habilitação no sistema de intimação eletrônica, previsto no edital publicado na edição extra do DJe (245/2016), divulgado em 17/11/2016 e publicado em 18/11/2016.

Sendo assim, corrija-se a autuação. No mais, dê-se ciência às interessadas e à Procuradoria-Geral da República do teor desta decisão e dos documentos juntados aos autos pelo Depen do Paraná.

Publique-se.

Brasília, 15 de agosto de 2017.

 

Ministro Ricardo Lewandowski

Relator

 

Tabela de HCs/RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º semestre de 2017

Tabela de HCs/RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º semestre de 2017

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Segue, abaixo, a tabela dos HCs e RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF durante o 1º semestre de 2017.

O número tem diminuído em razão da proliferação das decisões monocráticas. De qualquer modo, vale destacar o índice altamente positivo de concessões, ainda que parciais.

Julgados: 35
Concedidos (ainda que parcialmente): 20 (57,15%)
Com pedido de vista: 1 (2,85%)
Indeferidos: 14 (40%)

Tabela de HCs e RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º semestre de 2017
Número do processo Ministro Relator Resultado Data do Julgamento Tema
HC 135404 Ricardo Lewandowski Denegada a ordem 07/02/2017 Crime contra o Meio Ambiente. Princípio da Insignificância. Pesca durante o período de defeso.
HC 137290 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 07/02/2017 Furto. Atipicidade da conduta. Princípio da Insignificância.
HC 138134 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 07/02/2017 Crime contra as Telecomunicações. Rádio comunitária. Princípio da Insignificância.
HC 138168 Ricardo Lewandowski Denegada a ordem 07/02/2017 Roubo majorado. Crime contra o Patrimônio. Dosimetria penal.
RHC 131828 Ricardo Lewandowski Negado provimento 07/02/2017 Tráfico de drogas. Pedido de aplicação da causa de diminuição do art. 33, §4° da Lei de Drogas. “Boca de fumo”.
HC 139691 Ricardo Lewandowski Denegada a ordem 21/02/2017 Prisão preventiva. Garantia da Ordem Pública. Roubo qualificado. Arma de fogo e concurso com menor.
HC 138944 Dias Toffoli Denegada a ordem 21/03/2017 Tráfico de Drogas. Comercialização, art. 33 c/c art. 40 – Lei de Tóxicos. Incidência causa especial de aumento de pena em razão da proximidade com presídio.
HC 137422 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 28/03/2017 Furto qualificado tentado. Princípio da Insignificância. Trancamento da ação penal.
HC 136736 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 28/03/2017 Tráfico Internacional de Drogas. Incidência de causa de diminuição da pena (art. 33, §4 – Lei de Tóxicos). Redução da pena em grau máximo e possibilidade de substituição.
HC 140441 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 28/03/2017 Tráfico de drogas. Natureza e quantidade da droga. Sanção mais gravosa (Súmulas 718 e 719 STF). Réu primário e circunstâncias favoráveis. Aplicação do Regime Semiaberto.
HC 138082 Dias Toffoli Não conhecido 04/04/2017 Furto qualificado (art. 155, §4º, I e IV). Não aplicação de privilégio. Expressivo valor.
RHC 135547 Dias Toffoli Negado provimento 04/04/2017 Crimes de Tráfico de drogas (art. 33 – Lei de Tóxicos), Posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12 – Lei 10.826/03) e Falsa Identidade (art. 307, CP). Não ocorrência de Bis In Idem na dosimetria.
RHC 136509 Dias Toffoli Provido 04/04/2017 Remição (art. 33 e 126, LEP). Trabalho do preso. Jornada diária de 4h. Inferior ao mínimo legal. Jornada atribuída pela administração da penitenciária. Princípio da proteção da confiança.
HC 136958 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 04/04/2017 Descaminho (art. 334, caput, CP). Valor inferior ao fixado (art. 20, Lei 10522/02 e portarias 75/12 e 130/12). Atipicidade da conduta (art. 395, CPP). Princípio da Insignificância.
HC 139327 Ricardo Lewandowski Concedida em parte a ordem 18/04/2017 Tráfico Internacional de Drogas. Causa de diminuição de pena (§4º do Art. 33, Lei 11.343/06) na fração máxima. Regime inicial e substituição de pena.
