Arquivo da tag: droga

Pena excessiva e domiciliar*

Pena excessiva e domiciliar*

Não tenho conseguido tempo para escrever textos com calma, mas acho que alguns recursos que apresentam falam por si.

O agravo que colocarei abaixo é um desses casos.

Mãe de filho de 2 anos, condenada a pena bastante elevada que tenta a prisão domiciliar. Nenhum dos crimes pelos quais foi condenada foi praticado com violência.

O Ministro Ricardo Lewandowski indeferiu o pedido, Interpus agravo que deve ser julgado brevemente (RHC 217978/STF)

Brasília, 9 de agosto de 2022

Gustavo de Almeida Ribeiro

*atualização em 03/09/2022:

A votação do agravo chegou a estar 3 a 0 contra, quando o Ministro Edson Fachin mudou seu voto para a concessão, passando para 2 a 1. Em seguida, veio o voto do Min. Nunes Marques, formando 3 a 1 contra. Faltando poucas horas para o final da votação virtual, o Ministro Gilmar Mendes pediu destaque e tirou o agravo do sistema virtual.

O Ministro Ricardo Lewandowski reconsiderou a decisão anterior e concedeu a ordem. Algumas vitórias renovam o ânimo. Foi um caso bem conduzido, em vários aspectos.

Tráfico de drogas e prisão preventiva – 3,96g de cocaína

Tráfico de drogas e prisão preventiva – 3,96g de cocaína

 

Como o caso divulgado em meu twitter gerou repercussão, vou colocar abaixo a íntegra da decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes no RHC 188194/STF, que manteve a prisão preventiva de pessoa acusada do tráfico de 3,96g de cocaína.

Brasília, 27 de agosto de 2020

Gustavo de Almeida Ribeiro

Decisão RHC 188194 STF

Tráfico de drogas, associação tráfico e uma pena pesada

Tráfico de drogas, associação tráfico e uma pena pesada

 

Apresento, a seguir, as razões do agravo interno que interpus perante o STF, no RHC 173322.

Os agravantes, inicialmente, foram condenados pelo tráfico de 23,2g de cocaína. Em sede de apelação ministerial, a condenação passou para tráfico e associação para o tráfico, o que fez com que a pena de um, que era de 1 ano e 8 meses, chegasse a 8 anos. O STJ manteve a condenação imposta pelo TJSC.

A Ministra Cármen Lúcia negou seguimento ao RHC, pelo que apresentei o agravo que segue abaixo.

Brasília, 28 de agosto de 2019

(os agravantes serão identificados por LF e M)

 

BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS

O Juízo da 4° Vara Criminal da Comarca de Joinville/SC julgou parcialmente procedente a denúncia para condenar o acusado LF como incurso no delito tipificado no artigo 33, §4°, da Lei 11.343/2006, à pena de 1 ano e 8 meses de reclusão a ser cumprida em regime inicial fechado, bem como ao pagamento de 112 dias-multa, e M pelo delito tipificado no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006, à pena de 6 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 600 dias-multa.

Inconformado, o Ministério Público interpôs apelação por discordar da absolvição dos acusados quanto ao crime de associação para o tráfico de drogas e da aplicação do redutor previsto no art. 33, §4°, da Lei 11.343/06.

Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reformou a sentença para condená-los como incursos no delito do art. 35 da Lei de Drogas, redimensionando suas penas para 8 anos de reclusão e pagamento de 1.200 dias-multa (LF) e 10 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, e pagamento de 1552 dias multa (M), bem como afastou o redutor do tráfico privilegiado concedido ao agravante LF.

Ante tal acórdão, a Defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, não conhecido em decisão monocrática do Ministro relator.

Em seguida, os acusados apresentaram agravo regimental ao qual foi negado provimento pela Quinta Turma do STJ.

A defesa então interpôs recurso ordinário em habeas corpus destinado ao Supremo Tribunal Federal, pugnando fosse reconhecida a ilegalidade do referido acórdão recorrido.

Todavia, a Eminente Ministra Relatora negou seguimento ao recurso ordinário por entender que seria necessário o reexame fático-probatório do processo, inviável na via do remédio constitucional.

Com a devida vênia, tal entendimento não merece prosperar, conforme será demonstrado a seguir.

 

DAS RAZÕES RECURSAIS

O recurso ordinário foi interposto em face de decisão que não conheceu de habeas corpus impetrado perante o STJ, mantida em sede colegiada pela Quinta Turma daquela Corte. Segundo o Tribunal Superior, seria necessária a incursão no caderno probatório para a concessão da ordem.

Questiona-se a condenação dos recorrentes pela prática de associação para o tráfico, imposta pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que resultou, ainda, no afastamento, quanto ao acusado LF, da causa de diminuição de pena prevista no §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, em relação à sua condenação pelo tráfico.

Importa dizer que, segundo a denúncia, os dois agravantes, se somadas as porções de droga encontradas, foram flagrados com 23,2g de cocaína, o que está longe de ser grande quantidade.

Em razão das condenações por tráfico e associação, impostas pelo TJSC, os recorrentes receberam penas elevadas, no total de 8 anos, para LF e 10 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, para M.

O Tribunal Estadual, ao prover o recurso ministerial, buscou esteio em elementos tênues e, às vezes, sequer submetidos ao crivo do contraditório, conforme será demonstrado a seguir.

Assim, com a devida licença, não há necessidade de incursão em aspectos fáticos ou probatórios para o provimento do presente agravo e do recurso ordinário.

Como já mencionado, o Juízo de primeiro grau afastou a condenação dos agravantes pela associação para o tráfico por entender não haver prova suficiente da estabilidade associativa entre os acusados: “Não há filmagens, escutas telefônicas ou troca de mensagens, que pudessem demonstrar que os réus estariam efetivamente associados.” (sentença – fls. 282 e-STJ)

Para prover o apelo do Ministério Público, o Tribunal invocou a confissão extrajudicial de um dos agravantes, bem como o depoimento de policiais que disseram já ter prendido o acusado M em data anterior.

O fundamento invocado pela Eminente Desembargadora em seu voto, transcrito na r. decisão agravada, em momento algum indica estabilidade entre os agravantes. A associação para o tráfico deve ser estável, duradoura, carecendo, para sua comprovação, de suporte mínimo que vá além da palavra de policiais que efetuaram a prisão ou da oitiva do acusado em sede policial.

Aqui, frisa-se, não se trata de desabonar a manifestação dos policiais, mas de questionar qual seu conhecimento dos fatos para afirmar que havia colaboração estável entre os dois agravantes capaz de fundamentar a condenação pela associação. Esse tipo de prova deve ser feito com investigação mais aprofundada que mera afirmação de quem efetuou a prisão, que pode até retratar um momento, mas está longe de indicar conhecimento prolongado do que ocorria na casa em questão.

Aliás, o entendimento trazido pela Lei 11.343/06 é justamente no sentido de que a associação deve ser estável, não mais sendo punida a associação momentânea, como ocorria sob a égide da Lei 6368/76. Nesse sentido, cabe transcrever decisões do STJ e do STF:

 

AGRAVO REGIMENTAL MINISTERIAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. AUSÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DA ASSOCIAÇÃO. LOCALIDADE DOMINADA POR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PRESUNÇÃO DE ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO CONCRETA DO VÍNCULO E ESTABILIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.

AGRAVO IMPROVIDO.

