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Inviolabilidade de domicílio – limites

Inviolabilidade de domicílio – limites

O HC 228426, julgado pelo Min. Gilmar Mendes, do STF, trazia interessante discussão sobre inviolabilidade de domicílio.

No caso, em suma, discutia-se se chácara desabitada, mas fechada ao ingresso de estranhos, poderia ser local de busca e apreensão pela polícia, sem mandado judicial.

Inicialmente, o Min. Gilmar Mendes denegou a ordem, entendendo ser legal a busca policial. Todavia, em recurso por mim manejado em favor do assistido da DPU, ele reconsiderou a decisão e concedeu a ordem.

Foi um recurso bem feito, invocando jurisprudência e doutrina (destaco aqui a participação da estagiária Lilian Tavares), que acabou acolhido pelo Ministro relator.

Coloco, na sequência, a primeira decisão, o agravo e a reconsideração.

Brasília, 29 de outubro de 2023

Gustavo de Almeida Ribeiro

Validade da busca pessoal

Validade da busca pessoal

Apresento abaixo a decisão monocrática proferida pelo Ministro Gilmar Mendes em habeas corpus impetrado pela DPU.

Na verdade, a discussão era toda sobre dosimetria no tráfico, mas ele, de ofício, ingressou na discussão a respeito do tema validade da busca pessoal para conceder a ordem e declarar ilícitas as provas obtidas.

Vale a leitura.

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 2 de março de 2023

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – III

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – III

 

Encerro a divulgação, em 3 postagens, da manifestação da DPU no HC 154.118, impetrado perante o STF contra a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos.

A DPU foi admitida como amicus curiae pelo relator, Ministro Gilmar Mendes.

A terceira parte da peça segue abaixo.

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 8 de abril de 2019

 

5. Dos casos concretos de violação 

Declarações públicas incentivando o desrespeito ao ordenamento jurídico são irresponsáveis e fomentam, chancelam ou autorizam o cometimento de crimes. A já mencionada nota técnica expedida pelo MPF no âmbito da intervenção federal no Rio de Janeiro, abordou a questão em sua conclusão:

“Na sequência da decretação da intervenção, a imprensa vem divulgando, além daquela atribuída ao Ministro da Defesa, declarações de autoridades federais civis e militares que direta ou indiretamente defendem a violação de direitos humanos por parte do interventor e das Forças Armadas que estão sendo mobilizadas para participar do esforço interventivo, ou pelo menos, a impunidade para eventuais abusos. Essas declarações são de extrema gravidade, pois podem produzir o efeito de estimular subordinados a praticarem abusos e violações aos direitos humanos, atingindo de modo severo a população do Rio de Janeiro, que historicamente suporta a violência em geral e a violência estatal em particular. A intervenção não pode ser realizada à margem dos direitos fundamentais. Ao contrário, somente será constitucional se for implementada para a garantia dos direitos fundamentais, inclusive à segurança pública, ao devido processo legal, à ampla defesa, à inafastabilidade da jurisdição, etc.

Assim, os signatários dessa nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército, no sentido de que aos militares deveria ser dada “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, e ao Ministro da Justiça, o qual, em entrevista ao jornal Correio Brasiliense, fez uso da expressão “guerra”. Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos.

As autoridades, todas de alto escalão, que assim se manifestam em relação à execução da intervenção colocam sob suspeita os propósitos democráticos do ato e demandam dos órgãos públicos comprometidos com os direitos fundamentais e a defesa da Constituição uma postura de vigilância e controle sobre o desenvolvimento de sua implementação.

Os signatários têm a plena convicção de que organizações criminosas, incluindo milícias, devem ser investigadas com técnicas modernas que atinjam o seu financiamento e o lucro auferido com suas atividades ilegais.”[1] Grifo nosso

Como exemplo concreto de mandado coletivo, o impetrante invocou o caso da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no qual deferiu-se pedido de busca e apreensão domiciliar generalizada, não apenas na comunidade do Jacarezinho, mas também nas adjacências (Bandeira 2 e Conjunto Habitacional Morar Carioca de Triagem).