HC 139393 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 18/04/2017 Descaminho (art. 334, caput, CP). Valor inferior ao fixado (art. 20, Lei 10522/02 e portarias 75/12 e 130/12). Trancamento da ação penal. Princípio da Insignificância.
HC 141292 Dias Toffoli Concedida a ordem 25/04/2017 Tráfico de drogas.  Minorante do §4º do Art. 33 da Lei 11.343/06. Natureza e quantidade da droga (art. 42, Lei 11343/06). Integrante de organização criminosa. Prisão preventiva revogada.
HC 141593 Dias Toffoli Denegada a ordem 02/05/2017 Tráfico de drogas. Dosimetria. Pedido de redução nos termos do §4º do Art. 33 da Lei 11.343/06 em grau máximo. Dedicação à atividade criminosa.
HC 136843 Ricardo Lewandowski
Com vista: Gilmar Mendes
Interrompido por vista 09/05/2017 Descaminho, insignificância e reiteração delitiva.
HC 138122 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 09/05/2017 Roubo. Revogação da prisão preventiva. Incompatibilidade com regime inicial de pena (semiaberto).
HC 140422 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 09/05/2017 Regime Semiaberto. Ausência de vagas. Prisão domiciliar.
RHC 139551 Ricardo Lewandowski Conhecido em parte – negado provimento e concedida a ordem de ofício 09/05/2017 Furto (art. 155, caput, c/c art. 65, III, d, e art. 61, I). R$: 30,00. Reincidência. Inaplicabilidade do Princípio da insignificância. Estabelecido novo regime (aberto).
HC 139717 Dias Toffoli Não provido 16/05/2017 Furto. Pena inferior a quatro anos. Regime inicial fechado. Reincidência.  Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Regime mais gravoso admitido. Art. 5º, XLVI, CF.
HC 140137 Dias Toffoli Concedida a ordem 23/05/2017 Corrupção de menores (art. 244-B, ECA). Inexistência de prova idônea quanto à menoridade.
HC 138828 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 30/05/2017 Tráfico de drogas. Causa de diminuição. Tráfico Privilegiado. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
HC 142371 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 30/05/2017 Maus antecedentes. Condenação pretérita cumprida ou extinta há mais de 5 anos (art. 64, I, CP). Período Depurado.
HC 139372 Ricardo Lewandowski Denegada a ordem 30/05/2017 Tráfico Internacional de drogas. Prisão preventiva. Fudamentação.
HC 137528 Dias Toffoli Não conhecido 13/06/2017 Roubo majorado. Nulidade dosimetria. Readequação de pena em Corte Estadual. Ausência de prejuízo.
RHC 140017 Edson Fachin Provido 13/06/2017 Furto simples. Reincidência. Atipicidade material. Princípio da Insignificância.  Absolvição. Valor R$: 80,00.
HC 136331 Ricardo Lewandowski Concedida a ordem 13/06/2017 Crime militar. Uso indevido de uniforme militar (art. 172, CPM). Nulidade processual. Inquirição como testemunha. Direito ao silêncio.
RHC 135295 Dias Toffoli Provido em parte 20/06/2017 Tráfico de drogas e porte ilegal de arma de fogo (art. 33, Lei 11343/06 e art. 16, IV, Lei 10826/03). Redimensionamento da pena-base. Provido quanto à circunstância judicial, consequências do crime.
HC 136851 Ricardo Lewandowski Denegada a ordem 20/06/2017 Tráfico internacional de drogas. Majoração da pena-base acima do mínimo legal justificada.  Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Natureza e quantidade da droga (art. 42, Lei 11343/06).
HC 142029 Dias Toffoli Concedida a ordem 27/06/2017 Corrupção de menores (art. 244-B, ECA). Inexistência de prova idônea quanto à menoridade. Absolvição.
Tabela de HCs e RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º semestre de 2017   
JULGAMENTOS VIRTUAIS
Número do processo Ministro Relator Resultado Data do Julgamento Tema
HC 141594 Dias Toffoli Agravo regimental não provido 02/06 a 08/06 Violência Doméstica. Princípio da bagatela imprópria. Afastamento da pena aplicada.
RHC 142090 Dias Toffoli Agravo regimental não provido 02/06 a 08/06 Tráfico de drogas. Natureza e quantidade de droga. Motivação idônea. Regime mais gravoso (fechado).