  1. Firmou-se neste Superior Tribunal de Justiça entendimento no sentido de que indispensável para a configuração do crime de associação para o tráfico a evidência do vínculo estável e permanente do acusado com outros indivíduos.
  2. Ainda que seja de conhecimento o domínio da localidade por facção criminosa e a quantidade de drogas denotem envolvimento com atividades criminosas, não há na sentença ou no acórdão qualquer apontamento de fato concreto a caracterizar, de forma efetiva, o vínculo associativo estável e permanente entre o paciente e a organização criminosa, requisito necessário para a configuração do delito de associação para o tráfico, imperiosa é a absolvição.
  3. Agravo regimental improvido.”

(AgRg no HC 471.155/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019) grifo nosso

 

“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. NULIDADES DAS ESCUTAS TELEFÔNICAS. NÃO OCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. DOSIMETRIA DA PENA. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. CARACTERIZADOS OS ELEMENTOS TIPIFICANTES. APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA (ART. 33, § 4º, DA LEI DE DROGAS). INVIABILIDADE. 1. À luz da norma inscrita no art. 563 do Código de Processo Penal, a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que o reconhecimento de nulidade dos atos processuais demanda, em regra, a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte. Vale dizer, o pedido deve expor, claramente, como o novo ato beneficiaria o réu. Sem isso, estar-se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional. 2. Não se vislumbra nenhuma irregularidade ou nulidade das transcrições realizadas nos autos do inquérito policial, capazes de comprometer o acervo probatório e a condenação do paciente. Consta que todos os diálogos captados por meio das escutas telefônicas autorizadas judicialmente foram disponibilizados nos autos da ação penal, mesmo antes do oferecimento da denúncia, de modo que a defesa poderia ter solicitado a transcrição de tudo ou da parte que entendesse necessário, o que não foi providenciado por nenhum dos causídicos. 3. Os arts. 33, § 1º, I, e 34 da Lei de Drogas – que visam proteger a saúde pública, com a ameaça de produção de drogas – tipificam condutas que podem ser consideradas mero ato preparatório. Assim, evidenciado, no mesmo contexto fático, o intento de traficância do agente (cocaína), utilizando aparelhos e insumos somente para esse fim, todo e qualquer ato relacionado a sua produção deve ser considerado ato preparatório do delito de tráfico previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/06. Aplica-se, pois, o princípio da consunção, que se consubstancia na absorção do delito meio (objetos ligados à fabricação) pelo delito fim (comercialização de drogas). Doutrina e precedentes. 4. Não há nenhum vício apto a justificar o redimensionamento da pena-base fixada pelo juízo sentenciante, que tomou como circunstâncias preponderantes a grande quantidade de droga apreendida, bem como a quantidade de instrumentos e utensílios encontrados no laboratório do grupo criminoso, reprimenda, ademais, que se mostra proporcional à luz das circunstâncias declinadas nos autos. Precedentes. 5. Encontra-se suficientemente demonstrada nos autos a prévia combinação de vontades entre, pelo menos, o paciente e uma corré, de caráter duradouro e estável, necessária e suficiente para configuração do crime de associação para o tráfico descrito no art. 35 da Lei 11.343/2006. Precedentes. 6. A questão relativa à incidência da agravante do art. 62, I, do Código Penal não foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça e, portanto, qualquer juízo desta Corte sobre ela implicaria supressão de instância e contrariedade à repartição constitucional de competências. 7. As instâncias ordinárias concluíram que o paciente se dedicava a atividades ilícitas, aderindo à organização criminosa dedicada à fabricação e à comercialização de droga. Nesse contexto, revela-se inviável a utilização do habeas corpus para reexaminar fatos e provas com vistas a aplicar a minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, que tem a clara finalidade de apenar com menor grau de intensidade quem pratica de modo eventual as condutas descritas no art. 33, caput e § 1º, em contraponto ao agente que faz do crime o seu modo de vida, o qual, evidentemente, não goza do referido benefício (cf. justificativa ao Projeto de Lei 115/2002 apresentada à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação). Precedentes. 8. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, concedido, em parte.” (HC 109708, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 23/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 31-07-2015 PUBLIC 03-08-2015) grifo nosso

 

Além de demonstrar a exigência da estabilidade para o delito de associação, o julgado da Segunda Turma do STF acima transcrito assentou que é preciso prova robusta para a condenação por tal delito. No caso a que se refere o julgado, foram feitas investigações com base, inclusive, em escutas telefônicas, conforme se lê na ementa.

A situação ora em exame é bem distinta. A condenação sobreveio com base em afirmações dos policiais que efetuaram a prisão, que sequer poderiam saber de eventual estabilidade do grupo, sem investigações prévias ou sem se basear em ilações vagas, tais como as transcritas no acórdão do TJSC.

Não se exige para se chegar a tal conclusão, qualquer análise aprofundada do caderno probatório, bastando a leitura do acórdão que condenou os agravantes pela associação.

A prevalecer o entendimento esposado pela Corte Estadual, todas as vezes em que flagradas mais de uma pessoa com droga, a condenação pela associação será quase consequência inevitável.

Assim, deve ser provido o presente agravo, bem como o recurso ordinário em habeas corpus, afastando-se a condenação pela associação para o tráfico e restabelecendo-se, quanto ao acusado L, a minorante do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06.

O outro lado da moeda

O outro lado da moeda

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Em razão da apreensão de grande quantidade de droga, com militar que fazia parte da tripulação que acompanharia o Presidente da República em viagem internacional, surgiu com força a discussão sobre a pena prevista para o tráfico de drogas no Código Penal Militar, bem mais branda que aquela prevista na Lei Penal comum (Lei 11.343/06).

Confesso que acho curioso que agora estejam as autoridades se atentando para a questão, suscitada há tempos pela Defensoria Pública da União, ao defender militares, normalmente praças, flagrados com quantidades ínfimas de maconha.

Explica-se. O artigo 290 do CPM disciplina a posse para uso e para o tráfico de drogas, estabelecendo pena mínima de 1 ano e máxima de 5 anos. Assim, o texto legal, completamente anacrônico e divorciado da realidade atual, coloca as duas condutas no mesmo tipo penal, pelo que acaba sendo rigoroso com o usuário e brando com o traficante.

A DPU já cansou de alegar que o tratamento dado ao usuário pela Lei Penal Militar é excessivo, que não se justifica a imposição de pena a quem, segundo a Lei dos civis, merece ajuda. Aliás, sustentei esse tema perante o STF algumas vezes.

Todavia, a resposta recebida sempre foi a da prevalência da hierarquia e da disciplina, salvo um breve período em que a Segunda Turma do STF acolheu a tese da DPU, antes de ser vencida no Plenário. Prevaleceram o princípio da especialidade e a invocação de que os militares andam armados, pelo que estaria justificado o tratamento mais rigoroso. Quanto a este último aspecto, teço duas observações: a primeira delas é que parece mais adequado excluir das Forças Armadas o usuário de droga do que colocá-lo na prisão, a segunda é que se o critério for porte de arma ou utilização de maquinário pesado, policiais civis e aviadores civis, para dar exemplos, teriam que ser submetidos ao CPM também.

Certo é que agora todos estão questionando a pena máxima para o traficante militar, achando que a resposta pode ser branda demais. Aproveito para criticar a pena para o usuário prevista no CPM. Talvez esteja na hora de colocar as coisas em seu devido lugar.