O pedido teria sido motivado por comentários em rede social após a morte de um policial durante operação da Delegacia de Combate às Drogas, que teriam provocado a ira de autoridades policiais, que submeteram ao plantão noturno o mencionado pedido, rechaçado tanto pelo Ministério Público quanto pela juíza de plantão na data, dado o risco para moradores da área. No entanto, a autoridade policial insistiu e por fim obteve o deferimento do mandado de busca e apreensão genérico em outro plantão noturno, apesar de não se tratar de inquérito para apuração de fato específico. As ações geraram a morte de sete pessoas, dentre as quais ao menos três comprovadamente não envolvidas com os conflitos, além da paralisação de aulas e de serviços de coleta de lixo, saúde e transporte.

O Desembargador João Batista Damasceno deferiu liminar para suspensão imediata do cumprimento do mandado expedido no caso mencionado acima. Em sua decisão, asseverou que não cabe a suspensão, ainda que momentânea, da legalidade em nome da efetividade, visto que “à margem da lei todos são marginais”, não podendo juízes atuarem ou autorizar que outros atuem em desrespeito à lei.

Da decisão do eminente Desembargador João Batista Damasceno é possível extrair trechos capazes de refutar qualquer medida não individualizada já tomada ou que se venha a tomar:

“É flagrante a ilegalidade do mandado de busca e apreensão expedido em desatendimento ao ordenamento jurídico, eivando de vício toda a prova colhida em decorrência de seu cumprimento.

(…)

A busca e apreensão domiciliar por se tratar de grave violação de direito fundamentais, deve observar estritamente os requisitos formais estabelecidos em lei para sua legitimação. (…)

Neste sentido o deferimento da busca e apreensão domiciliar, capaz de legitimamente suprimir tais garantias constitucionais, deve ser devidamente fundamentado em fatos concretos e adstrito à moradia onde deve ser cumprido, não bastando descrições abstrata de ‘crimes que se cometem por lá’ ou descrição genérica de localidades.

O padrão genérico e padronizado com que se fundamentam decisões de busca e apreensão em ambiente domiciliar em favelas e bairros da periferia – sem suficiente lastro probatório e razões que as amparam – expressam grave violação ao direito dos moradores da periferia. A busca e apreensão domiciliar somente estará amparada no ordenamento jurídico se suficientemente descrito endereço ou moradia no qual deve ser cumprido em relação a cada uma das pessoas que será sacrificada em suas garantias. E, ainda que não se possa qualifica-la adequadamente é necessário que os sinais que a individualize sejam explicitados.

No presente caso, temos um mandado judicial genérico, expedido com eficácia territorial ampla, geograficamente impreciso, que não se preocupa em determinar o fato concreto a ser apurado.

Pelo seu alto grau de dano a valores constitucionais, é absolutamente inadmitido o mandado genérico para tantas comunidades quanto são descritas na decisão recorrida. Faz-se imprescindível que a decisão e o mandado determinem qual a correlação dos indícios probatórios que se pretendem obter com a invasão de casa um dos domicílios a serem buscados. E, isto, não ocorreu.

(…)

O abandono das regras e dos princípios jurídicos não é permitido nem em tempo de paz contra os cidadãos, nem em tempo de guerra contra os inimigos.

(…)

Agentes políticos do Estado encarregados de exercer a jurisdição, quando se aliam aos agentes da segurança pública em prol da execução de políticas públicas, deslocam-se de seu lugar de atuação e se tornam coautores das violações. E as ‘boas intenções’ e preocupação com a segurança não podem retirar o julgador do seu lugar equidistante dos interesses em conflito e colocá-lo ao lado das forças de segurança a ponto de despachar como se estivesse no âmbito de uma delegacia policial.

Tenho que o mandado de busca e apreensão genérico nas favelas e bairros da periferia elencados na decisão está eivado de vício que o torna ilegal, bem como violar da ordem constitucional pelo que deve ser ‘revogado’, uma vez que tal ilegalidade e inconstitucionalidade contaminam todos os indícios probatórios colhidos e nele lastreados.

ISTO POSTO, defiro a liminar para a SUSPENSÃO IMEDIATA do cumprimento do mandado expedido pelo juízo plantonista, intimando-se as autoridades policiais responsáveis pelo comando da operação nos locais indicados no referido mandado, por meio de Oficial de Justiça.”[2] Grifo nosso

Um bairro de classe alta jamais seria objeto de um mandado de busca coletivo, não porque não ocorram crimes em bairros nobres, mas porque pessoas com maior poder aquisitivo dificilmente são submetidas a abusos do Estado sem que haja consequências para seus agentes, obrigando forças de segurança a fazer o que deveriam fazer sempre: agir apenas dentro da lei.