Deferidos total, parcialmente ou de ofício: 20

Julgamentos interrompidos por pedido de vista ou adiamento: 1
Indeferidos (não conhecidos, denegados, com seguimento negado): 14
Total dos HCs/RHCs da DPU julgados pela 2ª Turma do STF no 1º sem. de 2017: 35

Óbvio, porém necessário

Óbvio, porém necessário

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Vez por outra questiono benefícios dados pela Justiça Brasileira a pessoas abastadas, poderosas ou famosas, valendo-me, para tanto, de minha conta no Twitter.

A linguagem telegráfica da mencionada rede social impede maiores esclarecimentos, que serão feitos aqui.

Penso que quem tem direito a um benefício na seara penal, incluídos aí o processo e a execução penal, deve recebê-lo de maneira célere, pouco importando sua condição econômica ou posição de destaque.

Por isso, não me irrito quando uma pessoa rica (ou acusada por crimes famosos), obtém, desde que merecedora, por exemplo, o direito de ficar em prisão domiciliar.

Minha chateação advém da sensação de que, muitas vezes, a celeridade, bem como o entendimento são distintos quando o acusado é um cidadão pobre, atendido pela Defensoria Pública.

Fico ainda mais irritado quando ouço a pré-histórica desculpa de que ricos têm bons advogados, não por ser mentira ou por desconhecer que, infelizmente, a Defensoria Pública não está em todos os lugares em que gostaríamos, mas por muitas vezes lutar fervorosamente pelos meus assistidos e obter resposta judicial negativa em situações que considero menos graves ou iguais a outras que tiveram desfecho distinto.

A concessão de prisão domiciliar e a indignação com a duração das prisões preventivas são dois dos casos em que mais noto a distinção no tratamento entre pobres e ricos.

O HC 145179, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, traz um pouco dos dois: preventiva de quase dois anos de duração, sem julgamento em primeiro grau e assistida da Defensoria Pública mãe de duas crianças. A domiciliar foi indeferida, em sede liminar.

Duas observações sobre o writ em questão:

1 – Trata-se de feito complexo na origem? E os processos envolvendo os acusados na Lava-jato não o são? No entanto, tenho ouvido de alguns Ministros indignação com a demora nas prisões cautelares no chamado “petrolão”.

2 – A paciente do mencionado HC integraria grupo criminoso, tendo praticado conduta grave, o que poderia inviabilizar a concessão da prisão domiciliar. E o que se dizer de quem é acusado de saquear os cofres públicos de um Estado, deixando a população à míngua, como se vê todos os dias na grande imprensa?

Todavia, devo ser justo. Até que a Segunda Turma do STF várias vezes é bem rápida na apreciação dos pedidos da Defensoria Pública da União, mantendo visão mais libertária. Lamentavelmente, porém, multiplicam-se as situações em que as decisões monocráticas em profusão prejudicam o exercício da ampla defesa, ao vedarem a sustentação oral e colocarem os processos em julgamento virtual, mas isso é tema para outro texto.