Brasília, 1º de julho de 2019

Reavaliação de provas em Habeas Corpus

Reavaliação de provas em Habeas Corpus

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

A Segunda Turma do STF iniciou hoje a apreciação do agravo interno no HC 152001. A ordem de habeas corpus havia sido denegada, em decisão monocrática, pelo Ministro Ricardo Lewandowski.

A discussão de mérito de habeas corpus é a possibilidade de aplicação da redutora prevista no §4º, do artigo 33, da Lei 11343/06.

A primeira e a segunda instância, como se verá no corpo do agravo abaixo colacionado, entenderam que o paciente do habeas corpus não integrava organização criminosa, fazendo jus à causa de diminuição de pena.

Por discordar de tal entendimento, o STJ proveu apelo especial ministerial, decotando a redutora.

Hoje, ao iniciar o julgamento do agravo, houve discussão sobre reavaliação de provas em sede de habeas corpus. Mas em sede de recurso especial tal reavaliação é permitida? Pior, permite-se mera ilação de que o acusado integrava organização criminosa contra manifestação expressa das instâncias ordinárias?

O Ministro Ricardo Lewandowski manteve seu voto pela denegação. Em seguida, os Ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin votaram pela concessão da ordem (ainda que de ofício). O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista da Ministra Cármen Lúcia.

Aguardemos.

O agravo segue abaixo.

Brasília, 19 de fevereiro de 2019

 

 

BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS

O Douto Julgador de primeiro grau condenou o agravante à pena privativa de 02 (dois) anos de reclusão, no regime inicial aberto, e ao pagamento de 200 (duzentos) dias-multa, por incursão no artigo 33, caput, combinado com o artigo 40, inciso I, ambos da Lei 11.343/2006. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direitos.

Em face da sentença, houve a interposição de recurso de apelação pela acusação. O TRF da 1.ª Região negou provimento a esse recurso, mediante acórdão assim ementado:

“PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS. ART. 33 C/C O ART. 40, I, DA LEI 11.343/06. DOSIMETRIA MANTIDA.

  1. Na fixação da pena-base para o crime de tráfico de drogas o juiz deve considerar, preponderantemente, sobre as circunstâncias do art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, além da personalidade e da conduta social do agente. No presente caso, considerando que somente a natureza – cocaína – e a quantidade – 4.055 g – da substância entorpecente apreendida em poder do réu foram consideradas desfavoráveis ao réu, correto o quantum fixado na sentença.
  2. A atenuante da confissão espontânea, por seu caráter objetivo, deve ser aplicada sempre que o réu, de maneira voluntária e sem ressalvas, confessa a prática delitiva, não importando as circunstâncias em que efetivada. Também deve incidir, como na hipótese, em que o interrogatório constituiu fundamento para a condenação.
  3. O acusado que preenche os requisitos do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 – ser primário, de bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas nem integrar organização criminosa – tem direito subjetivo à redução de pena prevista nesse dispositivo. O quantum da redução deve ser fixado pelo Juiz, observando-se as circunstâncias do crime e as condições pessoais do acusado que, na hipótese, justificam a redução pelo patamar máximo.
  4. As penas restritivas de direitos podem ser definidas pelo Juízo da Execução, a teor do que estabelecem os artigos 66, V a, e 180, ambos da Lei nº 7.210/84. Cabe ao Juízo da Execução, por sua maior proximidade com o réu, avaliar a real situação para o cumprimento da pena.
  5. Apelação não provida.” (grifo nosso)

Diante dessa decisão proferida em segundo grau, a acusação interpôs recurso especial, o qual não foi admitido na origem, seguido da interposição de agravo para alçar o feito à superior instância. No STJ, o Ministro Relator, por decisão monocrática, conheceu do agravo para dar provimento ao recurso especial. Houve, então, a interposição de agravo regimental defensivo, o qual teve provimento negado pela Sexta Turma daquele Tribunal Superior, mediante acórdão assim ementado:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA. IMPOSSIBILIDADE. DEDICAÇÃO À ATIVIDADE CRIMINOSA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

  1. As circunstâncias em que perpetrado o delito de tráfico transnacional de drogas – mais de 4 kg de cocaína trazidos da Bolívia, ocultados em um compartimento costurado dentro da bagagem do agente e transportados por meio de um táxi boliviano – não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica, com certa frequência e anterioridade, a atividades delituosas, no seio dos objetivos de uma organização criminosa, de maneira que não há como aplicar a causa especial de diminuição de pena descrita no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343⁄2006.
  2. Especificamente no caso dos autos, a conclusão pela impossibilidade de incidência da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas não demanda o revolvimento de matéria fático-probatória, procedimento, de fato, vedado em recurso especial. O caso em análise, diversamente, demanda apenas a revaloração de fatos incontroversos que já estão delineados nos autos e das provas que já foram devidamente colhidas ao longo de toda a instrução probatória, bem como a discussão, meramente jurídica, acerca da interpretação a ser dada ao art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343⁄2006. Não há falar, portanto, em incidência da Súmula n. 7 do STJ.
  3. Agravo regimental não provido.” (grifo nosso)

Impetrado habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal em face do acórdão prolatado pela Corte Superior, o Eminente Ministro Relator, em decisão monocrática, denegou a ordem.

No entanto, a decisão singular não merece prosperar, como será demonstrado a seguir.

 

DAS RAZÕES RECURSAIS

No entender do agravante, a decisão proferida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça é ilegal porque reexaminou fatos e provas para afastar as premissas assentadas pelas instâncias ordinárias para chegar a conclusões diferentes daquelas a que chegaram o primeiro e o segundo graus de jurisdição.

No caso dos autos, faz-se essencial o cotejo do quanto firmado pelas instâncias iniciais com a conclusão a que chegou o Egrégio STJ, para que reste inequívoca a realização de revolvimento fático em sede de apelo especial.

Não se trata aqui, calha frisar, de entendimento jurídico diferente em relação ao adotado na origem, mas verdadeiro reexame de fatos e provas. A diferenciação pode parecer tênue, mas nem por isso, deixa de ser constatável.

Com efeito, acerca da incidência da causa de diminuição prevista no artigo 33, §4.º, da Lei 11.343/2006, a sentença registrou as seguintes premissas:

[…] Considerando que o réu é primário, portador de bons antecedentes e não havendo provas de que ele se dedique à prática de atividades criminosas e de que faça parte de organização criminosa, e que ainda auxiliou na identificação de outra pessoa relacionada ao fato, reduzo a pena em 2/3 (dois terços), nos termos do § 4º, art. 33, da Lei 11.343/2006, alcançando-se a pena de 2 (dois) anos e 200 (duzentos) dias-multa. […] grifo nosso

Bem assim, o TRF da 1.ª Região fez constar na ementa do acórdão que o réu não se dedica às atividades criminosas. Além disso, consta do voto proferido pela Relatora do recurso de apelação a seguinte fundamentação:

[…] Também inexiste fundamento jurídico para excluir do cálculo da pena, a causa de diminuição prevista no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006. O réu preenche os requisitos legais, pois é primário, possui bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas, além de não haver prova nos autos de que seja integrante de organização criminosa.