A título de exemplo, a maior apreensão de fuzis já registrada no Estado do Rio de Janeiro se deu em um imóvel localizado em bairro de classe média, no âmbito da operação Lume, que investiga o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.[3] Não houve registro de arrombamento de portas dos apartamentos vizinhos, troca de tiros ou qualquer outra importunação resultante da operação.

No entanto, quando as operações ocorrem em regiões mais pobres, não raro há relatos e denúncias de ações extremamente truculentas contra uma população já marginalizada e desassistida pelo Estado.[4]

Por fim, calha destacar aspecto que importa a quem promove a persecução penal: o cuidado com a expedição de mandados de busca e apreensão deve ocorrer não apenas para que não haja abuso contra cidadãos, mas até mesmo para se evitar prejuízo para a acusação penal, visto que a consequência deverá ser a anulação das provas obtidas, quando empregados meios que ofendam frontalmente as garantias constitucionais.

6. Conclusão

Portanto, conforme salientou o impetrante, há flagrante inconstitucionalidade da medida, que, sem fundamentação individualizada, fere o princípio da presunção de inocência, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, o devido processo legal e a inviolabilidade do lar.

O artigo 243 do Código de Processo Penal dispõe que se indique o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador. O texto não diz uma casa, mas a casa, localizada em endereço a que se deve chegar através de investigação diligente. Evidente, portanto, a incompatibilidade de instrumento genérico com a legislação e com a Constituição, cujo texto não varia de acordo com o CEP do cidadão.

A inviolabilidade do domicílio é conquista fundamental a que se referiu Lorde Chatham em discurso proferido no Parlamento britânico:

“O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar.”[5]

Pelo exposto, o habeas corpus coletivo deve ser conhecido e, ao final, concedido a fim de que se anulem as buscas e apreensões coletivas e/ou genéricas já decretadas em território nacional, proibindo-se que novas medidas de mesma natureza sejam decretadas.

[1] https://www.conjur.com.br/dl/mpf-critica-mandados-coletivos.pdf. Acessado em 20/03/2019

[2] https://www.conjur.com.br/dl/desembargador-suspende-busca-apreensao.pdf. Acessado em 20/03/2019

[3] https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,investigacao-sobre-morte-de-marielle-leva-a-maior-apreensao-de-fuzis-no-rio,70002752936 ; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/12/policia-encontra-117-fuzis-m-16-na-casa-de-suspeito-de-atirar-em-marielle-e-anderson-gomes.ghtml Acesso em 20/03/2019

[4] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/07/31/moradores-de-comunidades-denunciam-abusos-policiais-durante-operacoes-vinganca-em-varios-estados.ghtml Acesso em 20/03/2019

[5] MORAIS, Alexandre de, Direito Constitucional, 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, página 59.

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – II

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – II

 

Continuo a divulgar, em 3 postagens, a manifestação da DPU no HC 154.118, impetrado perante o STF contra a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos.

A DPU foi admitida como amicus curiae pelo relator, Ministro Gilmar Mendes.

A segunda parte da peça segue abaixo.

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 7 de abril de 2019

 

4. Das declarações sobre a adoção de medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas

Ao tecer breve introdução, o impetrante demonstrou a preocupação com a tutela de direitos fundamentais constitucionais, direitos esses que são pouco conhecidos na teoria e na prática, sobretudo por cidadãos pobres residentes de áreas desprivilegiadas.

Tal preocupação se mostra razoável pois, de fato, medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas foram consideradas e sugeridas publicamente por autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo como possível solução para os problemas enfrentados na área da segurança pública.

Em fevereiro de 2018, durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, o então Ministro da Defesa, Raul Jungmann, a pedido do então comandante do Exército, declarou que faria pedido de mandado coletivo de busca e apreensão à Justiça do Rio de Janeiro. Reportagem veiculada pelo jornal Estado de São Paulo reproduziu a fala de Jungmann:

“‘”Em lugar de você dizer rua tal, número tal, você vai dizer uma rua inteira, uma área ou um bairro. Aquele lugar inteiro é possível que tenha um mandado de busca e apreensão”, explicou na entrevista.”[1]

O Ministro da Justiça à época, Torquato Jardim, se manifestou no sentido de que a medida poderia ser tomada com base em posições de GPS e descrevendo áreas das comunidades, chegando a citar a “urbanização precária” e dificuldade de localização de endereços em zonas de conflito do Rio de Janeiro como justificativas[2].