Por outro lado, Primeira Turma é bastante rigorosa, inclusive no que concerne ao cabimento do habeas corpus, pelo que fiquei surpreso com a soltura da irmã do Senador Aécio Neves. Calha transcrever trecho de notícia divulgada no sítio eletrônico da Corte[1]:

“A prisão domiciliar foi implementada por sugestão do ministro Luiz Fux, que observou a existência de um paradoxo no caso, pois enquanto o senador Aécio Neves, apontado pelo MPF como autor principal do suposto delito, está solto, os partícipes que, embora tivessem domínio funcional de alguns fatos e executassem tarefas sem as quais a conduta criminosa não se concretizaria, estão presos. O ministro observou que, na fundamentação do decreto de prisão, o ministro Edson Fachin, relator original do processo, entendeu que, em razão da complexidade dos fatos, seria possível uma ingerência dos acusados na produção de provas. Em seu entendimento, essa situação já não existe, pois o MPF encontrou prova plena do delito de corrução para embasar a denúncia e afirma nos autos já ter elementos para o processamento de ação penal.”

Repiso: não se trata de defender prisão de ninguém, mas de se questionar aspecto curioso da decisão. Se existe motivo para a preventiva, mas o corréu tem foro por prerrogativa, ela se converte em domiciliar? (Cabe lembrar que a prisão da irmã do Senador tinha sido mantida uma semana antes da concessão da domiciliar, ou seja, a Turma considerou presentes os requisitos da preventiva.)

São essas as contradições que procuro destacar em meus tuítes. Seja com postura mais rigorosa ou garantista, o que espero é equilíbrio e coerência.

Brasília, 22 de julho de 2017

 

 

 

[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=347163&caixaBusca=N

Dicas em matérias militares

Dicas em matérias militares

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Como havia prometido, tecerei, a seguir, alguns comentários sobre Direito Penal Militar e Direito Processual Militar bem simples, mas que podem ajudar a quem não tiver muito tempo para estudar essas matérias tão específicas para o concurso da DPU (Defensoria Pública da União). Adianto que estou tratando da Justiça Militar da União.

Lembrete inicial:

Como regra o Direito Militar é mais rigoroso que o Direito Penal comum, pelo que vale a pena partir dessa ideia. Exemplo, existe dano culposo, vide artigo 266 do Código Penal Militar.

Segundo:

Os códigos da área, Penal Militar e Processo Penal Militar, sofrem muito menos atualizações que os comuns, pelo que os últimos institutos e alterações inseridos na lei geral, não se encontram na lei especializada. Exemplo: substituição de pena no Código Penal, não existente no CPM; tratamento, no CPM, do tráfico e do uso de droga no mesmo artigo 290, coisa há muito superada na lei geral.

Em termos processuais, ocorre o mesmo, pelo que algumas alterações são obtidas apenas com a intervenção do STF, na maioria das vezes provocado pela DPU, como foi o caso da passagem do interrogatório para o último ato da instrução processual (HC 127900/STF)

Terceiro:

Em regra, o STM sempre acha que todas as questões que envolvam, direta ou indiretamente militares ou a organização militar, são de sua competência.

Em certos aspectos o STF concorda, em outros, não.

Dica: não se guiem só pela condição de militar do acusado, no que concerne ao entendimento do STF.

Para o STF, se o acusado for militar, mas a conduta não tiver qualquer relação com a vida castrense, Justiça comum. Exemplo corriqueiro: crime praticado por militar contra militar sem qualquer ligação com a vida na caserna (HC 131076/STF)

Por outro lado, ainda que seja civil, mas a conduta tenha relação com a administração militar, será competência da Justiça especializada para ambos, STM e STF. O melhor e mais repetitivo exemplo é o da pessoa que recebe pensão indevidamente que havia sido instituída para dependente de militar falecido – o filho que não comunica o falecimento da mãe pensionista e continua a receber.

É um resumo extremamente singelo para dar uma linha do pensamento do STM e do STF. Infelizmente há situações em que as decisões são vacilantes, mas penso que a lógica do raciocínio possa ajudar na hora da dúvida.