O quantum de redução fixado – 2/3 (dois terços) – deve ser mantido, tendo em vista a plausibilidade do fundamento apresentado pelo Julgador a quo, no sentido de que, além da presença dos requisitos legais, o réu “ainda auxiliou na identificação de outra pessoa relacionada ao fato” (fl. 107v) […] grifo nosso

As conclusões do órgão julgador de segundo grau, portanto, são claras: o réu preenche todos os requisitos necessários para a aplicação da minorante prevista no § 4.º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 em seu grau máximo. E mais do que isso, colaborou com as autoridades para a identificação de outra pessoa relacionada ao fato.

Paradoxalmente, porém, o Ministro Relator do AREsp 1.062.014/MT, bem como os demais Ministros integrantes da Sexta Turma do STJ que participaram do julgamento do agravo regimental, desprezaram as premissas assentadas pelo Juiz Federal sentenciante e pelo TRF da 1ª Região.

A soberania dos órgãos julgadores de primeiro e segundo graus para a análise dos fatos e das provas foi afastada porque, ao sentir do Ministro Relator do AREsp 1.062.014/MT, no presente caso, as circunstâncias em que perpetrado o delito “não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica, com certa frequência e anterioridade, a atividades delituosas, no seio dos objetivos de uma organização criminosa”.

Nesse contexto, bem mais do que mera “revaloração de fatos incontroversos”, houve claríssimo revolvimento do material fático-probatório para alcançar conclusões diferentes daquelas assentadas pelas instâncias ordinárias. Houve, em verdade, ilação, no sentido de que, presentes certas circunstâncias, estará sempre configurada a organização criminosa.

Ademais, além de constituir violação à Súmula 7 do STJ, o argumento de que as circunstâncias do crime não se compatibilizam com a posição de quem não se dedica a atividades delituosas no seio de uma organização criminosa não constitui mais do que uma suposição, uma mera possibilidade, que não enseja o juízo de certeza que é necessário para amparar o afastamento da minorante aplicada pelas instâncias ordinárias.

O acórdão ora impugnado, portanto, parece uma reafirmação, por via transversa e dissimulada, do velho entendimento segundo o qual a pessoa que exerce a função vulgarmente chamada de “mula” necessariamente integra organização criminosa e por isso não faz jus à minorante prevista no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/2006.

Com efeito, o acórdão ora impugnado faz referência a uma hipotética dedicação a atividades criminosas e a uma imaginária organização criminosa, sem vinculação a nenhum elemento concreto de convicção. Em verdade, a negativa da causa de diminuição de pena em questão se funda tão somente em ilações e conjecturas, de modo a incorrer em vício de fundamentação aferível de plano.

Inicialmente, impende destacar que a mera condição de mula não implica, obrigatoriamente, em participação em organização criminosa ou em dedicação habitual ao crime, conforme entendimento assentado nas duas Turmas do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA Habeas corpus. Penal e Processual Penal. Tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/06). Pena-base. Majoração. Valoração negativa da natureza e da quantidade da droga (2.596 g de cocaína). Admissibilidade. Vetores a serem considerados necessariamente na dosimetria (art. 59, CP e art. 42 da Lei nº 11.343/06). “Mula”. Aplicação da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas. Admissibilidade. Inexistência de prova de que o paciente integre organização criminosa. Impossibilidade de negar a incidência da causa de diminuição de pena com base em ilações ou conjecturas. Precedentes. Percentual de redução de pena: 1/6 (um sexto). Admissibilidade. Fixação em atenção ao grau de auxílio prestado pelo paciente ao tráfico internacional. Ordem de habeas corpus concedida, para o fim de cassar o acórdão recorrido e restabelecer o julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Federal. 1. É pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que a natureza e a quantidade da droga constituem motivação idônea para a exasperação da pena-base, nos termos do art. 59 do Código Penal e do art. 42 da Lei nº 11.343/06. Precedentes. 2. Descabe afastar a incidência da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06 com base em mera conjectura ou ilação de que o réu integre organização criminosa. Precedentes. 3. O exercício da função de “mula”, embora indispensável para o tráfico internacional, não traduz, por si só, adesão, em caráter estável e permanente, à estrutura de organização criminosa, até porque esse recrutamento pode ter por finalidade um único transporte de droga. Precedentes. 4. O paciente, procedente da Venezuela, foi flagrado na posse de 2.596 g de cocaína no aeroporto de Guarulhos, no momento em que se preparava para embarcar em voo para a África do Sul, com destino final em Lagos, na Nigéria. 5. Correta, portanto, a valoração negativa do grau de auxílio por ele prestado ao tráfico internacional, na terceira fase da dosimetria, com a fixação do percentual de redução em 1/6 (um sexto). 6. Ordem de habeas corpus concedida, para o fim de se cassar o acórdão recorrido e de se restabelecer o julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Federal, que redimensionou a pena imposta ao paciente para 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão e 485 (quatrocentos e oitenta e cinco) dias-multa.” (HC 134597, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 28/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-166 DIVULG 08-08-2016 PUBLIC 09-08-2016) grifo nosso 

“Ementa: HABEAS CORPUS EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE COCAÍNA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DA PENA. INEXISTÊNCIA DE PROVA DE QUE O RÉU INTEGRE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. 1. A causa especial de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 não pode ser indeferida com apoio em ilações ou em conjecturas de que o réu se dedique a atividades ilícitas ou integre organização criminosa. 2. Sentença de primeiro grau que reconheceu, com apoio na prova judicialmente colhida, o preenchimento de todos os requisitos indispensáveis ao reconhecimento da minorante em causa. 3. Habeas Corpus extinto sem resolução de mérito por inadequação da via processual. 3. Ordem concedida de ofício para restabelecer a sentença de primeiro grau, no ponto específico.” (HC 111309, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 04/02/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 08-04-2014 PUBLIC 09-04-2014) grifo nosso

Razão assiste à Suprema Corte: não é correto o afastamento da causa de diminuição de pena em questão com base em mera conjectura ou ilação de que o réu se dedica a atividades criminosas ou de que tenha colaborado com suposta organização criminosa.

Em julgado recente, a Colenda Segunda Turma da Corte, ao apreciar habeas corpus de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que também conduz o presente writ, assim entendeu: 

“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA. AFASTAMENTO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ATIVIDADE DE ‘MULA’. INTEGRANTE DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. NÃO COMPROVAÇÃO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE. I – No crime de tráfico de drogas, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 a 2/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes e não se dedique a atividades ilícitas nem integre organização criminosa. II – A exclusão da causa de diminuição, prevista no § 4° do art. 33 da Lei 11.343/2006, somente se justifica quando indicados expressamente os fatos concretos comprovando que a denominada “mula” integre a organização criminosa. Precedentes. III – O Código Penal determina que o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto. Sendo o réu primário e com bons antecedentes, requisitos aferidos na sentença condenatória, não há motivos que impeçam a fixação do regime semiaberto para o cumprimento inicial da pena. IV – Não é lícito ao Superior Tribunal de Justiça revolver fatos e provas para desconsiderar a classificação de tráfico privilegiado estabelecidas nas instâncias inferiores. V – Sendo o réu primário e com bons antecedentes, requisitos aferidos na sentença condenatória, não há motivos que impeçam a fixação do regime mais brando para o cumprimento inicial da pena. VI – Ordem concedida em parte.” (HC 139327, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 18/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 31-07-2017 PUBLIC 01-08-2017) grifo nossoA Corte Superior fez exatamente o que foi rechaçado pelo STF no julgado acima, ou seja, a partir da reconsideração de fatos, afastou a minorante concedida ao agravante.