Por outro lado, a imprensa noticiou a desaprovação por parte de especialistas[3] em Direito Penal, como, por exemplo, os advogados integrantes do IGP (Instituto de Garantias Penais) às buscas coletivas e genéricas.

Também houve reação negativa por parte da Ordem dos Advogados, sendo que o Conselho Federal e a OAB-RJ repudiaram o anúncio da medida em nota conjunta, que diz:

“O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), junto com a Ordem dos Advogados do Brasil Seção Estado do Rio de Janeiro (OAB/RJ), vêm a público repudiar os “mandados coletivos” de busca e apreensão.

Tal expediente não é previsto em Lei e vai de encontro ao Código de Processo Penal, que determina especificar a quem é direcionado o mandado. Por ser limitadora de garantias fundamentais, toda e qualquer medida cautelar jamais pode ser genérica. Caso contrário, há a violação constitucional da garantia individual de inviolabilidade do lar e intimidade — colocando sob ameaça ainda maior os direitos da parcela mais desassistida da população.

O CFOAB e a OAB/RJ estudam formas legais para impedir esta grave ameaça aos direitos e garantias dos cidadãos do Rio de Janeiro, já tão prejudicados pela ação dos grupos criminosos.

Desde o anúncio da intervenção federal no Rio, na última sexta-feira, dia 16, a OAB acompanha atentamente — dentro de sua missão institucional — os desdobramentos da decisão com o objetivo de evitar abusos como os “mandados coletivos”.

Não se combate o crime cometendo outros crimes. Isso é incompatível com a Democracia.

Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2018
Claudio Lamachia
Presidente do Conselho Federal da OAB
Felipe Santa Cruz
Presidente da OAB/RJ”[4] Grifo nosso

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e a Câmara Criminal do Ministério Público Federal (2CCR) divulgaram nota técnica conjunta em 20/02/2018 em que, além de afirmarem que a intervenção federal deve se submeter aos ditames da lei, criticaram a requisição de mandados de busca e apreensão e de prisão genéricos, conforme se depreende de trecho da nota:

“IV – Mandados de busca, apreensão e captura coletivos

O ministro da Defesa anunciou na imprensa que uma das medidas a serem adotadas durante a intervenção poderia ser a requisição de mandados de busca e apreensão e de prisão “genéricos”, nos quais não serão especificados os destinatários das prisões e demais medidas cautelares.

Tal procedimento é ilegal, uma vez que o Código de Processo Penal determina a quem deve se dirigir a ordem judicial. Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio, bem como do dever de fundamentação das decisões judiciais.

Por outro lado, a expedição de ordens judiciais genéricas, destinadas a serem cumpridas contra moradores de determinadas áreas da cidade, importa em ato discriminatório, violando o disposto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal. Isso porque faz supor que há uma categoria de sujeitos “naturalmente” perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram.”[5] Grifo nosso

O Ministro Celso de Mello, instado a se manifestar sobre a questão, afirmou:

“A lei é clara. O Código de Processo Penal, em seu artigo 243, exige que do mandado de busca e apreensão conste, sempre que possível, o local objeto da busca. Essa é uma medida invasiva, intrusiva”[6]

Apesar de todas as respostas e reações negativas noticiadas, o fato de agentes políticos meramente cogitarem a possibilidade do emprego de ordens judiciais genéricas aumenta o risco de que direitos de parcela fragilizada da sociedade sejam violados, o que requer medidas que efetivem a proteção constitucional.

Infelizmente, ordens judiciais em aberto não se restringem ao campo abstrato de declarações públicas. Situações concretas de utilização de mandados de busca e apreensão genéricos ocorreram antes das declarações no âmbito da intervenção federal. Espera-se que o deferimento do presente habeas corpus seja um marco civilizatório com relação à inviolabilidade de domicílio, sobretudo para moradores de comunidades carentes, que são, inequivocamente, os destinatários de sempre de tais medidas.