 

Decisões do STF que merecem ser lidas:

SV 36 (falsificação e competência)

HC 127900 (momento do interrogatório)

HC 131076 (competência e instituição militar)

HC 119567 (deserção e vedação do sursis)

HC 136536 (competência e saque indevido de pensão)

HC 103684 (uso de droga e militar)

Existem temas que ainda são vacilantes na jurisprudência, por isso não os colocarei aqui para não dar a impressão que estão consolidados (ex. atividade dos militares no policiamento urbano e suas consequências)

Brasília, 25 de junho de 2017

 

 

Conselho a quem inicia

Conselho a quem inicia

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Não sei se sou experiente o bastante para começar a escrever textos com sugestões. Na verdade, sou bem exigente comigo mesmo e sempre acho que tenho mais a aprender do que a ensinar. De qualquer modo, já são quase 20 anos de formado, sendo 3 deles na advocacia privada e mais de 15 na Defensoria Pública da União, pelo que não posso negar certa vivência.

Muitas das vezes em que escrevo algo, sinto-me dizendo o óbvio, e talvez seja mesmo o caso em certas situações, como nas observações que farei a seguir, todavia, acredito que elas possam servir a alguém.

São cada vez mais comuns as aprovações de candidatos com pouca experiência prática nos concursos públicos. Para esses e para quem se interessar, deixo algumas considerações.

Excessos não caem bem. Tornam apenas mais fácil o trabalho de quem vai refutar as alegações lançadas de forma extrema. Peças processuais, comportamento em audiências, sustentações orais, que faltam com a cortesia, que se utilizam de argumentos exagerados e muitas vezes contrários à legislação, à doutrina e à jurisprudência dominante, só servem para tirar a credibilidade de quem deles se utiliza.

Em meu sentir, isso vale para quem julga, acusa, defende; para todos, em suma.

Sou muito criterioso em minha atuação, principalmente por militar em instância que, como regra, está distante dos fatos para apreciar de forma mais enfática o direito. Não raras vezes, ao preparar uma sustentação oral, sabendo que o habeas corpus, por exemplo, contém 3 pedidos, mas que o principal deles tem mínima aceitação na jurisprudência, prefiro gastar meu tempo com o segundo que, embora possa ser menos vantajoso para o paciente, tem mais chance de êxito.

Há quem discorde, claro, acreditando que o excesso, a contundência, podem mudar algo consolidado. Todavia, excetuando-se situações realmente ímpares, que exigem postura mais agressiva, na maioria das vezes, essa conduta só serve para criar barreiras e, a depender do excesso, até mesmo dar motivo para ironias e brincadeiras.

Quando o profissional atua com frequência em um mesmo lugar, o cuidado deve ser então redobrado. Nada é pior que a fama de Defensor “lunático”, Promotor “furioso” ou Juiz “indeciso”. Aquele que, em regra, age com ponderação, quando precisa se exceder um pouco, chama a atenção por saberem os demais atores processuais que aquilo não é comum. Ao contrário, quem é sempre exagerado, exaltado, logo é tido como destemperado e um pedido de urgência, uma peça mais incisiva, são vistos como mais do mesmo.

Já ouvi de algumas pessoas, servidores ou conhecidos, que os Ministros respeitam minha atuação, minhas sustentações, minha conduta. Fico muito feliz por isso, por mim, claro, não seria hipócrita de negar, mas pela Defensoria Pública da União e pelos assistidos também. Em nada ajudaria um Defensor destrambelhado que gerasse desatenção e antipatia.

Em tempo, não se trata de não ter coragem, não recorrer, não questionar o que for necessário, mas de fazê-lo de forma comedida, proporcional ao caso e, sobretudo, educada.

Atuação combativa não se confunde com grosseria e prepotência.