Aliás, com a devida vênia, a própria decisão agravada demonstra claramente a necessidade de revolvimento fático-probatório para o afastamento da causa de diminuição da pena no caso em análise. Transcreve-se:

“Como se vê, a conclusão da dedicação do paciente ao tráfico ilícito de drogas, com participação em organização criminosa, não foi apoiada em meras ilações ou suposições, como se alega. No ponto, a Corte Superior de Justiça destacou as especiais circunstâncias em que o delito foi praticado, demonstrando a forma despretensiosa e ousada com que o paciente carregava 4kg de cocaína trazidos da Bolívia, os quais eram ocultados em um compartimento previamente ajustado dentro de sua bagagem de mão, e transportado por meio de um táxi boliviano. Esses aspectos, a meu sentir, destoam daqueles que normalmente são verificados quando a traficância é praticada pela primeira vez, sem maiores planejamentos. É dizer, esses elementos, de fato, demonstram a dedicação do paciente ao tráfico de drogas e a integração dele em organização criminosa.”

Ora, o procedimento narrado acima é o que usualmente acontece quando há transporte de droga, principalmente em âmbito internacional. A conduta do agravante não desbordou do que normalmente ocorre: acondicionamento, uso de mala, de meio de locomoção.

O tráfico internacional tem punição mais gravosa justamente por sua maior complexidade; por isso, considerar o acondicionamento, ou forma de transporte como participação grupo criminoso, além de demandar reexame de fato, vai de encontro à jurisprudência da Corte.

É de se ver, ademais, que o acórdão impugnado valorou a circunstância composta pelo binômio quantidade e natureza da droga tanto na primeira quanto na terceira fase da dosimetria da pena, em desacordo com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Dosimetria penal no tráfico – quantidade e qualidade das drogas

Dosimetria penal no tráfico – quantidade e qualidade das drogas

 

Pediram que eu colocasse aqui o memorial apresentado no HC 153339, em que se discute o momento de aplicação das circunstâncias “quantidade” e “qualidade” das drogas na dosimetria penal do crime de tráfico.

O STF já fixou a tese no sentido de que a quantidade e a qualidade das drogas não podem ser utilizadas em das fases da dosimetria, sob pena de inadmissível bis in idem, devendo ser escolhida a primeira fase ou a terceira para sua incidência (HC 112776, STF, Plenário, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 30/10/2014).

Todavia, há julgados cindindo as duas circunstâncias, aplicando uma delas em cada fase, o que, segundo entendo, acaba por gerar majoração indevida na pena imposta.

Infelizmente, nunca consegui sustentar o tema, já que ele nunca foi levado ao colegiado sem a necessidade de interposição de agravo, todavia, apresentei memoriais que serão abaixo transcritos.

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 12 de dezembro de 2018

 

BREVE NARRAÇÃO DOS FATOS

O paciente foi condenado pela suposta incursão na conduta prevista no artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006 à pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de reclusão, em regime inicial aberto, bem como ao pagamento de 200 dias-multa. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direitos.

A sentença foi parcialmente reformada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que, dando provimento a recurso do Ministério Público, alterou a fração aplicada para a causa de redução de pena do §4º do art. 33 da Lei de Drogas, majorando a pena cominada – estabelecendo-a em 5 anos e 1 mês de reclusão – e, por conseguinte, modificou para o semiaberto o regime inicial de cumprimento da pena.

A Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina interpôs revisão criminal, a qual foi indeferida.

Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus junto ao STJ, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que indeferiu a revisão criminal, por meio do qual requereu-se a revisão de pena empregada ao paciente, para aplicar a fração redutora prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, no patamar máximo, bem como aplicação, na primeira fase da dosimetria, da exasperação de 1/6, com consequente modificação do regime de pena para o aberto e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Em decisão monocrática, o habeas corpus não foi conhecido, porém concedeu-se ordem de ofício para se reduzir a pena-base do paciente, sendo fixada a pena final em 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime inicial semiaberto.

Inconformada, a defesa interpôs agravo regimental sob a alegação da incidência de bis in idem ao se considerar a natureza da droga para elevar a pena-base e sua quantidade para reduzir o percentual de diminuição na terceira fase da dosimetria. Além disso, requereu o restabelecimento da aplicação da minorante prevista no artigo 33, §4.º, da Lei 11.343/2006, no patamar de 2/3 (dois terços), tal como determinara a sentença. O agravo foi desprovido.

Em seguida, foi impetrado habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, sendo a ordem denegada. Assim, a defesa interpôs agravo interno, que, espera, seja conhecido e provido.

 

DOS FUNDAMENTOS PARA A CONCESSÃO DA ORDEM

O julgado atacado pela impetração mostra de forma cristalina a razão do inconformismo do paciente. Calha transcrever trecho da decisão monocrática prolatada pelo Ministro Relator, no STJ, mantida em sede de agravo interno:

“No caso, conforme relatado, o magistrado de primeiro grau aplicou o § 4º do art. 33 da Lei de Drogas no patamar máximo (2/3). O Tribunal a quo, porém, em recurso da acusação, alterou essa fração para 1/6, sob o fundamento, dentre outros, de que a qualidade e a variedade das drogas bastam para o aumento da pena-base e a elevada quantidade para justificar a aplicação dessa minorante em patamar inferior. Confira-se, aliás, o seguinte trecho do acórdão (…)” (HC 406252, STJ, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe 15/12/2017) 

Em síntese: quantidade e qualidade das drogas apreendidas com o paciente foram cindidas, sendo cada uma delas usada em uma fase da dosimetria penal.

Não há, com a devida vênia, qualquer necessidade de reexame de fatos e provas, sendo a discussão totalmente jurídica. O inconformismo da defesa limita-se à cisão feita pelo TJSC ao apreciar a quantidade e a qualidade da droga em duas fases da dosagem da pena.

A situação em questão não se confunde com o precedente firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 112.776/MS.

Todavia, respeitosamente, cumpre esclarecer que o mencionado julgado vedou a aplicação da quantidade e da qualidade das drogas em duas fases de dosimetria, sem, contudo, permitir que as duas fossem fracionadas, sendo uma invocada na primeira fase e outra na terceira.

O julgado mencionado, HC 112776, foi encerrado após amplo debate ocorrido no Plenário da Suprema Corte, oportunidade em que foi afastada a aplicação da quantidade e da qualidade das drogas em duas fases da fixação da pena.

É interessante observar que, no citado precedente, o paciente era acusado de portar 14,945 kg de maconha e 150 gramas de haxixe[1]. Assim, se prevalecesse o entendimento esposado nas instâncias anteriores, a quantidade de maconha poderia ter sido invocada para se manter a majoração na primeira fase e o haxixe, pela qualidade, para manter o aumento na terceira fase. O resultado seria a denegação da ordem.

No caso em análise, o paciente estava na posse de 451,4g de cocaína e 91,3g de maconha, quantidades bem inferiores àquelas do precedente do Plenário do STF.

O entendimento mais consentâneo com a proporcionalidade é que os dois aspectos sejam considerados em uma única fase, influenciando, de acordo com a situação concreta, no percentual de majoração da pena-base ou na fração de redução.

Em suma, as duas circunstâncias devem ser analisadas em conjunto, em uma só fase de dosimetria, influenciando mais ou menos no cômputo da pena de acordo com a quantidade/qualidade.