[1] https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,ministerio-da-defesa-esclarece-que-mandados-coletivos-serao-restritos-a-busca-e-apreensao,70002195596. Acessado em 20/03/2019

[2] https://www.conjur.com.br/2018-fev-24/suspeito-supremo-permite-busca-casa-mandado. Acessado em 20/03/2019

[3] https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/grupo-advogados-critica-ideia-mandados-busca-genericos Acessado em 06/04/2019

[4] https://www.conjur.com.br/2018-fev-20/oab-ira-justica-uso-mandados-coletivos-intervencao. Acessado em 20/03/2019

[5] https://www.conjur.com.br/dl/mpf-critica-mandados-coletivos.pdf. Acessado em 20/03/2019

[6] https://www.conjur.com.br/2018-fev-21/mandado-busca-generico-viola-presuncao-inocencia-celso. Acessado em 20/03/2019

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – I

HC 154.118/STF – Habeas Corpus coletivo contra mandados de busca coletivos – I

 

Divulgarei, em 3 postagens, a manifestação da DPU no HC 154.118, impetrado perante o STF contra a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos.

A DPU foi admitida como amicus curiae pelo relator, Ministro Gilmar Mendes.

A primeira parte da peça segue abaixo.

Gustavo de Almeida Ribeiro

Brasília, 7 de abril de 2019

 

A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO vem, por intermédio do Defensor Público Geral-Federal e sua assessoria junto ao Supremo Tribunal Federal, manifestar-se na condição de amicus curiae nos autos eletrônicos do Habeas Corpus 154.118, impetrado de forma coletiva em favor de todo cidadão brasileiro, em especial aqueles moradores de comunidades carentes, negros, pobres e marginalizados, fazendo-o através das razões aduzidas a seguir.

 

  1. Do objeto do Habeas Corpus

Trata-se de habeas corpus coletivo impetrado com o fim de impedir a decretação de medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas em desfavor dos cidadãos brasileiros, em especial aqueles moradores de comunidades carentes, negros, pobres e marginalizados.

O impetrante citou a menção por parte de agentes políticos sobre a autorização de medida de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas no âmbito da Intervenção Federal no Rio de Janeiro e casos concretos em que ela foi tomada. Embora o Poder Judiciário tenha rechaçado tais violações ao ordenamento jurídico, é preciso que também se manifeste quanto à sua ilegalidade e caráter discriminatório, resguardando cidadãos brasileiros da possibilidade de sofrer constrangimento ilegal.

A chancela da mera possibilidade de decretação de medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas viola o art. 243 e incisos, do Código de Processo Penal, e artigo 5º, XI, LIV e LVII, da Constituição, que consubstanciam princípios da inviolabilidade de domicílio, do devido processo legal e da presunção de inocência.

Cumpre salientar que o instrumento se mostra adequado, pois, conforme destacou o impetrante, “contra abusos de poder coletivos, medidas protetivas com efeitos coletivos”.

 

  1. Da pertinência da impetração coletiva

Há situações que têm enfrentamento mais eficiente e seguro quando feito pela via coletiva.

O caso dos autos é exatamente uma delas.

Poderiam os moradores de comunidades carentes, de forma individual ou, ainda, plúrima, ingressar com pedidos de habeas corpus para não terem suas casas vasculhadas por agentes do Estado, em decorrência única e exclusiva de sua localização? A resposta é positiva. Todavia, além de todas as dificuldades que adviriam de tal medida, como distribuição para Juízos diferentes, número de feitos e dificuldades normais de acesso à Justiça, há ainda outro aspecto que enfraqueceria a demanda, se ela fosse veiculada na forma individual, qual seja, perder-se-ia a noção de que um grupo específico estaria a sofrer invasão indevida em seus direitos fundamentais em decorrência de sua condição econômica e social. Essa perspectiva é fundamental para o deslinde da questão submetida à apreciação da Corte.

A impetração coletiva, no caso em exame, mostra que o mandado genérico volta-se contra os mais frágeis, os mais fracos, os mais pobres como um todo, em razão única dessa condição.

Não há individualização, indicação de necessidade da realização da busca. Inverte-se, sem qualquer fundamento concreto, a presunção de inocência para se franquear a entrada da polícia nas residências humildes dos moradores de favelas e assemelhados.

Nem mesmo sobrevive a sempre alegada “defesa da impunidade”, uma vez que a utilização do habeas corpus coletivo, ao tempo em que facilita o atendimento de um maior número de pessoas, em nada obstaculiza a expedição de mandados de busca individuais quando eles se fizerem necessários. Ou seja, não há prejuízo, nem a necessidade de se fazer qualquer tipo de discriminação na impetração. A vedação ao mandado genérico deve ser absoluta. Se determinada pessoa merece ser alvo de busca e apreensão, que se expeça ordem contra ela, devendo tal postura valer para os cidadãos mais pobres ou mais ricos.