Repito o que disse no início, parece-me óbvio tudo o que afirmei acima, mas tantas vezes vejo profissionais até mesmo mais experimentados que eu caindo nessas armadilhas que achei que valia a pena compartilhar.

Brasília, 15 de junho de 2017

Estabelecendo limites

Estabelecendo limites

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Foram julgados e concedidos pela 2ª Turma do STF, recentemente, dois habeas corpus impetrados pela DPU em que se discutia acréscimo de fundamento em decreto prisional pelo STJ e também a apreciação de questões fático-probatórias na fixação da pena pela Corte Superior.

Na verdade, muitas vezes, o STJ, parece deixar de lado o próprio verbete da súmula 7 para prover recursos especiais em que fica, ao menos a meu sentir, bastante claro o revolvimento fático.

Curioso que, por outro lado, quando as instâncias ordinárias negam, por exemplo, a aplicação da causa de diminuição prevista no artigo 33, §4º da Lei 11.343/06, e a defesa interpõe recurso especial ou impetra habeas corpus, a vedação do exame fático é imediatamente lembrada.

Transcrevo abaixo as ementas dos habeas corpus em questão.

Nesse primeiro caso, HC 137.034, o decreto de prisão era o mais genérico possível, pelo que o STJ, ao invés de reconhecer isso, optou por agregar fundamento a ele em sede de habeas corpus. Ordem concedida pelo STF.

“Ementa: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ILEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. DECISÃO FUNDADA NA GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME. PRECEDENTES. COMPLEMENTAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA PELO STJ NO JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. I – Os requisitos autorizadores descritos no art. 312 do Código Processual Penal não foram concretamente demonstrados pelo magistrado de piso. II – Não bastam a gravidade do crime e a afirmação abstrata de que o réu oferece perigo à sociedade para justificar a imposição da prisão cautelar ou a conjectura de que, em tese, a ordem pública poderia ser abalada com a soltura do acusado. III – É vedado ao Superior Tribunal de Justiça, ao analisar ordem de habeas corpus, agregar fundamentos ao decreto de prisão preventiva em prejuízo do paciente. IV – Ordem concedida.” (HC 137034, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 16/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-113 DIVULG 29-05-2017 PUBLIC 30-05-2017) grifo nosso

Já nesse segundo, HC 140.441, o STJ discordou do regime imposto para prover recurso especial do Ministério Público e agravá-lo. Ordem concedida pelo STF.

“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO À 4 ANOS E 10 MESES DE RECLUSÃO. IMPOSIÇÃO DO REGIME INICIAL FECHADO. SANÇÃO MAIS GRAVOSA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. INADMISSIBILIDADE. SÚMULAS 718 E 719 DO STF. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS AO PACIENTE. ANÁLISE DA NATUREZA E QUANTIDADE DE DROGA. REEXAME DE PROVAS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. VEDAÇÃO DE REEXAME DE PROVAS EM RECURSO ESPECIAL. SÚMULA 7 DO STJ. RÉU PRIMÁRIO. CONDIÇÕES FAVORÁVEIS. APLICAÇÃO DO REGIME SEMIABERTO. ORDEM CONCEDIDA. I – O condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 anos e não exceda a 8 anos tem o direito de cumprir a pena corporal em regime semiaberto (art. 33, § 2°, b, do CP), caso as circunstâncias judiciais do art. 59 lhe forem favoráveis. II – A imposição de regime de cumprimento de pena mais gravoso deve ser fundamentada, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima (art. 33, § 3°, do CP) . III – Não é dado ao STJ revolver fatos e provas para, analisando a quantidade e a qualidade de droga, impor ao réu regime prisional mais gravoso. IV – Ordem concedida para fixar o regime semiaberto para o desconto da pena de reclusão.” (HC 140441, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 28/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-096 DIVULG 08-05-2017 PUBLIC 09-05-2017) grifo nosso

 

São bons julgados, para quem estuda e para quem atua na área.

Brasília, 5 de junho de 2017