Calha rememorar que, em 08/02/2018, foi proferida decisão monocrática pelo Ministro Relator Celso de Mello, nos autos do HC 141.350, que veiculava discussão jurídica muito semelhante à do Habeas Corpus ora em análise.

Discutia-se, assim como nesta situação, a legalidade de se valorar negativa e separadamente a natureza e a quantidade da substância ou do produto, para, então, tornar possível o aumento da pena-base e a redução do percentual de diminuição na terceira fase da dosimetria simultaneamente.

No mencionado decisum, entendeu-se que a natureza e a quantidade são indissociáveis, não sendo possível a sua valoração em separado, em fases diferentes da fixação da pena. In verbis:

 

“O art. 42 da Lei de Drogas dispõe que serão considerados, em caráter preponderante, na operação de dosimetria penal, três ordens de fatores: (1) natureza e quantidade da substância ou do produto; (2) a personalidade; e (3) a conduta social do agente.

Vê-se desse conjunto de vetores que cada qual se apresenta de modo autônomo, sendo incindível, por isso mesmo, para os fins e efeitos a que se refere a norma legal mencionada, o fator “natureza e quantidade da substância ou do produto”, a significar que tais elementos (natureza e quantidade), por revelarem-se indecomponíveis, não deverão receber abordagem individualizada, sob pena de ofensa à vedação fundada no postulado “non bis in idem”.

Na realidade, não cabe utilizar, separadamente, nas fases distintas em que se divide o procedimento de dosimetria penal, a natureza da droga na definição da pena-base, para, em momento posterior, considerar-se, de modo isolado, a quantidade dessa mesma droga apreendida.

Disso resulta, portanto, que a natureza e a quantidade da droga apreendida, por constituírem vetor indissociável, devem ser consideradas globalmente, “in solidum”, seja na primeira etapa, seja no terceiro momento, do método trifásico em que se desenvolve a operação de dosimetria da pena.”  (HC 141350, Min. Celso de Mello, DJe 14/02/2018) (Grifo nosso)

 

Diante da inquestionável semelhança entre o caso anterior e o atual, requer a Defensoria Pública da União a aplicação do entendimento firmado para que seja concedida a ordem, aplicando-se o benefício do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas nos mesmos percentuais utilizados pela r. sentença de primeiro grau.

 

DO PEDIDO

Ante o exposto, requer seja provido o agravo e concedida a ordem de habeas corpus.

[1]  “O Haxixe causa muitos efeitos e alguns até variados dependendo do organismo daquele que ingere a droga. Se assemelham aos efeitos da maconha, porém muitos mais intensos devido a grande diferença de THC.” Disponível em: https://www.infoescola.com/drogas/haxixe/. Acesso em: 19 out. 2017

Importação de sementes de maconha segundo o STF e o STJ – resumo

Importação de sementes de maconha segundo o STF e o STJ – resumo

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Como estou estudando o tema para interpor agravo em face de duas decisões denegatórias do Ministro Dias Toffoli, aproveito para fazer um breve resumo do que tem prevalecido no STJ e no STF quanto à questão da importação de poucas sementes de maconha ser ou não ser considerada tráfico.

O Min. Dias Toffoli negou seguimento aos HCs 143557 e 144762, impetrados pela DPU perante o STF.

No Supremo, só achei duas decisões colegiadas sobre a questão da importação de sementes de maconha, discussão que passa pela aplicação da insignificância, pela desclassificação para o artigo 28 da Lei de Drogas, ao invés do artigo 33, pela desclassificação para contrabando.

Colocarei abaixo a ementa de um dos dois julgados emanados da 1ª Turma do STF que encontrei (ambos são desfavoráveis). Não vi nenhuma decisão colegiada proveniente da 2ª Turma.

“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. CRIME DE IMPORTAÇÃO DE MATÉRIA-PRIMA DESTINADA À PREPARAÇÃO DE DROGAS. ARTIGO 33, § 1º, I, DA LEI Nº 11.343/06. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUS: CRFB/88, ART. 102, I, ‘D’ E ‘I’. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE MACONHA. ALEGADA ATIPICIDADE DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Inexiste excepcionalidade que permita a concessão da ordem de ofício ante a ausência de teratologia, flagrante ilegalidade ou abuso de poder na decisão da Corte Superior que determinou o prosseguimento da ação penal por entender estarem presentes prova da materialidade e indícios suficientes de autoria. 2. In casu, o paciente foi denunciado como incurso no artigo 33, § 1º, I, c/c artigo 40, I, da Lei 11.343/06, em razão da apreensão de 16 (dezesseis) sementes de maconha em uma encomenda a ele destinada. 3. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar habeas corpus está definida, exaustivamente, no artigo 102, inciso I, alíneas “d” e “i”, da Constituição da República, sendo certo que o paciente não está arrolado em qualquer das hipóteses sujeitas à jurisdição desta Corte. 4. O habeas corpus é ação inadequada para a valoração e exame minucioso do acervo fático probatório engendrado nos autos. 5. O trancamento da ação penal é medida excepcional, cabível apenas nas hipóteses de manifesta atipicidade da conduta, de causa extintiva de punibilidade e de ausência de indícios suficientes de autoria a materialidade delitiva. 6. A reiteração dos argumentos trazidos pelo agravante na petição inicial da impetração é insuscetível de modificar a decisão agravada. Precedentes: HC 136.071-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 09/05/2017; HC 122.904-AgR, Primeira Turma Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 17/05/2016; RHC 124.487-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 01/07/2015. 7. Agravo regimental desprovido.” (HC 147459 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 01/12/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-289 DIVULG 14-12-2017 PUBLIC 15-12-2017)

Há, todavia, decisões monocráticas concedendo liminares quanto ao tema, curiosamente, da lavra de Ministros da 1ª e da 2ª Turma, apesar de, naquela, a negativa ter sido unânime: HC 144161, Min. Gilmar Mendes e HC 131310, Min. Roberto Barroso.

“A liminar deve ser deferida.

De fato, o STF entendeu haver repercussão ao recurso extraordinário (RE-RG 635.659) de minha relatoria, em que se discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, no ponto em que se criminaliza o porte de pequenas quantidades de entorpecentes para uso pessoal.

O julgamento do referido extraordinário pelo Pleno teve início em 10.9.2015. Já proferiram votos os Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso, encontrando-se os autos no Gabinete do Ministro Alexandre de Moraes, dado pedido de vista do Ministro Teori Zavascki.

No caso, o paciente está sendo processado por importar 26 sementes de maconha, que, segundo o Juízo de origem, seria para uso próprio, de forma que há real plausibilidade na alegação de que a conduta praticada pelo paciente se amolda, em tese, ao artigo 28 da Lei de Drogas – dispositivo cuja constitucionalidade, como já consignado, está sendo discutida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.” (HC 144161, Min. Gilmar Mendes, DJe 01/06/2017)

 

“EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. USO DE PEQUENA QUANTIDADE DE ENTORPECENTES. LIMINAR DEFERIDA. 1. O Plenário do STF (RE 635.659-RG) discute a constitucionalidade da criminalização do porte de pequenas quantidades de entorpecente para uso pessoal. 2. Paciente primário e de bons antecedentes que solicitou pela internet reduzida quantidade de entorpecente para uso próprio. Possível violação aos princípios da intimidade, vida privada, autonomia e proporcionalidade. 3. Liminar deferida.” (HC 131310, Min. Roberto Barroso, DJe 25/02/2016)

Por sua vez, o entendimento do STJ está dividido de acordo com as Turmas. A 5ª Turma entende se tratar de tráfico:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA.

IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE CANNABIS SATIVA LINNEU. MATÉRIA-PRIMA PARA PRODUÇÃO DE DROGA. FATO TÍPICO. PRECEDENTES. PERIGO ABSTRATO OU PRESUMIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO.

  1. Inexiste maltrato ao princípio da colegialidade, pois, consoante disposições do Código de Processo Civil e do Regimento Interno desta Corte, o relator deve fazer um estudo prévio da viabilidade do recurso especial, além de analisar se a tese encontra plausibilidade jurídica, uma vez que a parte possui mecanismos processuais de submeter a controvérsia ao colegiado por meio do competente agravo regimental. Ademais, o julgamento colegiado do recurso pelo órgão competente supera eventual mácula da decisão monocrática do relator.
  2. A jurisprudência majoritária desta Corte é no sentido de que a importação clandestina de sementes de cannabis sativa linneu (maconha) configura o tipo penal descrito no art. 33, § 1º, I, da Lei n. 11.343/2006. 3. Prevalece na Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça a diretriz no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de tráfico de drogas e de uso de substância entorpecente, por se tratar de crimes de perigo abstrato ou presumido, sendo irrelevante para esse específico fim a quantidade de sementes da droga apreendida. Precedentes.
  3. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no REsp 1733645/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 15/06/2018)

Já a 6ª Turma do STJ considera o fato como atípico, embora haja votos vencidos:

“PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL.

RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE CANNABIS SATIVA LINEU. MATÉRIA-PRIMA PARA PRODUÇÃO DE DROGA. PEQUENA QUANTIDADE DE MATÉRIA PRIMA DESTINADA À PREPARAÇÃO DE DROGA PARA CONSUMO PESSOAL.

FATO ATÍPICO.

  1. O fruto da planta cannabis sativa lineu, conquanto não apresente a substância tetrahidrocannabinol (THC), destina-se à produção da planta, e esta à substância entorpecente, sendo, pois, matéria prima para a produção de droga, cuja importação clandestina amolda-se ao tipo penal insculpido no artigo 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006.
  2. Todavia, tratando-se de pequena quantidade de sementes e inexistindo expressa previsão normativa que criminaliza, entre as condutas do artigo 28 da Lei de Drogas, a importação de pequena quantidade de matéria prima ou insumo destinado à preparação de droga para consumo pessoal, forçoso reconhecer a atipicidade do fato.
  3. Agravo regimental improvido.” (AgRg no REsp 1658928/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 12/12/2017)

O parecer da Procuradoria Geral da República no HC 144762 do STF é bastante interessante e pode ser também fonte de consulta.

O tema não deveria ter sido julgado pelo STF em decisões singulares, ainda mais havendo nítida divisão de entendimento. Contra as monocráticas só cabem os agravos internos, sem sustentação e, muitas vezes, analisados em ambiente virtual.

Brasília, 26 de julho de 2018

Dosimetria no tráfico e quantidade e qualidade das drogas

Dosimetria no tráfico e quantidade e qualidade das drogas

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Há uma questão ainda pouco enfrentada pelo STF, ao menos que seja de meu conhecimento, no sentido de ser ou não possível a cisão da quantidade e da qualidade de drogas na fixação da pena no crime de tráfico em fases distintas da dosimetria.

Em síntese, pode a quantidade ser usada em uma fase (pena-base, por exemplo) e a qualidade em outra (fração da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei 11343/06, p. ex.), ou ambas devem ser consideradas simultaneamente uma vez apenas?

Entendo que as duas deveriam ser analisadas em uma só fase, evitando-se o incremento desproporcional na pena, ainda mais considerando-se que as compreensões do que é grande quantia ou, ainda, sobre a qualidade, variam de acordo com os julgadores. A aplicação em etapas distintas causa majoração exagerada da pena, ofendendo a proporcionalidade.

Transcreverei abaixo, os trechos de duas decisões monocráticas em sentidos opostos de Ministros do STF pertencentes à mesma Turma, o que reforça minha crítica ao excesso de julgamentos singulares, aliás.

A ordem foi concedida pelo Ministro Celso de Mello no HC 141350, nos termos a seguir:

“O art. 42 da Lei de Drogas dispõe que serão considerados, em caráter preponderante, na operação de dosimetria penal, três ordens de fatores: (1) natureza e quantidade da substância ou do produto; (2) a personalidade; e (3) a conduta social do agente.

Vê-se desse conjunto de vetores que cada qual se apresenta de modo autônomo, sendo incindível, por isso mesmo, para os fins e efeitos a que se refere a norma legal mencionada, o fator “natureza e quantidade da substância ou do produto”, a significar que tais elementos (natureza e quantidade), por revelarem-se indecomponíveis, não deverão receber abordagem individualizada, sob pena de ofensa à vedação fundada no postulado “non bis in idem”.

Na realidade, não cabe utilizar, separadamente, nas fases distintas em que se divide o procedimento de dosimetria penal, a natureza da droga na definição da pena-base, para, em momento posterior, considerar-se, de modo isolado, a quantidade dessa mesma droga apreendida.

Disso resulta, portanto, que a natureza e a quantidade da droga apreendida, por constituírem vetor indissociável, devem ser consideradas globalmente, “in solidum”, seja na primeira etapa, seja no terceiro momento, do método trifásico em que se desenvolve a operação de dosimetria da pena.

(…)

Cabe enfatizar, por relevante, que essa orientação jurisprudencial tem destacado que a quantidade e a natureza do entorpecente encontrado em poder do agente constituem, na operação de dosimetria da pena, circunstância única, conforme se observa do seguinte fragmento constante da ementa do julgamento acima mencionado (HC 112.776/MS), realizado pelo Plenário desta Corte” (HC 141350, Relator Min. Celso de Mello, DJe 14/02/2018)

Por sua vez, ao apreciar o HC 148333, o Ministro Dias Toffoli denegou a ordem, adotando o entendimento abaixo reproduzido:

“Pelo que há no julgado proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, não se vislumbra ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia que justifique a concessão da ordem. Pelo contrário, a decisão em questão encontra-se suficientemente fundamentada, estando justificado o convencimento formado.

Ao contrário do pretende fazer crer a defesa, somente opera-se o bis in idem quando o juízo sentenciante considera natureza e a quantidade de droga simultaneamente na primeira e na terceira fase de individualização da reprimenda, o que não é o caso.

Com efeito, como bem conclui o Ministro Joel Ilan Paciornik em seu voto,

“a natureza da droga foi utilizada para exasperar a pena-base, nos termos do art. 42 da Lei n. 11.343/2006, enquanto a quantidade de droga foi utilizada para afastar aplicação do grau máximo de redução do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06, razão pela qual não houve ocorrência de bis in idem”.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, portanto, é consentâneo com a jurisprudência que o Supremo Tribunal firmou na matéria. Confira-se:

“Configura ilegítimo bis in idem considerar a natureza e a quantidade da substância ou do produto para fixar a pena base (primeira etapa) e, simultaneamente, para a escolha da fração de redução a ser imposta na terceira etapa da dosimetria (§ 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006). Todavia, nada impede que essa circunstância seja considerada para incidir, alternativamente, na primeira etapa (pena-base) ou na terceira (fração de redução). Essa opção permitirá ao juiz aplicar mais adequadamente o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF) em cada caso concreto” (HC nº 112.776/MS, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 30/10/14).” (HC 148333, Relator Min. Dias Toffoli, DJe 29/09/2017)

Uma consideração importante quanto à última decisão destacada acima: os precedentes do STF permitiram a aplicação da quantidade e da qualidade da droga na primeira ou na terceira fase da dosimetria alternativamente e não sua cisão para a utilização de cada uma em etapa distinta.