 

  1. Da Inviolabilidade de domicílio

Embora sob outro viés, que não o dos mandados de busca coletivos, o tema inviolabilidade de domicílio já foi amplamente debatido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 603616, pelo Plenário da Corte, feito de relatoria do Ministro Gilmar Mendes (acórdão publicado em 10/05/2016). Ao proferir o voto condutor do acórdão, o Eminente Ministro relator destacou a evolução da cláusula de inviolabilidade:

“A cláusula de inviolabilidade domiciliar evoluiu a partir da Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos, adotada em 1792, que dispõe:

“O direito das pessoas a estarem seguras em suas (…) casas, (…) contra buscas e apreensões não razoáveis, não será violado, e nenhum mandado deverá ser expedido sem causa provável, confirmada por juramento ou afirmação, e com descrição pormenorizada do lugar a ser buscado, e as pessoas ou coisas a serem apreendidas. No original: The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no warrants shall issue, but upon probable cause, supported by oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized”.

Como se constata da leitura acima, há mais de dois séculos, a Constituição Americana estabelece que deve haver descrição pormenorizada do local a ser buscado.

Cabe destacar as razões da importante proteção ter sido encartada à Constituição dos Estados Unidos, transcrevendo-se trecho do artigo “Buscas domiciliares sem mandado e provas ilícitas: reflexões acerca do julgamento do recurso extraordinário 603.616, à luz do Direito dos Estados Unidos”, da lavra de Tiago Baldani Gomes de Filippo[1], Juiz de Direito do Estado de São Paulo, publicado na revista da Escola Paulista de Magistratura, Cadernos Jurídicos, número 44, de julho a setembro de 2016 – Direito Processual Penal, página 133:

“Nas duas décadas que antecederam a independência dos EUA, a Inglaterra passou a intensificar sua política de arrecadação de receitas, prática que contou com a resistência dos patriotas, que se negavam a pagar os impostos. Com isso, rotineiramente, a Coroa expedia os chamados writs of assistance, ordens dadas aos xerifes locais para que auxiliassem os agentes britânicos na busca de mercadorias contrabandeadas. Esses writs eram uma espécie de mandados genéricos, porque não especificam o lugar, coisas a serem apreendidas ou os indivíduos que seriam abordados. Pelo contrário, eles conferiam poder para que os agentes realizassem as buscas onde quer que encontrassem o ilícito e, além disso, sua validade era indefinida, vigendo por todo o lapso daquele reinado existente no período em que foi expedido, mais 6 meses.[2]

Essas ordens genéricas eram veículo ideal para o cometimento de abusos e arbitrariedades por meio de agentes policiais mal-intencionados. Obviamente, contaram com o repúdio dos líderes revolucionários de então, que a tinham como uma prática opressiva, irrazoável e injusta.[3] Por isso, em várias ocasiões houve resistência veemente ao cumprimento dessas diligências, principalmente em Massachusetts, onde, devido à oposição popular mais ferrenha a partir de 1765, esses writs passaram a ser virtualmente inexequíveis.[4]

O fragmento acima colacionado deixa claro que mandados genéricos e indeterminados sempre se prestaram ao cometimento de abusos por parte dos detentores de poder em face dos mais fragilizados.

A especificação detalhada dos mandados de busca, em verdade, é consectário lógico da inviolabilidade de domicílio, pois se ordens genéricas, amplas, abertas, sem qualquer identificação de seus destinatários, passassem a ser admitidas, na prática, a cláusula da inviolabilidade estaria revogada, uma vez que qualquer decisão baseada em mera conjectura (e, por que não dizer, preconceito social) seria considerada fundamentada.

[1] Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal de Assis (SP). Juiz Docente Formador da EPM nas áreas de Penal, Processo Penal, Infância e Juventude e Idoso. Coordenador do Núcleo de Direito Comparado Brasil-EUA da EPM.

[2] Na própria Inglaterra, era prática comum a expedição de mandados genéricos (general warrants) para a apreensão de publicações sediciosas (FRAENKEL, Osmond K. Concerning searches and seizures, Harv. L. Rev., v. 34, p. 361-63, 1920. 1

[3] BRADLEY, Gerard V. The constitutional theory of the Fourth Amendment (1989). Scholarly Works. Paper 773. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2015. 16

[4] HUBBART, Phillip A. Making sense of search and seizure law: a fourth amendment handbook. Durham: Carolina Academic Press, 2005. p. 31.