A decisão monocrática no HC 148333 foi impugnada por agravo interno ainda não julgado.

Como mencionado acima, infelizmente, mesmo temas inéditos têm sido apreciados em decisões monocráticas, o que faz com que, muitas vezes, matérias com aspecto apenas jurídico, acabem tendo solução diferente.

Aguardemos o julgamento do agravo e a consolidação do assunto.

Belo Horizonte, 29 de abril de 2018

O STF se arrependeu?

O STF se arrependeu?

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

O Plenário do STF proferiu, em anos recentes, várias decisões importantes no que concerne ao tráfico de drogas. Cito algumas pertinentes ao que exporei no texto:

HC 97256 – permitiu a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos no tráfico de drogas;

HC 111840 – permitiu que o cumprimento de pena se inicie em regime mais brando que o fechado no tráfico;

HC 104339 – considerou inconstitucional a vedação à liberdade provisória no tráfico.

Todavia, em casos em que tenho atuado recentemente, a maioria deles emanados de Ministros da 2ª Turma do STF, que, desde que comecei a atuar na Corte, tinham visão mais favorável aos assistidos da Defensoria, o rigor tem crescido sensivelmente, sendo invocadas circunstâncias absolutamente normais ao tráfico de drogas para se repristinar as vedações absolutas afastadas nos julgados acima mencionados.

Quantidades pequenas de droga, seu acondicionamento, o fato de a pessoa ter corrido na hora da prisão, de ser cocaína, quase tudo tem impedido a substituição da pena, a concessão de liberdade ao acusado, a fixação do regime inicial aberto.

Poderia ficar aqui enumerando vários habeas corpus denegados monocraticamente tratando do tema em questão, mas vou me limitar àquele em que trabalho agora, o HC 146570, de relatoria do Ministro Celso de Mello, em que foi negada a substituição de pena no tráfico privilegiado para pessoa flagrada com 32,28g de cocaína. Bem, se acusado que preenche os requisitos cumulativos do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06 (tráfico privilegiado) não tem direito à substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, devo concluir que ela não existe mais, pois, simplesmente alegar que a pena substituída não é suficiente não é fundamento, com o devido respeito.

Pior, tais decisões são tomadas de forma monocrática (o último HC ou RHC da DPU julgado de forma colegiada pela 2ª Turma do STF sem a necessidade de agravo foi apreciado em agosto de 2017), o que impede a sustentação oral.

Na verdade, o que sinto é a volta da gravidade em abstrato, o que, na prática, iguala os desiguais, situação que foi sempre muito criticada antes das decisões do STF que abrem o texto. Estamos voltando ao que era antes, infelizmente.

Brasília, 15 de novembro de 2017

 

Sobre temas discutidos no twitter (execução penal e tráfico de drogas)

Sobre temas discutidos no twitter (execução penal e tráfico de drogas)

 

Gustavo de Almeida Ribeiro

 

Nem sempre é fácil explicar as coisas nos limitados caracteres do twitter, mesmo usando o recurso de mandar vários em seguida.

Hoje, participei de um questionamento e fui perguntando em outro, sobre dois temas envolvendo direito penal.

Respondo aqui brevemente.

 

Execução penal, progressão e o Informativo 832 do STF

O Informativo 832 do STF noticiou o julgamento de dois agravos em 2 execuções penais oriundas da ação penal 470, o famoso “mensalão”.

Alguns cuidados devem ser tomados por quem estuda esses precedentes.

Em primeiro lugar, alguns dos crimes imputados aos acusados na citada ação, ocorreram antes da vigência da Lei 10.763/03 que alterou tanto o artigo 33 do CP, a ele acrescendo o §4º, impondo a reparação do dano nos crimes contra a administração pública para a progressão de regime, quanto o preceito secundário dos crimes de corrupção passiva e ativa. Por outro lado, outras condutas já foram posteriores, aplicando-se a elas a novel redação do Código Penal.

Em seguida, pelo que sei, nem todas as acusações foram por crimes contra a administração pública, de forma a incidir o §4º do artigo 33 do CP àqueles praticados após a Lei 10.763/03. Houve acusações sobre as mais variadas condutas.

E, segundo entendo, a exigência do STF, além da reparação do dano, foi o pagamento da multa, ainda que parcelada, ou a demonstração da impossibilidade de fazê-lo. Multa e reparação do dano não se confundem. A leitura do acórdão do EP 12 Prog Reg-AgR parece deixar isso bem claro, ao dizer que a multa pode ser dispensada em caso de falta de condição, a reparação do dano, não:

“25. A exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. Aqui, diferentemente do que assentei em relação ao crime de peculato no precedente já referido (EP 22-AgR, caso João Paulo Cunha) – em que a restituição do dinheiro desviado se mostrou imperativa para a obtenção do benefício –, é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal (“o juiz pode permitir que o pagamento se realize em parcelas mensais”). (EP 22 AgR, Relator Ministro Roberto Barroso, Pleno, julgado em 17/12/2014)

Assim, pelo que entendi, a discussão ocorrida na EP 8 Prog Reg-AgR, noticiada no Informativo 832/STF, foi sobre a necessidade do pagamento de multa para a progressão de regime, não versando sobre reparação do dano.

 

Tráfico, quantidade de droga e hediondez

Esse tema acaba sendo resolvido caso a caso, mas algumas balizas podem ser fixadas, segundo o entendimento prevalecente do STF.

O tráfico privilegiado não é hediondo (aquele em que incide a minorante do artigo 33, §4º da Lei 11.343/06). O HC 118.533, julgado pelo Plenário do STF, continua a ser o paradigma quanto a isso.

O processo escolhido (HC 118.533) e levado ao Pleno para a discussão da hediondez quase nos fez perder a tese em decorrência da quantidade de droga transportada pelos pacientes. Todavia, o que verdadeiramente importava no caso é que as instâncias ordinárias já tinham reconhecido a aplicação da causa de redução de pena para o chamado pequeno traficante. Ou seja, a discussão não era mais essa e sim se, reconhecida essa condição, poderia ser afastada a hediondez da conduta.

Na maioria das vezes, a aplicação ou não da minorante deve ser decidida pelas instâncias ordinárias, por demandar, segundo o STF, revolvimento fático-probatório.

Há situações excepcionais, contudo. Por exemplo, o mero afastamento da redutora pela condição de mula do acusado, sem qualquer indício de habitualidade delitiva.

Em resumo, aplicada a redução de pena do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, o tráfico não será hediondo, esse era o cerne do HC 118.533.

A mera quantidade de droga não determina que a redutora será ou não afastada. Todavia, a depender da quantia, ela pode ser um indicativo de habitualidade (nem sempre, por óbvio).

Brasília, 30 de outubro de 2016